Com o ano de 2025, estreamos uma nova coluna em nosso portal: a Migalhas Criminais. Aqui, iremos tratar quinzenalmente de temas relevantes sobre o Direito Penal e Processual Penal, com enfoque para os julgamentos mais recentes e relevantes dos Tribunais Superiores (STF e STJ). Convidaremos professores, doutrinadores e especialistas para nos auxiliarem nos debates, sempre preocupados em levar a melhor e mais depurada informação a você, nosso leitor.
O coordenador da nova coluna é o professor Júlio César Craveiro Devechi, que possui vasta experiência no Poder Judiciário, tendo atuado como servidor público de carreira em todas as suas instâncias. Júlio iniciou sua trajetória profissional em 2004 no TJ/PR, onde ficou até 2013, sempre no assessoramento de desembargador. Em 2013, ingressou na JF/PR - Justiça Federal do Paraná (TRF-4) como analista judiciário, cargo de provimento efetivo e privativo de bacharel em Direito. Na JF/PR, foi supervisor do JEF - Juizado Especial Federal e assessor de magistrados Federais de primeiro grau em Pato Branco/PR e em Curitiba/PR. Em 2022, migrou para Brasília/DF, onde trabalhou como assistente de ministro do STF. Hoje, é assessor de ministra do STJ. Na área acadêmica, Júlio é bacharel (2007) e mestre (2023) em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (UniCuritiba/PR). Desde 2024, cursa doutorado em Direito Constitucional no Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-Brasília/DF). Também é parecerista da Revista de Estudos Jurídicos do STJ, professor de Direito Penal e Processual Penal em Brasília/DF, autor e coautor de diversos artigos científicos e obras jurídicas.
Nesta primeira edição, nosso coordenador fará uma breve retrospectiva dos principais precedentes do STJ e do STF julgados em 2024, ano bastante movimentado para os operadores do Direito Criminal. Foi um período repleto de decisões paradigmáticas e debates intensos nos Tribunais Superiores, que firmaram entendimentos importantes e modulares para o aprimoramento do Direito Penal e Processual Penal brasileiros.
1. O STF e a abordagem policial com base em perfilamento racial (HC 208.240/SP)
No dia 11/4/24, o plenário da Suprema Corte finalizou o julgamento do Habeas Corpus 208.240/SP, suscitando reflexões sobre a prática do perfilamento racial em abordagens policiais no Brasil. No caso concreto, o paciente - um homem negro - foi abordado pela polícia, circunstância que deu ensejo à apreensão de 1,53 grama de cocaína e sua subsequente condenação por tráfico de drogas. Ao deliberar sobre a licitude da abordagem e das provas obtidas, o STF reafirmou princípios constitucionais importantes, ao mesmo tempo em que enfrentou um tema de alta sensibilidade social: o racismo estrutural.
A tese fixada pelo STF representa um marco na proteção de direitos fundamentais, ao exigir que a busca pessoal seja fundada em indícios objetivos. Esse posicionamento reafirma o papel contramajoritário do Judiciário em coibir práticas discriminatórias e assegurar que o combate ao crime não se dê à custa de direitos e garantias constitucionais, sobretudo de populações vulneráveis.
Tese de julgamento: "A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física".
2. O STF e o poder investigatório do MP(ADIns 2.943/DF, 3.309/DF e 3.318/MG)
Voltou à pauta do plenário do STF o tema relacionado aos poderes de investigação do MP, em especial seu alcance, seus parâmetros e limites. O julgamento da questão foi finalizado em maio de 2024, oportunidade em que os ministros reafirmaram a atribuição concorrente do MP - ao lado dos órgãos com competência de polícia judiciária - para promover, por autoridade própria, investigações de natureza penal.
No âmbito das ADIns 2.943/DF, 3.309/DF e 3.318/MG, foram fixadas as seguintes condições para a realização de procedimentos investigatórios pelo MP: (i) comunicação imediata ao juiz competente sobre a instauração e o encerramento do procedimento investigatório; (ii) observância dos prazos e regramentos previstos para inquéritos policiais, com necessidade de autorização judicial para prorrogações; (iii) aplicação subsidiária do art. 18 do CPP - Código de Processo Penal ao PIC - Procedimento Investigatório Criminal, que autoriza a realização de novas pesquisas depois de ordenado o arquivamento do inquérito e desde que haja notícias de novas provas; e (iv) distribuição por dependência ao juízo que primeiro conhecer do PIC ou do inquérito policial relacionado.
O STF reforçou, ainda, que o respeito às prerrogativas profissionais da advocacia e à reserva constitucional de jurisdição é inegociável. A documentação dos atos praticados no curso da investigação pelo MP deve estar integralmente disponível, em conformidade com a súmula vinculante 14/STF, a qual garante à defesa amplo acesso aos elementos de prova já documentados em procedimentos investigatórios criminais.
Teses de julgamento: "1. O MP dispõe de atribuição concorrente para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado. Devem ser observadas sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais da advocacia, sem prejuízo da possibilidade do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (súmula vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição (Tema 184 RG); 2. A realização de investigações criminais pelo MP tem por exigência: (i) comunicação imediata ao juiz competente sobre a instauração e o encerramento de procedimento investigatório, com o devido registro e distribuição; (ii) observância dos mesmos prazos e regramentos previstos para conclusão de inquéritos policiais; (iii) necessidade de autorização judicial para eventuais prorrogações de prazo, sendo vedadas renovações desproporcionais ou imotivadas; iv) distribuição por dependência ao juízo que primeiro conhecer de PIC ou inquérito policial a fim de buscar evitar, tanto quanto possível, a duplicidade de investigações; v) aplicação do art. 18 do CPP ao PIC instaurado pelo MP; 3. Deve ser assegurado o cumprimento da determinação contida nos itens 18 e 189 da Sentença no Caso Honorato e Outros versus Brasil, de 27/11/23, da CIDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos, no sentido de reconhecer que o Estado deve garantir ao MP, para o fim de exercer a função de controle externo da polícia, recursos econômicos e humanos necessários para investigar as mortes de civis cometidas por policiais civis ou militares; 4. A instauração de procedimento investigatório pelo MP deverá ser motivada sempre que houver suspeita de envolvimento de agentes dos órgãos de segurança pública na prática de infrações penais ou sempre que mortes ou ferimentos graves ocorram em virtude da utilização de armas de fogo por esses mesmos agentes. Havendo representação ao MP, a não instauração do procedimento investigatório deverá ser sempre motivada; 5. Nas investigações de natureza penal, o MP pode requisitar a realização de perícias técnicas, cujos peritos deverão gozar de plena autonomia funcional, técnica e científica na realização dos laudos".
3. O STF e a inconstitucionalidade da desqualificação da vítima mulher(ADPF 1.107/DF)
A ADPF 1.107/DF foi ajuizada pela PGR - Procuradoria-Geral da República, que apontou a existência de condutas omissivas e comissivas do Poder Público, capazes de perpetuar práticas discriminatórias contra mulheres vítimas de crimes sexuais. Entre os problemas destacados estavam os questionamentos em audiências sobre o modo de vida e a vivência sexual das vítimas, utilizados com frequência para desqualificá-las e desacreditar seus relatos.
Por unanimidade, o plenário do STF julgou procedente a referida ADPF em 23/5/24, fixando quatro diretrizes principais: (i) interpretação conforme a Constituição do art. 400-A do CPP, vedando-se a invocação de elementos relacionados à vivência sexual pregressa ou ao modo de vida das vítimas em audiências de instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual, sob pena de nulidade do ato; (ii) vedação à revalorização prejudicial da conduta da vítima em sentenças. Assim, expressão "comportamento da vítima" do art. 59 do Código Penal não pode ser interpretada para valorar negativamente aspectos de sua vida pregressa ou comportamento social; (iii) atuação judicial ativa para coibir essas práticas, impondo-se aos magistrados o dever de impedir tais abordagens durante os processos, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal; e (iv) comunicação dessas diretrizes aos tribunais inferiores, com a finalidade de uniformizar as práticas judiciais no país.
Tese de julgamento: "É inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de maneira que se proíbe eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou o modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais".
4. O STF e a tipicidade do porte de drogas para consumo pessoal (Tema 506 da repercussão geral)
No julgamento do RE 635.659/SP, o STF enfrentou o controverso tema da constitucionalidade do art. 28 da lei 11.343/06, que tipifica o porte de drogas para consumo pessoal. Por maioria, a Corte decidiu que o porte de até 40 gramas de maconha ou de seis plantas fêmeas, para consumo pessoal, é conduta atípica, sendo aplicadas medidas educativas em procedimento de natureza não penal e sem repercussões criminais.
A decisão não impede que quantidades menores sejam consideradas tráfico, desde que evidências adicionais apontem para o intuito de mercancia, como embalagens e outros instrumentos encontrados (balança de precisão, por exemplo). A tese fixada equilibra as políticas de combate ao tráfico de drogas no Brasil, mas atribui ao Congresso Nacional a responsabilidade pela regulamentação futura do tema.
Teses de julgamento: "1. Não comete infração penal quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação de sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III); 2. As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta; 3. Em se tratando da posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em juízo, na forma do regulamento a ser aprovado pelo CNJ. Até que o CNJ delibere a respeito, a competência para julgar as condutas do art. 28 da lei 11.343/06 será dos Juizados Especiais Criminais, segundo a sistemática atual, vedada a atribuição de quaisquer efeitos penais para a sentença; 4. Nos termos do § 2º do art. 28 da lei 11.343/06, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito; 5. A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes; 6. Nesses casos, caberá ao delegado de polícia consignar, no auto de prisão em flagrante, justificativa minudente para afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos arbitrários; 7. Na hipótese de prisão por quantidades inferiores à fixada no item 4, deverá o juiz, na audiência de custódia, avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio; 8. A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário".
5. O STF, a soberania do júri e a execução imediata da pena (Tema 1.068 da repercussão geral)
Em setembro de 2024, o STF consolidou o entendimento de que a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri autoriza a execução imediata da pena, independentemente de seu montante. No julgamento do RE 1.235.340/SC, fixou-se que a decisão do Conselho de Sentença não pode ser sustada por recursos ordinários, assegurando-se maior celeridade e efetividade às decisões? condenatórias proferidas em plenário.
Tese de julgamento: "A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada".
6. Os Tribunais Superiores e a retroatividade do ANPP(STF: HC 185.913/DF e STJ: Tema repetitivo 1.098)
No HC 185.913/DF, o STF decidiu pela possibilidade de celebração do ANPP em casos de processos em andamento na data de vigência da lei 13.964/19 ("Pacote Anticrime"), mesmo sem que tenha ocorrido prévia confissão do réu. O STJ, no Tema repetitivo 1.098, reforçou essa orientação, aplicando, da mesma forma, o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica. Ambos os Tribunais Superiores condicionaram o acordo à manifestação motivada do MP, promovendo segurança jurídica e uniformidade na aplicação do instituto.
Teses de julgamento: STF "1. Compete ao membro do MP oficiante, motivadamente e no exercício do seu poder-dever, avaliar o preenchimento dos requisitos para negociação e celebração do ANPP, sem prejuízo do regular exercício dos controles jurisdicional e interno; 2. É cabível a celebração de Acordo de Não Persecução Penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigência da lei 13.964, de 2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado; 3. Nos processos penais em andamento na data da proclamação do resultado deste julgamento, nos quais, em tese, seja cabível a negociação de ANPP, se este ainda não foi oferecido ou não houve motivação para o seu não oferecimento, o MP, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa, deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, após a publicação da ata deste julgamento, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ou não do acordo; 4. Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir da proclamação do resultado deste julgamento, a proposição de ANPP pelo MP, ou a motivação para o seu não oferecimento, devem ser apresentadas antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura, pelo órgão ministerial, no curso da ação penal, se for o caso".
Teses de julgamento: STJ "1 - O Acordo de Não Persecução Penal constitui um negócio jurídico processual penal instituído por norma que possui natureza processual, no que diz respeito à possibilidade de composição entre as partes com o fim de evitar a instauração da ação penal, e, de outro lado, natureza material em razão da previsão de extinção da punibilidade de quem cumpre os deveres estabelecidos no acordo (art. 28-A, § 13, do CPP. 2 - Diante da natureza híbrida da norma, a ela deve se aplicar o princípio da retroatividade da norma pena benéfica (art. 5º, XL, da CF), pelo que é cabível a celebração de Acordo de Não Persecução Penal em casos de processos em andamento quando da entrada em vigor da lei 13.964/19, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento, desde que o pedido tenha sido feito antes do trânsito em julgado da condenação. 3 - Nos processos penais em andamento em 18/9/24 (data do julgamento do HC 185.913/DF, pelo plenário do STF), nos quais seria cabível em tese o ANPP, mas ele não chegou a ser oferecido pelo MP ou não houve justificativa idônea para o seu não oferecimento, o MP, agindo de ofício, a pedido da defesa ou mediante provocação do magistrado da causa, deverá, na primeira oportunidade em que falar nos autos, manifestar-se motivadamente acerca do cabimento ou não do acordo no caso concreto. 4 - Nas investigações ou ações penais iniciadas a partir de 18/9/24, será admissível a celebração de ANPP antes do recebimento da denúncia, ressalvada a possibilidade de propositura do acordo, no curso da ação penal, se for o caso".
7. O STF e a absolvição por clemência no Tribunal do Júri(Tema 1.087 da repercussão geral)
A controvérsia posta no ARE - Agravo em Recurso Extraordinário 1.225.185/MG surgiu a partir de julgamento do Tribunal do Júri que absolveu um réu por meio de quesitação genérica, amparando-se em argumentos de clemência apresentados pela defesa em plenário. O MP local interpôs recurso de apelação com fundamento no art. 593, III, "d", do CPP, sustentando que a decisão afrontava as provas constantes nos autos.
O TJ/MG manteve o veredito absolutório, ressaltando a soberania dos jurados, conforme garantido pelo art. 5º, XXXVIII, "c", da Constituição Federal. Inconformado, o MP recorreu ao STF, invocando a necessidade de controle mínimo da racionalidade das decisões do júri.
Por maioria, o STF fixou duas teses principais: (i) cabimento do recurso de apelação, nos termos do art. 593, III, "d", do CPP, quando a decisão do Tribunal do Júri, fundamentada em quesitação genérica, for considerada manifestamente contrária às provas dos autos; e (ii) vedação ao Tribunal de Apelação de determinar novo júri se constar em ata a apresentação de tese defensiva que conduza à clemência, desde que compatível com a Constituição Federal, os precedentes vinculantes do STF e as circunstâncias fáticas dos autos.
Tese de julgamento: "1. É cabível recurso de apelação com base no art. 593, III, 'd', do CPP, nas hipóteses em que a decisão do Tribunal do Júri, amparada em quesito genérico, for considerada pela acusação como manifestamente contrária à prova dos autos. 2. O Tribunal de Apelação não determinará novo júri quando tiver ocorrido a apresentação, constante em ata, de tese conducente à clemência ao acusado, e esta for acolhida pelos jurados, desde que seja compatível com a Constituição, os precedentes vinculantes do STF e com as circunstâncias fáticas apresentadas nos autos".
8. O STF e a tipicidade do porte de arma branca(Tema 857 da repercussão geral)
O caso concreto em discussão no ARE 901.623/SP envolvia a condenação do recorrente ao pagamento de 15 dias-multa por portar uma arma branca sem justificativa plausível. Alegava-se, no recurso, a inconstitucionalidade do art. 19 da LCP - lei das Contravenções Penais devido à falta de regulamentação específica exigida pelo próprio dispositivo. Além disso, questionava-se a compatibilidade do preceito com o princípio da taxatividade penal, argumento central da defesa.
Por maioria, o STF entendeu que: (i) o art. 19 da LCP não exige regulamentação complementar para sua aplicação às armas brancas, considerando-se suficiente a avaliação judicial do elemento subjetivo do agente e da potencialidade lesiva do instrumento; (ii) a norma penal é compatível com o princípio da legalidade, uma vez que define com clareza o comportamento vedado, cabendo ao magistrado analisar as circunstâncias concretas para aferir a tipicidade da conduta; e (iii) não houve usurpação da competência da União, já que o fundamento da condenação não se baseou em normas estaduais, mas no próprio decreto-lei Federal.
O precedente reafirma a vigência do art. 19 da LCP em um contexto de questionamentos sobre a utilidade e a contemporaneidade das contravenções penais. A decisão também sinaliza uma abordagem pragmática ao princípio da taxatividade, permitindo certa abertura interpretativa para avaliar o contexto fático de cada caso. O STF destacou, nesse aspecto, que, ao avaliar a tipicidade, o juiz deve observar o elemento subjetivo (a intenção do agente ao portar a arma branca) e a potencialidade lesiva da arma (a capacidade do instrumento de causar dano à incolumidade física de terceiros).
Tese de julgamento: "O art. 19 da lei de Contravenções penais permanece válido e é aplicável ao porte de arma branca, cuja potencialidade lesiva deve ser aferida com base nas circunstâncias do caso concreto, tendo em conta, inclusive, o elemento subjetivo do agente".
9. O STJ e os contornos da confissão extrajudicial(AREsp 2.123.334/MG)
A Terceira seção do STJ abordou a confissão extrajudicial no AREsp 2.123.334/MG, reafirmando sua inadmissibilidade quando colhida de forma informal, fora de estabelecimentos estatais oficiais e sem garantias de licitude. O órgão fracionário do Tribunal, responsável pela uniformização da jurisprudência criminal no Brasil, alertou para os riscos de falsas confissões, destacando a necessidade de controle rigoroso sobre a atividade policial. A decisão enfatiza a proteção contra práticas abusivas e reforça o papel do MP como fiscal da lei.
Teses de julgamento: "1: A confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu). 2: A confissão extrajudicial admissível pode servir apenas como meio de obtenção de provas, indicando à polícia ou ao MP possíveis fontes de provas na investigação, mas não pode embasar a sentença condenatória. 3: A confissão judicial, em princípio, é, obviamente, lícita. Todavia, para a condenação, apenas será considerada a confissão que encontre algum sustento nas demais provas, tudo à luz do art. 197 do CPP. 4. A aplicação dessas teses fica restrita aos fatos ocorridos a partir do dia seguinte à publicação deste acórdão no DJe (2/7/24). Modulação temporal necessária para preservar a segurança jurídica (art. 927, § 3º, do CPC). 5. Ainda que sejam eventualmente descumpridos seus requisitos de validade ou admissibilidade, qualquer tipo de confissão (judicial ou extrajudicial, retratada ou não) confere ao réu o direito à atenuante respectiva (art. 65, III, "d", do CP) em caso de condenação, mesmo que o juízo sentenciante não utilize a confissão como um dos fundamentos da sentença.
10. O STJ e a impossibilidade de fixação da pena abaixo do mínimo legal(súmula 231 do STJ)
Em agosto de 2024, a Terceira seção do STJ reafirmou a validade de sua súmula 231, que proíbe a redução da pena abaixo do mínimo legal, na segunda fase da dosimetria, mesmo diante da incidência de circunstâncias atenuantes genéricas.
A controvérsia era saber se a expressão "sempre atenuam a pena", presente no caput do art. 65 do Código Penal, autorizava a mitigação da reprimenda corporal abaixo do mínimo em caso de incidência de circunstâncias atenuantes genéricas. Prevaleceu o entendimento do ministro Messod Azulay Neto, no sentido de que a questão já foi enfrentada pelo STF em precedente vinculante (Tema 158 da repercussão geral), não cabendo ao STJ afrontá-lo com sinalização jurisprudencial em outro sentido.
Enunciado (súmula 231 do STJ): "A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal".
Tese (Tema 158 da repercussão geral): "Circunstância atenuante genérica não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal".
11. O STJ e a ausência de prazo das medidas protetivas de urgência(Tema repetitivo 1.249)
No mês de novembro de 2024, a Terceira seção deliberou sobre a natureza jurídica das medidas protetivas de urgência, previstas na lei Maria da Penha (lei 11.340/06), bem como sobre a possibilidade ou não de fixação de prazo predeterminado para sua duração pelo juiz.
O colegiado compreendeu que essas medidas possuem natureza de tutela inibitória, não se vinculando à existência prévia de procedimentos da persecução criminal, como o inquérito policial ou a ação penal. Além disso, prevaleceu o entendimento de que as medidas protetivas de urgência devem viger enquanto perdurar o risco à mulher, ou seja, sem a possibilidade de fixação de prazo predeterminado de validade pelo juiz.
O texto final da tese de julgamento ainda não foi publicado pelo STJ.
12. O STJ e os limites à atuação judicial na prisão preventiva(súmula 676 do STJ)
No final do ano, foi aprovada pela Terceira seção do STJ a súmula 676, estabelecendo que, após a lei 13.964/19 ("Pacote Anticrime"), é vedado ao juiz decretar a prisão preventiva ou converter a prisão em flagrante em prisão preventiva de ofício. Essa consolidação jurisprudencial reafirma o sistema acusatório e a separação das funções judiciais e persecutórias, da forma prevista no art. 3º-A do CPP.
Enunciado: Em razão da lei 13.964/19, não é mais possível ao juiz, de ofício, decretar ou converter prisão em flagrante em prisão preventiva.
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Esta primeira edição da coluna "Migalhas Criminais" representa uma singela homenagem à memória do advogado paranaense Antonio Devechi, falecido em Curitiba/PR no último dia 2/1/25. Devechi nasceu em Mandaguari/PR em 25/3/48 e trabalhou no Banestado - Banco do Estado do Paraná como gerente geral e gerente regional em diversas agências. Formou-se em Direito aos 48 anos de idade, sendo o primeiro colocado de sua turma de graduação. Escreveu mais de 15 livros jurídicos, todos publicados pela Editora Juruá de Curitiba/PR. Os últimos cargos ocupados por Devechi foram o de Diretor-Geral e de Secretário de Estado na Secretaria de Justiça, Família e Trabalho do Paraná.