IA na Justiça: O desafio de inovar com responsabilidade
quinta-feira, 6 de novembro de 2025
Atualizado em 5 de novembro de 2025 11:49
A IA deixou de ser promessa e passou a ser parte da realidade do sistema de Justiça. De forma silenciosa, mas profunda, tribunais, escritórios e instituições de mediação estão reformulando rotinas, redefinindo papéis e repensando os próprios limites éticos da profissão.
Nesse cenário, dois movimentos recentes ajudam a compreender o estágio atual dessa transformação: as novas Guidelines on the Use of Generative AI in Mediation, publicadas pela IBA - International Bar Association, e a 4ª edição da pesquisa da FGV Justiça sobre Inteligência Artificial no Poder Judiciário brasileiro.
Enquanto a IBA oferece uma visão global e normativa sobre como incorporar IA de forma ética em procedimentos de mediação, o estudo da FGV revela um retrato empírico e detalhado da adoção tecnológica pelos tribunais brasileiros. Juntos, esses dois marcos desenham o contorno de uma mesma paisagem: a busca por uma inovação jurídica responsável, em que a eficiência caminha ao lado da ética e da supervisão humana.
Um novo capítulo da inovação jurídica
A publicação das Guidelines on the Use of Generative AI in Mediation pela IBA (junho de 2025) representa um marco importante na discussão internacional sobre a integração da IA generativa nas práticas de mediação. O documento reconhece o potencial da tecnologia para reduzir custos, otimizar tarefas e ampliar o acesso à Justiça, mas também alerta para riscos como viés algorítmico, perda de confidencialidade e erosão da autonomia das partes.
De forma prática, as diretrizes listam aplicações possíveis - da triagem de casos à elaboração de documentos - e propõem parâmetros éticos que funcionam como um manual de boas práticas para mediadores, instituições e partes.
Entre os princípios centrais estão:
- Consentimento informado: As partes devem ser comunicadas sobre o uso de IA durante a mediação.;
- Supervisão humana: A decisão final é sempre humana - a IA atua como apoio, não substituição;
- Confidencialidade e transparência: Dados sensíveis devem ser protegidos e o uso das ferramentas, explicado;
- Neutralidade algorítmica: Recomenda-se comparar resultados de diferentes modelos para evitar vieses.
Ao propor inclusive um modelo de declaração de uso de IA, a IBA oferece um roteiro prático para quem deseja inovar com segurança. Trata-se de um documento vivo, que reconhece a velocidade da evolução tecnológica e incentiva revisões contínuas, sem perder de vista os fundamentos éticos da mediação.
Se no plano internacional a IBA estabelece parâmetros éticos para o uso da IA em mediação, no contexto nacional o debate ganha contornos práticos com o levantamento conduzido pela FGV Justiça.
O retrato brasileiro: maturidade e desafios
No contexto nacional, a FGV Justiça divulgou em outubro de 2025 a nova edição de sua pesquisa "Inteligência Artificial no Poder Judiciário", que acompanha a evolução do uso de IA pelos tribunais brasileiros desde 2019.
Os dados mostram que mais de 60 tribunais já utilizam ferramentas de IA, com destaque para o crescimento das aplicações generativas em tarefas administrativas e jurisdicionais - como elaboração de minutas e decisões, triagem de processos e atendimento automatizado.
Além de mapear soluções, o estudo destaca uma nova fase de governança digital, marcada por diretrizes de transparência, interoperabilidade, segurança e accountability.
Como resume o ministro Luis Felipe Salomão, coordenador da FGV Justiça:
"A IA deve ser uma ferramenta de apoio orientada ao processo - e não substituta do raciocínio jurídico."
Essa distinção é crucial. Se a IA transforma a forma como produzimos conhecimento jurídico, é a ética humana que continua determinando o sentido e os limites dessa transformação.
Convergências entre a IBA e a FGV: O humano no centro
Embora nascidas em contextos diferentes, as Guidelines da IBA e a pesquisa da FGV convergem em uma mensagem essencial: a tecnologia só serve à Justiça quando preserva o que há de mais humano em seu exercício - a escuta, a confiança e a autonomia das partes.
Ambas propõem uma inovação jurídica que não é apenas técnica, mas também cultural e institucional.
- Para mediadores e instituições, a pauta é a ética e a transparência na adoção de IA;
- Para o Judiciário, o desafio está na governança e na supervisão constante;
- Para o Direito como campo profissional, a transformação exige educação digital e uma mudança de mentalidade.
Da eficiência à ética: O verdadeiro salto tecnológico
O ponto de convergência entre esses dois marcos está no entendimento de que a eficiência sem ética é apenas automação.
O verdadeiro salto tecnológico no Direito não está em substituir pessoas por máquinas, mas em criar sistemas capazes de potencializar a escuta, a análise e a decisão humana.
Ao contrário do que se imagina, a inteligência artificial não simplifica a mediação - ela a complexifica, exigindo do mediador novas competências: compreender algoritmos, interpretar dados e, acima de tudo, preservar a dimensão humana do diálogo.
A inteligência artificial amplia fronteiras e acelera processos - mas cabe a nós, profissionais do Direito e da mediação, definir seus contornos éticos.
O futuro da Justiça não será apenas digital: será humano por escolha e tecnológico por vocação.
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INTERNATIONAL BAR ASSOCIATION. Guidelines on the Use of Generative Artificial Intelligence in Mediation. Mediation Committee of the International Bar Association, 19 June 2025. Disponível aqui. Acesso em: 7/10/25
FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS. Inteligência artificial no Poder Judiciário - 4ª edição. Rio de Janeiro: FGV Justiça, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 7/10/25.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 615, de 7 de fevereiro de 2025. Dispõe sobre o uso de inteligência artificial no âmbito do Poder Judiciário e institui princípios e diretrizes para sua governança. Brasília, DF: CNJ, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 7/10/25.
SALOMÃO, Luis Felipe. Declaração na apresentação da 4ª edição da Pesquisa de Inteligência Artificial no Poder Judiciário. Rio de Janeiro: FGV Justiça, 2025.

