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A filosofia e o Direito Privado: Uma relação antiga e atual

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Atualizado em 16 de agosto de 2021 09:19

Imagine normas de Direito Contratual que considerem inválidos contratos celebrados por mulheres sem o consentimento dos maridos. Alguns países, infelizmente, ainda estabelecem normas de direito privado como essas1. É possível afirmar que elas estão erradas? Que são injustas? Sim. Você sabe como explicar a razão do equívoco, mesmo que o direito positivo de um dado país considere-as válidas e legítimas?

Uma jornada inicia com o primeiro passo. Uma preparação preliminar pode e muitas vezes deve ser feita, mas o começo ocorre com a primeira etapa. Assim inicia a coluna Lições Filosóficas de Direito Privado, com o seu primeiro texto tratando da relação antiga e atual entre o direito privado e a filosofia.

O debate do novo Direito Privado não se afasta desse momento inicial, pois todo primeiro passo está direcionado a um fim. O caminho que se inicia pode não ser conhecido, mas o fim almejado, é de fundamental conhecimento. As Lições Filosóficas de Direito Privado ainda não conhecem as suas diversas etapas - colunas, vídeos, comentários - mas sabe o seu objetivo: a reflexão sobre o direito privado atual pelas lentes da filosofia.

A coluna pretende abordar, através de textos e vídeos do seu titular e de convidados, temas de direito privado relacionados a novas tecnologias, inteligência artificial, proteção de dados, ESG (environment, social and governance), entre outros, mas parte de uma premissa inicial, histórica, trazida de autores como Michel Villey2, de que o direito privado, nasceu a partir da filosofia, mais especificamente da filosofia daquele que foi conhecido no medievo como "o filósofo".

Teria sido Aristóteles no livro V da Ética a Nicômaco quem identificou uma forma especial do justo, o justo particular, o Dikaion. O justo para a relação entre os membros da pólis, não para a relação entre o cidadão e a comunidade política. Quando Aristóteles diferencia o justo em geral em relação ao justo em particular ele inicia e configura a tradição da diferenciação entre justo público e o justo particular.

Contudo, é com o ius civile dos romanos, o justo para os cives, que as instituições jurídicas na tradição ocidental têm sua origem. O direito privado surge e se consolida tendo os sentidos de justiça dos gregos como fundamento da construção prática realizada, sobretudo, no período clássico do direito romano, com a atuação dos jurisconsultos e dos magistrados.

Como salienta James Gordley, por outro lado, a primeira sistematização moderna, realizada pelos juristas da escolástica tardia, foi decisiva na tradição do direito privado, pois, ainda sobre bases aristotélico-tomistas, sistematizou de forma moderna as soluções práticas romanas e acabou por influenciar os fundadores da escola do direito natural do norte europeu, principalmente, Hugo Grócio (1583-1645) e Samuel Pufendorf (1623-1694), os quais foram decisivos para a tradição ao espalhar essa forma de sistematização pela Europa ao mesmo tempo em que o pensamento aristotélico-tomista perdia força.3

Nesse contexto da tradição, o direito privado vai se desenvolver com as características modernas, possibilitando a sua compreensão, desde então, como um sistema de normas sedimentado nos princípios de justiça, focado no fim de igual liberdade nas relações entre particulares.4

A desconexão do sistema de direito privado com a filosofia aristotélico-tomista chega ao seu ápice com a escola pandectista, no século XIX. No mesmo momento em que se afasta do aristotelismo de forma acentuada, passa, o direito privado, primeiro a receber influências filosóficas do formalismo, principalmente kantiano e, posteriormente, no século XIX, do funcionalismo utilitarista ou coletivista.

Como essas construções modernas do formalismo e do funcionalismo acabaram por abandonar os fundamentos da teoria da justiça da tradição para a posteridade, tanto o formalismo, quanto o funcionalismo, deixaram de estar preocupados com a ideia da justiça e passaram a compreender o direito privado apenas nos termos de um atomismo estéril ou de uma razão coletivista.

Com efeito, o passo inicial aqui dado está voltado para uma visão do direito privado que não é aleatória em relação ao seu fim. Não se pode compreender o direito privado, racionalmente, com teorias contraditórias, que se direcionam a objetivos diversos e até mesmo contraditórios5. O grande desafio é o da preservação da igual liberdade do formalismo, com a eficiência econômica da AED (Análise Econômica do Direito) e as funções sociais do solidarismo.

Para tal conciliação teórica e prática, em busca da racionalidade do direito privado, que não admite contradições, o caminho não pode se afastar a teoria complexa da justiça, pois, como referido, nos dois momentos estruturantes da tradição desse ramo do conhecimento (o período clássico do direito romano e o período da sistematização jusracionalista), a teoria da justiça configurou a base principiológica fundacional.

A solução poderia estar numa compreensão que aceite as diversas racionalidades, mesmo que contraditórias, mas, desde a metafísica aristotélica, é conhecida a dificuldade de defesa de racionalidades contraditórias. O princípio da não contradição é um dos mais caros princípios filosóficos. Partindo da premissa da não contradição, a teoria da justiça na sua forma clássica e completa, para além da simples dicotomia entre justiça comutativa e justiça distributiva, é o caminho.

Nesse contexto, a defesa que aqui que se retoma é no sentido de que a teoria da justiça aristotélica, na sua compreensão completa, exige a retomada da centralidade da justiça geral, sentido de justiça primeiro que articula os diversos sentidos de justiça e agrega substância aos demais sentidos.

A justiça distributiva e a justiça comutativa determinam formas de racionalidade para o justo nas relações entre particulares, mas, isoladas e não articuladas pela justiça geral, são incompletas. O sentido de justiça que determina a substância e organiza os demais sentidos é exatamente aquele erradicado dos estudos de direito privado ao longo da modernidade, o sentido de justiça geral, que se transforma, na Idade Média, em justiça legal e vai ser reconstruído a partir do século XX como justiça social. Não a justiça social do socialismo ou do solidarismo, mas a justiça social da igual liberdade e dignidade humana. A justiça social voltada para o bem comum na sua mais recente atualização. O bem comum da proteção do ser humano através de sua autodeterminação efetiva e sua dignidade.6

Com o resgate da justiça, nos seus sentidos geral e particular (comutativa e distributiva) fica mais fácil explicar que a norma que não reconhece a validade de um contrato celebrado por mulher, sem o consentimento do marido, é errada e injusta, pois não conforme a ideia de bem comum da justiça geral, voltada para a dignidade da pessoa humana, que tem como um dos valores centrais a igualdade dos seres humanos independentemente do gênero.

Seria possível, ainda, analisar pelas lentes da filosofia, com o filtro da justiça, a atuação de empresas de plano de saúde que se amparam na lei 9.263 de 1996 sobre o planejamento familiar para exigir o consentimento do parceiro nos casos de esterilização - ou mesmo de métodos contraceptivos como o DIU - mas este, pela sua maior complexidade, pode vir a ser um tema para uma próxima lição.

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1 Vide o estudo recente: World Bank. 2021. Women, Business and the Law 2021. Washington, DC: World Bank. doi:10.1596/978-1-4648-1652-9. License: Creative Commons Attribution CC BY 3.0 IGO.

2 VILLEY, Michel. Filosofia do direito. Definições e fins do direito. Os meios do direito. São Paulo:  Martins Fontes, 2003. p. 95.

3 GORDLEY, James. Foundations of private Law: property, tort, contract, unjust enrichment. New York: Oxford University Press, 2007. p. 10-11).

4 ENGLARD, Izhak. Corrective & distributive justice: from Aristotle to modern times. Oxford: Oxford University Press, 2009. p. 143-144.

5 Veja nesse sentido: WADDAMS, Stephen. Dimensions of Private Law: Categories and Concepts in Anglo-American Legal Reasoning. New York: Cambridge University Press, 2003. p. 226.

6 DRESCH, Rafael F. V. Fundamentos do Direito Privado: uma teoria da justiça e da dignidade humana (Edição Revista e Atualizada). Curitiba: Editora Processo, 2018, v.1. p.302.