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Controle da SAF e a real e verdadeira autonomia das entidades esportivas

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Atualizado às 07:59

O legislador constitucional entendeu por oportuno e necessário inserir na Carta de 1988 dispositivo específico, contido no artigo 217, I1, cuja finalidade é resguardar a autonomia das entidades esportivas, quanto a sua organização e funcionamento.

Em 1998, quando a Constituição completou seu décimo aniversário, entrou em vigor a Lei 9.615/98 ("Lei Pelé") que, no seu artigo 27 - conforme a redação original de então - teria desafiado a autonomia constitucional, ao condicionar a participação das entidades de prática em competições profissionais, à adoção de um dos tipos empresariais previstos no Código Civil.

Na oportunidade, prevaleceu o entendimento de que o texto do artigo 27 da Lei Pelé, ao obrigar os clubes a abandonarem o modelo das associações e adotarem a forma das empresas, conflitaria com o artigo 217, I, da Constituição. Tal capitulação do dispositivo infraconstitucional não foi imposta a partir de questionamento levado ao Supremo Tribunal Federal à época, mas sim, por iniciativa das próprias casas legislativas que, pouco tempo depois, impingiram alterações na Lei Pelé, para tornar facultativa - e, até mesmo bastante dificultada - a constituição dos clubes-empresas.

Somente a partir do ano 2000, o tema da autonomia constitucional das entidades esportivas teve a oportunidade, por assim dizer, de vir a receber modulação pelo Supremo Tribunal Federal. Primeiro, no julgamento da ADI 2937 em 2012, que limitou o alcance da autonomia ao decidir pela constitucionalidade de diversos dispositivos da Lei 10.617/03 ("Estatuto do Torcedor"). E, mais recentemente, no julgamento da ADI 5450, em 2019 que, por sua vez, declarou inconstitucional, também por ferir a autonomia, dispositivo inserido posteriormente no texto do Estatuto do Torcedor, que previa rebaixamento para outra divisão de time de futebol pela não quitação de dívidas.

Atualmente, portanto, o operador do direito que se depara com o tema constata que, estando em vigor o texto do artigo 217, I da Constituição Federal exatamente como em sua versão original, há duas decisões do Supremo Tribunal Federal, uma de 2012 e outra de 2019, com entendimentos até certo ponto divergentes acerca do alcance, abrangência e limitações da autonomia constitucional das entidades esportivas.

Já o Projeto de lei 5.516/2019, que prevê a criação da Sociedade Anônima do Futebol - SAF e dá outras providências, de autoria do Senador Rodrigo Pacheco (DEM/MG) e, atualmente, tramitando no Senado Federal sob a relatoria do Senador Carlos Portinho (PL/RJ), não oferece qualquer risco de questionamento acerca de sua constitucionalidade à luz do artigo 217, I, da CF, dado que prevê que a transformação ou criação da SAF pelos clubes de futebol profissional se dá, no texto proposto, de maneira FACULTATIVA.

Para além de evitar mais um round de questionamentos sobre abrangência e limites da autonomia constitucional, interessante notar que os autores do texto do PL 5.516/2019, ao preverem a adoção facultativa da SAF, não o fizeram apenas para "driblar" a discussão acadêmica que, diga-se, em alguns momentos foi utilizada de forma oportunista, com a finalidade de atravancar a modernização e o desenvolvimento do esporte de alto rendimento no Brasil.

A preocupação primordial refletida no texto do PL 5.516/2019 diz respeito à sobrevivência de boa parte dos aproximadamente 700 times de futebol existentes no País atualmente. Muitos desses times não reúnem, no momento, condições econômicas para adotarem o tipo das sociedades anônimas. Obrigá-los a constituir SAF, desde logo, seria submetê-los à cruel "seleção natural", o que os autores do projeto não ousariam impor, até porque, pequenos ou grandes, todos têm sua importância, uma coletividade que lhes destina o afeto e, como tal, merece todo respeito.

A SAF, que é, sem dúvida, um caminho para a obtenção de novas receitas, modernização, desenvolvimento e aprimoramento para uma boa gama de clubes grandes e médios do Brasil, não poderia ser imposta aos menores ao custo de redundarem, em muitos casos, no seu desaparecimento. Não seria justo, não seria oportuno para a melhoria do ecossistema do futebol e formação de novos atletas, tampouco os autores do texto arvorar-se-iam em tal ousadia e pretensão.

Por isso, e principalmente, o PL 5.516/2019 não impõe a obrigatoriedade da constituição da SAF por todos os times, tampouco pretende aplicar sanções àqueles que, por vontade de sua coletividade, pretenderem seguir adotando a forma das associações.

Nesse mesmo contexto, se inserem os questionamentos sobre a conveniência de o PL 5.516/2019 não ter importado do marco regulatório alemão a norma que, por aquelas bandas, determina que o time que vier a constituir a companhia para gerir as atividades do futebol profissional deverá sempre manter 50%+1 (cinquenta por cento mais uma) ação da empresa futebolística, preservando o controle acionário.

Primeiramente, seria de se questionar se uma norma que viesse a delimitar o controle acionário da SAF também não afrontaria a autonomia das entidades esportivas - já deixando de lado, por absoluta inconsistência e carência de interpretação histórica e sistemática, qualquer entendimento que pudesse vir a pretender advogar que a autonomia constitucional do artigo 217, I seria aplicável apenas aos clubes organizados como associações.

Porém, novamente, não foi o receio do questionamento sobre a constitucionalidade que motivou os autores do texto do PL 5.516/2019 a evitarem importar a regra alemã do 50%+1 para o nosso texto. Mas sim, foi a percepção de que cada clube tem seu contexto e suas necessidades e, como tal, devem ser livres para escolher a melhor forma de gestão, sem amarras ou impeditivos legais excessivamente invasivos e desnecessários.

De modo que, se um time tradicional do futebol brasileiro, com milhões de torcedores, pretende inserir regra que jamais lhe permita deixar de ter o controle acionário, representado por 50% +1 das ações, estará livre para fazê-lo no âmbito do seu Estatuto Social, aprovado pelos associados. Se outro, contudo, preferir ceder o controle ao investidor, como forma de obter volume maior de receitas, e essa for a vontade de sua coletividade, também poderá realizar tal intento.

Até porque, haverá investidores que exigirão ter o controle acionário da SAF para assegurar seus investimentos. Se o clube que constitui a SAF assim o permitir, torna-se um negócio em que as duas partes, plenamente capacitadas, acordaram sobre o modelo, não cabendo ao Estado impor condições ou limitações. Novamente, trata-se do livre exercício da autonomia, desta feita, auferida no binômio esportivo-negocial. O Projeto da SAF acredita na livre iniciativa e na capacidade de cada entidade esportiva em definir para si o melhor modelo, a melhor forma de controle e gestão.

O que o PL 5.516/2019 pretendeu dispor em favor dos times que pretendam utilizar, foram mecanismos para proteção de suas tradições enquanto elemento intangível de valor imensurável para o clube e sua coletividade. O artigo 2º do PL contempla a emissão de ações ordinárias classe A, que serão detidas pelo clube que constituiu a SAF e conferirão poder de veto em qualquer deliberação que venha a discutir temas como: mudança de nome, símbolos, local de sua sede, uso de seu estádio, ou mesmo cisão, fusão, incorporação, alienação de bens ou liquidação da SAF.

Todavia, mesmo nesse ponto, o clube que constituiu a SAF somente poderá fazer uso do voto afirmativo enquanto detiver determinados percentuais das ações ordinárias classe A. Mais uma vez, caberá à entidade esportiva decidir se pretende manter, ou não, o direito de veto em tais temas. Ninguém tem mais interesse e legitimidade para preservar, ou dispor em seu proveito, das tradições de entidades esportivas, do que elas mesmas.

Eis o PL 5.516/2019, o Projeto da SAF, aquele, dentre todos apresentados a partir da Constituição de 1988, que mais primou e respeitou a autonomia das entidades esportivas, não somente para evitar a prevalência da discussão acadêmica em face do interesse maior de modernizar e melhor o futebol brasileiro, mas também, por acreditar que é chegado o momento de os clubes se livrarem da relação umbilical com o Estado, seja por serem capazes de se manter sem os seculares subsídios de dinheiro público, mas também por adquirirem maturidade, definindo o melhor modelo para sua gestão, passarão a, enfim, tomarem para  si as rédeas do seu destino.

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1 Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;