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A SAF: o dono e o povo

quarta-feira, 2 de março de 2022

Atualizado às 07:25

No último domingo, dia 25 de fevereiro, o Jornal O Globo trouxe editorial com o título "Clube-empresa já traz renovação ao futebol brasileiro - Cruzeiro, Botafogo e Vasco começam a implantar o novo modelo de Sociedade Anônima do Futebol (SAF)".

A edição da lei 14.193, de 6 de agosto de 2021 ainda é bastante recente e seus efeitos expressivamente notáveis tendo em vista seu pouco tempo de vigência, seja pela adesão de diversos times - para além dos três citados no editorial - e, principalmente, pela discussão que tomou conta do futebol brasileiro sobre o modelo de organização dos nossos times.

Como o futebol brasileiro está entrando numa nova era - e todos queremos seja uma era de prosperidade - toda discussão sobre como aprimorar o modelo introduzido pela Lei da SAF, evitando problemas já verificados em outros países, sem dogmas, sem mitos, sem imposição de supostas "verdades" é válido, é salutar e fará bem ao processo evolutivo.

Um ponto importante levantado por alguns dirigentes merece reflexão.

Alegam, alguns, que "seus" clubes não deveriam adotar o modelo da SAF, porque são do "povo" e não podem ter "donos". Vale a pena o debate sobre tal afirmação.

A rigor, o primeiro ponto a ser apontado é que no exato momento em que o clube constitui a SAF - tratando de modo geral as formas previstas nos artigos 2º e 3º da lei 14.193/2021 - o clube se coloca como proprietário da totalidade (100%) das ações da SAF. Portanto, ao nascer, a SAF tem um único e exclusivo dono: o clube que a criou.

A decisão de transferir, mesmo que seja uma única ação, 25% das ações, 51% das ações, 90% ou 100% das ações pertence tão-somente ao clube. E, para tomar tal decisão, a Lei da SAF combinada com a Lei Pelé são bastante claras: o clube só pode vender as ações se tal venda for aprovada pela Assembleia Geral de Associados.

Portanto, não é correto dizer que, necessariamente, ao constituir uma SAF o time de futebol do clube passará a ter um "dono".

Cruzeiro, Botafogo e Vasco realmente transferiram montante do percentual das ações suficiente para atribuir poder de controle ao investidor. E o fizeram porque tais clubes, levando em consideração o contexto de suas situações atuais, decidiram, soberanamente, que a atratividade ao investimento externo dependia de tal providência. O futuro mostrará se tomaram o caminho certo. Por agora, o que se vê depois de alguns anos muito difíceis, é que a esperança de dias melhores se mostra clara e potente para Vascaínos, Cruzeirenses e Botafoguenses. E isso, diante do cenário que se apresentava anteriormente, já é muita coisa. 

Já o Athletico Paranense vem manifestando interesse em constituir a SAF, entretanto, disposto a vender não mais do 40% das ações, ou seja, o clube quer, e pode perfeitamente, exercer a opção de permanecer no controle da gestão do time de futebol, no caso, com o investidor aportando recursos para aumentar a capacidade de investimento do time e confiando na gestão atual do clube como capaz de produzir o retorno esperado.

Trocando em miúdos: o clube que constitui a SAF nasce como único dono da SAF e só vai transferir propriedade a quem quer que seja se assim o quiser e decidir.

Aliás, mesmo que o clube transfira mais da metade das ações ao investidor, a forma do exercício desse controle, a participação do clube nas decisões e tudo mais, pode também ser objeto de um acordo entre clube e investidor - o acordo de acionistas - que atribua maior ou menor ingerência do clube nas decisões.

A SAF está longe de ser um modelo "engessado" porque, desde o início, levou em consideração o fato de que há mais de 800 clubes de futebol no Brasil e cada um tem suas condições próprias, seu tamanho, seu contexto e impor condições únicas para um ecossistema tão diverso seria tratar igualmente os desiguais, portanto, pavimentar o caminho para o insucesso de uma ideia que foi objeto de estudos por tantos anos até se tornar lei.

A partir disso, é preciso também enfrentar o tema da suposta "democracia" como sistema político dos clubes-associação atuais versus a efetiva participação das partes interessadas - stakeholders - num modelo como o da SAF.

Recentemente, o Advogado e Professor Ricardo Oliveira entregou ao Brasil mais uma preciosidade que só poderia vir da querida Bahia - "ah, mas que saudade eu tenho da Bahia", dizia Caymme com tanta razão - na forma do artigo "Clubes de futebol - Existe democracia na SAF?"1, em que conclui:

"A mudança para um tipo societário com regras mais bem definidas tende a aumentar os padrões de transparência, controle externo e compliance, a fim de o clube se tornar realmente atrativo a investidores, chegando ao ponto, inclusive, de possibilitar, a depender do modelo adotado, que o torcedor possa se tornar um acionista da SAF, aportando recursos e tendo direitos típicos de sócios empresariais.

Dentre tais direitos estão o de voz e voto nas assembleias e reuniões, direito de participar nos lucros, direito de pedir a prestação de contas, de eleger conselheiros de administração e fiscal, dentre outras maneiras de participarem mais ativamente do processo de tomadas de decisões estratégica e gerenciais, dentro da governança corporativa proposta pela Lei. Portanto, SIM! A Democracia nos clubes-empresas é possível de ser implementada!"

Portanto, é falsa a existência de suposta dicotomia, ou mesmo impossibilidade, entre o modelo da SAF e a adoção de instrumentos de participação efetiva, e democrática, dos interessados nos fóruns decisórios dos times de futebol.

Nos causa estranhamento, inclusive, ler e ouvir que tal ou qual clube não poderia constituir SAF, porque pertence ao "Povo", quando, na verdade, o que se verifica é que clubes com 10, 20 ou 30 MILHÕES de torcedores restringem a participação em suas assembleias, seja para eleição dos mandatários, seja para deliberação de quaisquer outros temas, a 800, 900 ou 1000 associados.

Que democracia é essa na qual CENTENAS de dirigentes, conselheiros e associados, decidem os destinos de times sustentados pelo amor - do qual advém a maior parte das receitas - de DEZENAS DE MILHÕES DE TORCEDORES?

Salvo melhor juízo, clube-associação, no qual o poder de deliberação está concentrado nas mãos de uns poucos dirigentes e suas oligarquias, muitas vezes mantidas no poder por si, familiares e aliados por mais de décadas, suportados pelo voto de outros poucos conselheiros e associados, no qual o torcedor em praticamente nada participa do processo de gestão para além de ser o "pagador das contas", está muito longe de ser uma democracia, muito menos pode afirmar com honesta convicção que pertence ao "Povo".

Só pertence ao Povo o País, Estado ou Cidade, ou mesmo, uma Instituição que confere efetivamente ao Povo o poder de deliberar sobre seus destinos.

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1 Disponível aqui.