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O TJ/SP e a reforma daquela que ficou conhecida como "a 1ª sentença de LGPD no mercado imobiliário" - Um começo de jurisprudência que revela a maturidade do judiciário paulista

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Atualizado às 07:56

Na semana passada, a 3ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, reformou aquela que, desde 1/10/2020, ficou conhecida como a primeira sentença proferida com base na Lei Geral de Proteção de Dados.

No acórdão, proferido na sessão de julgamento realizada em 24/08/2021, a relatora, Maria do Carmo Honório acolheu as razões de apelação da empresa Cyrela para afastar a condenação que havia sido estipulada no ano anterior em razão de supostos danos morais que o autor, advogado especializado em propriedade intelectual, havia alegado ter sofrido em função de publicidade por mensagens de WhatsApp, e-mails e ligações que afirmou ter recebido.

Em síntese, tentou imputar à empresa Cyrela a responsabilidade por tais contatos, alegando que referida empresa teria indevidamente divulgado seus dados de contato para terceiros e, por isso, pediu indenização de R$ 60.000,00 e liminar para que cessasse a suposta divulgação de seus dados e os contatos indesejados, sob pena de multa diária.

Na sentença, a juíza da 13ª Vara Cível do Foro Central da Capital havia julgado procedentes os pedidos, porém condenando a empresa a uma indenização de R$ 10.000,00, tendo invocado para tanto a LGPD e o Código de Defesa do Consumidor.

O acórdão, publicado ontem, 1/9/2021, é um marco extremamente importante não só para o mercado imobiliário - que tem como um de seus maiores ativos a confiança de seus clientes com o tratamento das informações por eles fornecidas - como, também, para a própria maturidade das relações B2C (business-to-consumer, em inglês, ou empresa-consumidor, em português), uma vez que estabelece importantes premissas a serem observadas na aplicação da Lei Geral de Proteção de Dados.

A primeira delas é o marco temporal a ser respeitado para a incidência da nova lei, ponto em que o acórdão foi cirúrgico ao afirmar que "embora a MM. Magistrada a quo tenha também aplicado a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD - lei 13.709/2018) ao caso em rela, não havia fundamento para tanto, eis que, quando da contratação do empreendimento da Cyrela pelo autor (10 de novembro de 2018 - págs. 55/106) e do suposto vazamento de dados, ela ainda não estava em vigor" (destaques nossos).

Percebe-se, portanto, que foi confirmada, como regra de início incidência temporal, como não poderia deixar de ser, o momento da celebração da contratação, ou lato sensu, do começo da relação entre as partes; o que foi, inclusive, reforçado pela relatora com a citação de trecho do acórdão proferido no julgamento do REsp 1.694.405-RJ, no qual se concluiu que "a regra a ser utilizada para a resolução de uma dada controvérsia deve levar em consideração o momento de ocorrência do ato ou, em outras palavras, quando foram publicados os conteúdos infringentes"; arrematando, ainda, a relatora, quanto a esse ponto, dizendo que "a regra geral é, pois, a irretroatividade da norma".

Outro ponto de suma relevância e que servirá de norte para a parametrização de julgamentos futuros e que fatalmente servirá de forte desestímulo à propositura de ações buscando indenização por danos morais com fundamento em atos corriqueiros da vida em sociedade é o fato de o acórdão ter estabelecido, também como regra a ser observada, a imprescindibilidade de existência nos autos de mais que meras alegações e argumentos para comprovar o dano.

Isso porque expressamente o acórdão concluiu no caso em questão, que "não há prova inequívoca de que foi a requerida quem repassou os dados pessoais do requerente aos prestadores de serviços que o contataram por e-mail e mensagens de WhatsApp (págs. 107/146)" (destaques nossos).

O acórdão foi ainda mais contundente ao destacar, em sua fundamentação, que "Em que pese a informação de uma das prestadoras que entrou em contato com o autor sobre o acesso a mailing por meio de 'portal de construtoras' (pág. 145), este fato, por si só, não identifica a ré como a responsável pelo alegado vazamento dos dados, máxime porque outra informou que trabalhavam 'com diversas parcerias', arrematando: 'não sei ao certo quem passou o seu Contato' (pág. 111)." (destaques nossos); bem como, no mesmo sentido, que, "as referências ao nome do empreendimento, por si só, não são suficientes para provar a autoria do suposto vazamento de informações" e que, por isso, "a prova não é segura no sentido de que foi a Cyrela quem repassou seus dados a terceiros, de tal modo que não é possível verificar o nexo de causalidade a justificar a condenação da requerida como pleiteado na petição inicial".

O julgado se estabelece de fato como um marco jurisprudencial no tocante às relações jurídicas tuteladas pela LGPD e os limites e requisitos a ela aplicáveis, principalmente quanto à matéria probatória ao ter definido, de forma basilar, os parâmetros gerais a serem observados nesse sentido.

Isso porque a relatora foi didática ao esclarecer que "não restou comprovado nenhum fato do qual se possa inferir o efetivo dano extrapatrimonial, muito menos por conduta ilícita da ré, e, sem a demonstração deste, não há fundamento para imposição da obrigação de indenizar" (destaques nossos), indicando claramente que o Tribunal Bandeirante está se alinhando no sentido de não permitir condenações com base em tal espécie de alegação sem que haja fatos que comprovem a real ocorrência de dano moral, mesmo sob alegação de suposta infringência à Lei Geral de Proteção de Dados.

Também foi aplicado ao âmbito das supostas violações de intimidade o entendimento já praticado anteriormente pelo Tribunal de que o mero aborrecimento não gera dano moral, tendo assim expresso no recentíssimo acórdão: "As alegadas ligações, mensagens e e-mails recebidos pelo autor, ainda que de forma reiterada e apesar de causar incômodo, não caracterizam, por si só, violação de intimidade. Na realidade, nas circunstâncias apresentadas, elas não ultrapassaram a esfera do mero aborrecimento" (destaques nossos).

Por fim, vale ressaltar trecho que deverá ressoar em julgamentos futuros envolvendo alegação de danos em função de contatos tidos por indesejados; trecho esse em que a relatora, de modo claro e preciso concluiu que "O consumidor, no caso, independentemente da autoria das mensagens, não sofreu nenhum ônus excepcional, a não ser aquele que todo ser humano tem que aprender a suportar por viver numa sociedade tecnológica, frenética e massificada, sob pena da convivência social ficar insuportável".

Como se depreende dos trechos acima transcritos do recentíssimo acórdão, o Tribunal de Justiça de São Paulo, com esse entendimento, mostra sua maturidade e plena capacidade de corresponder aos desafios que a nova Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais vem trazendo desde sua entrada em vigor, garantindo aos titulares dos dados a correta defesa de seus direitos sem por outro lado avançar sobre as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, devidamente protegidos neste que se torna o primeiro passo para o desenvolvimento de um efetivo sistema interpretativo da LGPD.

Para um infográfico ilustrativo dos fatos, alegações e decisões relacionados ao processo, clique aqui.

*Rubens Carmo Elias Filho é advogado com mais de 25 anos de experiência na área imobiliária, sócio responsável pelas áreas de direito imobiliário e contencioso cível imobiliário do Elias, Matias Advogados. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde também obteve o título de especialista lato sensu em Direito Empresarial. Mestre e Doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Professor de Graduação e Pós-Graduação em Direito Civil e Direito Notarial e Registral da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/SP. Presidente da Comissão de Condomínios do IBRADIM. Presidente do Conselho Deliberativo da AABIC. Professor e Palestrante em diversas instituições de ensino, entre elas PUC/SP, EPM, EPD, FGV e INSPER. Autor de dezenas de artigos jurídicos na área de Responsabilidade Civil e Direito Imobiliário.

**Ricardo Augusto de Castro Lopes é advogado associado do Elias, Matias Advogados, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional de São Paulo, desde 2003. Atua no contencioso cível empresarial estratégico em direito imobiliário, Lei Geral de Proteção de Dados, propriedade intelectual e direito do consumidor. Bacharel em Direito e Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, com master em Estudos da União Europeia pela Universidade Livre de Bruxelas - ULB e em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo - FESP-SP.