COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Migalhas Edilícias

Abordagens do direito imobiliário.

Alexandre Junqueira Gomide e André Abelha
Antes da lei da edição da lei 13.786/16 - conhecida como "lei dos distratos", a jurisprudência, com base no CDC, fixava retenções variáveis, o que gerava insegurança e desequilíbrio entre as partes. A lei 13.786/18 surgiu buscando uniformizar as práticas, permitindo a retenção de valores de forma objetiva, de acordo com os critérios fixados na lei e a cobrança de taxa de fruição, inclusive para lotes não edificados. 1. Aplicação da lei do distrato e a possibilidade de retenções contratuais Importante entender o contexto histórico que originou a lei retro citada. Nos anos de 2015 e 2016, houve uma avalanche de ações de rescisão contratual de compromissos e/ou promessas de venda e compra por conta de um conjunto de fatores econômicos, financeiros, políticos, inclusive desdobramentos da operação "lava-jato". Considerando o fato que a maioria dos empreendimentos se encontravam ainda na fase de obras, o pedido de devolução de parcelas é um momento crítico, pois é justamente nessa fase que todas as parcelas são utilizadas para a implantação das obra de infraestrutura nos loteamentos, já que os loteadores não contam com financiamento de suas obras. Justamente por essa razão, os pedidos resolução/rescisão contratual da venda de imóveis impactaram diversos empreendimentos, o que levou muitas empresas a entrarem recuperação judicial. A entrada em vigor da lei 13.786 de 2018, foi uma resposta dada pelo legislador para trazer maior segurança jurídica aos contratos de compra e venda de imóveis ao disciplinar as regras que devem ser observadas para a rescisão por iniciativa do comprador, dentre elas a possibilidade da retenção de valores referentes à multa contratual e à taxa de ocupação ou fruição, mesmo nos casos de lotes não edificados. Com a edição da lei do distrato, o legislador positivou essa prática ao prever a cláusula penal de 10% sobre o valor atualizado do contrato (art. 26-A da lei 6.766 de 1979), conferindo uniformidade e previsibilidade às relações contratuais imobiliárias. Dessa forma, o equilíbrio entre os direitos do comprador e do vendedor foi consolidado no ordenamento jurídico, reduzindo a insegurança que antes recaía sobre as partes envolvidas. Outrossim, destacando que a taxa de fruição ou taxa de ocupação foi um dos pontos de maior inovação da lei do distrato. O art. 32-A, inciso I, passou a autorizar a retenção de valores correspondentes à eventual fruição do imóvel, até o equivalente a 0,75% do valor atualizado do contrato (Brasil, 2018). Essa posição reforçou o princípio da autonomia privada e assegurando o equilíbrio entre os direitos e deveres das partes envolvidas na relação contratual. Decisão recente proferida pela 4ª turma do STJ (2025) confirmou a legalidade dessas retenções, notadamente o REsp 2.104.086, por meio do qual foi mantido o acórdão do TJ/SP, que havia reconhecido a validade das cláusulas de dedução para uma rescisão de compromisso de venda e compra assinado na vigência da lei do distrato. Em referida demanda judicial, o adquirente que havia celebrado um contrato de promessa de compra e venda de um lote em um empreendimento de lazer na vigência da lei do distrato e, pleiteou a restituição integral dos valores pagos. O TJ/SP declarou a rescisão do contrato, mas entendeu que as retenções contratuais e que estavam em consonância com a lei 13.786/18 eram perfeitamente legais e não haveria nada a ser devolvido ao comprador. O primeiro ponto crucial trazido no brilhante voto da relatora ministra Maria Isabel Gallotti e que merece aplausos é o reconhecimento expresso do princípio constitucional dos três poderes: não pode o Poder Judiciário alterar uma lei emanada pelo Poder Legislativo, deve sim impingir seu cumprimento, tendo sido invocado a súmula 1 do STF1. A única ressalva para o Judiciário não cumprir uma lei seria na hipótese de sua legalidade e ou constitucionalidade ter sido questionada judicialmente com sentença reconhecendo sua ilegalidade ou inconstitucionalidade. Como não houve questionamento de sua legalidade e ou constitucionalidade, tem o Judiciário o dever de zelar pelo seu cumprimento, prezando pela segurança jurídica e estabilidade nas relações contratuais. O segundo ponto interessante desta decisão diz respeito à taxa de fruição: ela pode ser aplicada tanto para lotes edificados como também para lotes não edificados, contrariando as recentes decisões da 3ª turma do STJ (Resp 2.117.412/SP, Resp 211.681/SP, Resp 2.107.422/SP, Resp 2.106.548), uma vez que a lei não faz qualquer distinção para sua aplicação. Destarte, a cobrança da taxa é admitda desde o momento que o imóvel foi disponibilizado ao compromissário comprador, que poderá usá-lo como bem entender, seja para lazer, construção, para revenda, estacionamento e ou qualquer outro uso. Assim foi decidido: "Ressalte-se que o fato do imóvel em questão se tratar de lote sem qualquer edificação, não afasta a existência dos lucros cessantes, tendo em vista que a ocupação do bem privou a vendedora de utilizar e/ou destinar o imóvel ao que melhor lhe conviesse". Em relação aos julgados acima citados, da 3ª turma do STJ, Gomide (2025) comenta que a decisão da 3ª turma do STJ no REsp 2.106.548/SP evidencia uma resistência significativa à aplicação plena da lei do distrato (lei 13.786 de 2018), ao preferir argumentos baseados em precedentes e súmulas anteriores à vigência da norma e interpretar o CDC como obstáculo à sua incidência. Esse entendimento revela certa desconsideração do esforço legislativo que visou justamente estabelecer um marco normativo específico para os contratos imobiliários, com previsibilidade e critérios objetivos de resolução contratual. Ao invocar regras anteriores como se ainda prevalecessem sobre o dispositivo novo e dedicado à matéria, o voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, parece subestimar a competência do Legislativo em disciplinar relações que envolvem interesses econômicos e consumidores, o que gera insegurança jurídica e debilita a coerência normativa entre contrato e lei moderna (Gomide, 2025). Ainda, em relação ao julgado da 4ª turma, foi ponderado que as retenções aplicadas pela Loteadora são lícitas desde que: a) as regras de retenção estejam expressamente previstas no contrato de promessa ou compromisso de venda e compra; b) que essas regras de retenção estejam em perfeita consonância com a lei do distrato; e c) que o comprador tenha sido previamente informado das consequências da desistência, com sua rubrica na cláusula que trata dessas retenções. Assim, a Corte reafirmou que, desde que o comprador tenha sido previamente informado, é possível aplicar os descontos previstos na lei e no contrato, ainda que o resultado final não gere devolução de valores, nos seguintes termos:  "(...) Não se verifica ofensa ao art. 53 do CDC, pois não há previsão no contrato de cláusula que estabeleça a perda total das prestações pagas em benefício do loteador. Na verdade, o contrato expressamente previu a devolução das quantias pagas com descontos permitidos na lei em vigor quando de sua celebração. Se nada há a ser restituído ao adquirente é porque ele pagou quantia muito pequena, que não é capaz de quitar sequer a cláusula penal estabelecida contratualmente dentro dos limites da lei".   Considerações finas  Nesse escopo, a decisão da 4ª turma do STJ, ao reconhecer a legalidade da retenção contratual e da taxa de fruição mesmo em terrenos sem edificação, reforça a importância da previsibilidade e da segurança jurídica nas relações entre loteadores e adquirentes, consolidando a compreensão de que a desistência contratual implica consequências financeiras proporcionais e amparadas pela legislação vigente, valorizando o cumprimento dos compromissos firmados e desestimulando o rompimento injustificado dos contratos. Tal entendimento demonstra maturidade na interpretação da norma, alinhando-se aos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e do equilíbrio econômico das partes. Ao admitir que a posse do lote, ainda que não edificada, constitui forma de fruição que impede sua comercialização por terceiros, o STJ consolidou uma leitura coerente com a finalidade compensatória da taxa e com a proteção da legítima expectativa do vendedor/loteador. Assim, a decisão fortalece o ambiente jurídico e econômico do setor imobiliário, conferindo maior estabilidade às negociações e evitando a utilização abusiva do distrato. Em síntese, a posição do STJ deve ser apoiada, pois harmoniza o interesse do consumidor com a necessidade de preservar a confiança e a segurança das relações contratuais no mercado imobiliário contemporâneo. _______ Referências STJ. Superior Tribunal de Justiça. Sob Lei do Distrato, é possível aplicar multa por desistência e taxa de ocupação de lote não edificado. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 20 out. 2025 BRASIL. Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano e dá outras Providências. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2025. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 2104086 - SP (2023/0373911-8). Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti. Recorrente: Anderson Saturnino dos Santos. Recorrido: Momentum Empreendimentos Imobiliários Ltda. Julgamento: 7 de outubro de 2025.  BRASIL. Lei nº 13.786, de 27 de dezembro de 2018. Altera as Leis 4.591, de 16 de dezembro de 1964, e 6.766, de 19 de dezembro de 1979, para disciplinar a resolução do contrato por inadimplemento do adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2025. BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 17 out. 2025. GOMIDE, A. J. Lei dos Distratos, insegurança jurídica e a atual jurisprudência do STJ. 2025. Migalhas Edilícias. Disponível aqui. Acesso em: 20 out. 2025. 1 Súmula 1- do STF. "Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência no todo ou em parte."
I - Panorama fático: o que é o caso em julgamento e qual sua relevância para o mercado imobiliário? O STJ afetou dois recursos especiais (REsp. 1.874.133/SP e REsp 1.883.871/SP), para julgamento sob a sistema dos recursos repetitivos para enfrentar a questão da (im)possibilidade penhora do imóvel objeto de alienação fiduciária em garantia, em decorrência de dívida condominial. O Tema 1.266 do STJ1 definirá se as dívidas condominiais podem atingir o imóvel dado em garantia fiduciária por ocasião da operação de financiamento habitacional. Em outras palavras, definirá se o credor fiduciário pode ter o imóvel lastro de sua garantia atingido pela penhora dos créditos oriundos das despesas condominiais inadimplidas pelo condômino, devedor fiduciante. O julgamento tem fortíssimo impacto para a segurança jurídica das relações contratuais imobiliárias, notadamente para a higidez da alienação fiduciária disciplinada pela lei 9.514/97. As consequências sistêmicas - sociais e econômicas -, além das jurídicas, são verdadeiramente relevantes. Antes de abordar a importância da prevalência da garantia fiduciária para o crédito imobiliário e, por isso, o desacerto de ser admitida a penhora para satisfazer dívida condominial do devedor fiduciante, faz-se um registro. Não se desconhece a preocupação com a sustentabilidade dos condomínios, tampouco a função social e a capacidade de custeio como elementos essenciais à vida urbana. Porém, se o imóvel objeto da alienação fiduciária puder ser atingido pela penhora em razão de despesas condominiais do devedor fiduciante haverá danos a estrutura da garantia e ao crédito imobiliário. Nesses quase 30 anos de sua vigência, a alienação fiduciária foi responsável por viabilizar o crédito imobiliário, conferindo condições econômicas para a compra da moradia financiada, com prazos e juros adequados. Como bem pontuou a ABRAINC - Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias, em sua manifestação no STJ, o sistema jurídico tem instrumentos suficientes e proporcionais para tutelar o crédito condominial, sendo admitido: (i) penhora dos direitos aquisitivos; (ii) operações de cessão ou antecipação de receitas condominiais; (iii) o reconhecimento de título executivo extrajudicial. É certo, portanto, que as características do título condominial são suficientes para a tutela da coletividade, não sendo proporcional, tampouco sistemicamente funcional desestruturar a alienação fiduciária, sob pena de consequências econômicas gravíssimas2. O economista Gustavo Franco ofereceu parecer nos autos do Tema 1.266 dando conta desta preocupação com as relações condominiais, mas ponderou que não há necessidade de comprometer a integridade da garantia. Eis que permitir a penhora do imóvel dado em garantia promove uma ruptura na arquitetura da alienação fiduciária, comprometendo seriamente o mercado de crédito imobiliário. Essa mudança de entendimento, em termos econômicos, representaria sacrificar a coletividade que financia e adquire moradias, para enfrentar, apenas, um problema pontual e equacionado por instrumentos legais eficientes3. Nesse contexto, a tutela dos interesses do condomínio - ainda que seja legítima e encontre respaldo em mecanismos próprios e eficientes de cobrança - não pode comprometer a lógica do sistema de garantia da alienação fiduciária. Caso contrário, corre-se o risco de socializar prejuízos privados no âmbito do crédito, encarecer o financiamento habitacional e ressuscitar a insegurança jurídica que o legislador tentou corrigir com a lei da alienação fiduciária. O STJ e o STF já se manifestaram em diversas ocasiões sobre a importância da alienação fiduciária e do procedimento de execução extrajudicial da garantia para o fomento do crédito imobiliário do Brasil4. II. O crédito imobiliário e a alienação fiduciária Com a deterioração do SFH - Sistema Financeiro de Habitação, a partir dos anos 1970 e diante do cenário macroeconômico nos anos que sucederam, o crédito se tornou escasso e foi por meio do SFI - Sistema Financeiro Imobiliário que se reoxigenou o mercado de crédito. Ele foi concebido para desregulamentação da economia e modernização dos instrumentos e mecanismos de financiamento à atividade produtiva5. Basicamente, o SFI renovou as energias do SFH, dada a exaustão da captação dos recursos que estavam concentrados nos depósitos na caderneta de poupança. Assim, foram criadas fontes alternativas de recursos para o financiamento imobiliário, como os CRIs - Certificados de Recebíveis Imobiliários e estabelecidas novas garantias reais imobiliárias. Isso porque havia risco associado à demanda de crédito e preocupação quanto à falência do incorporador na década de 90. Do lado da oferta, a própria dinâmica de retomada dos imóveis reduzia o apetite para concessão de crédito. Afinal, o processo de recomposição às situações de mora dos adquirentes era lento, caro e burocrático6. Foi nesse cenário que a alienação fiduciária surgiu como instrumento engenhoso e eficaz para o fomento do crédito habitacional pelas instituições financeiras, incorporadores e loteadores, cuja função é conferir o lastro e garantir a conversibilidade fluída e ágil do crédito. De fato, a execução extrajudicial da garantia reduziu o risco de crédito e foi importante alavanca de estímulo financeiro para o crescimento do mercado imobiliário, na época, desconfiado pela morosidade e ineficácia da hipoteca. Afinal, o imóvel é o lastro essencial do crédito imobiliário, cuja segurança depende da higidez e da celeridade na realização da garantia. O recrudescimento do crédito imobiliário a partir da década de 90 se deu, essencialmente, pela chegada da alienação fiduciária de bem imóvel. A representatividade desta garantia no mercado habitacional é percebida pelo volume de contratação de financiamentos de imóveis por meio da alienação fiduciária, só em 2024, mais de 78,29 milhares de unidades financiadas com uso desta garantia contra 3,6 milhares por meio da hipoteca. Além disso, o uso desta garantia fez reduzir a própria inadimplência no setor. Se considerada a evolução da inadimplência de 2003, que girava em torno de 11,2% em comparação com 2011, onde a inadimplência atingiu 1,5%. O sucesso da garantia para o crédito imobiliário é incontroverso. Nesse contexto, admitir a penhora do imóvel dado em alienação fiduciária para saldar dívida condominial traz risco fundamental ao crédito imobiliário, tornando a principal garantia do mercado ineficaz. III. A inadimplência das despesas condominiais. A origem da discussão posta em julgamento pelo STJ tem relação direta com a crescente judicialização de despesas condominiais inadimplidas e, em alguns casos pontuais, a dificuldade de saldar a dívida junto ao condômino. O problema foi se agravando nos últimos anos, em que se tem experimentado um cenário de taxa de juros básica ("Selic") elevada. Na prática, a inadimplência do condomínio funciona como uma espécie de crédito informal para o devedor, em razão do baixo custo da dívida e da transferência deste ônus aos demais condôminos, que precisam arcar com um rateio forçado referente à parcela do condômino inadimplente. Esse contexto pode resultar no aumento da quota condominial. Do ponto de vista econômico, cria-se uma distorção no custo da dívida condominial que, na prática, estimula o condômino a inadimplir. Com a Selic em 15%, a multa de apenas 2% revela-se pouco eficaz, levando o condômino a considerar mais vantajoso postergar o pagamento do débito condominial. Isso significa que atrasar o condomínio é uma alternativa viável e financeiramente atraente quando comparada com outros produtos bancários mais onerosos, como o cartão de crédito e o cheque especial. Nesse sentido, os condomínios passaram a buscar uma alternativa drástica para equalizar os débitos condominiais não pagos: penhora do imóvel alienado fiduciariamente. IV. Riscos sistêmicos da penhora do imóvel alienado fiduciariamente Não deve ser chancelada a penhora da garantia. É um erro não só jurídico, mas econômico permitir que o imóvel - e não apenas os direitos aquisitivos - seja penhorado para satisfazer as dívidas condominiais. Se chancelado pelo Judiciário, esse movimento de enfraquecimento da alienação fiduciária comprometerá a solidez e a integridade do sistema nacional de crédito imobiliário, com dano colateral iminente: o aumento do custo de capitação de recursos. A penhora do imóvel representará uma mudança na premissa de precificicação dos custos de financiamento, dado que a segregação patrimonial, antes eficaz, passa a se tornar frágil, levando o concedente do crédito a adotar cautelas adicionais na hora de viabilizar o financiamento. Em síntese, o crédito imobiliário ficará mais caro e restrito para todos. Ou seja, o spread bancário vai aumentar. Segundo Gustavo Franco, o valor da taxa de juros é inversamente proporcional à qualidade da garantia. Logo, se a alienação fiduciária é enfraquecida, as taxas de juros, que são hoje menores no mercado de crédito imobiliário, tenderão a subir, além da insegurança jurídica que será criada pela flexibilização da garantia, quando se observa o mercado secundário já instrumentalizado. Isto é, os créditos lastreados em alienação fiduciária passariam a ser reprecificados negativamente no mercado secundário de CRI's, letras de crédito imobiliário e fundos imobiliários, com impacto direto nestes títulos7. Uma outra perspectiva econômica da questão está relacionada a incapacidade desta mudança de entendimento alterar o incentivo a inadimplir e acumular dívida junto ao condomínio. Isto é, continuará existindo uma distorção relativa ao custo da dívida condominial em relação as demais dívidas, ainda que se permita o atingimento do imóvel dado em garantia fiduciária. A mudança de entendimento representaria uma ingerência nas relações contratuais já celebradas, cuja precificação dos ativos não considerou o risco de esvaziamento da garantia. Como consequência, haverá uma interferência externa e negativa do Judiciário nos contratos vigentes, causando insegurança jurídica e econômica aos contratantes, sem que isto tenha sido anteriormente ajustado pelas partes, violando também o art. 421, parágrafo único do CC. V. Aspectos legais: o direito de garantia, a lei e os precedentes No financiamento habitacional, a propriedade não é transferida de forma plena por meio do contrato de alienação fiduciária. Em vez disso, constitui-se uma propriedade resolúvel destinada a funcionar como garantia. O credor fiduciário é mero titular formal, sem direito de uso, gozo ou fruição do bem. Esses direitos pertencem ao devedor fiduciante, que também tem o domínio útil. Portanto, trata-se de direito real de garantia, e não de propriedade plena. Essa circunstância normativa, expressamente tratada pelo legislador, afasta a tese defendida pelos condomínios de que o caráter ambulatório da obrigação - propter rem - deveria sujeitar o credor fiduciário ao pagamento do débito, ainda que por meio da realização da garantia. O art. 27, §8º da lei 9.514/97 atribui ao fiduciante a responsabilidade pelos encargos até a imissão na posse do credor fiduciário. O art. 1.368-B do CC, parágrafo único, também estabelece que o credor fiduciário só responde a partir da posse direta do bem. Até que essa ocorra, portanto, o devedor fiduciante é o responsável por todos os encargos da coisa8. O fato de o bem estar sob a condição de propriedade resolúvel não afasta a possibilidade do direito real de aquisição do devedor fiduciante ser objeto de penhora. Esse direito do fiduciante possui expressão econômica e pode ser penhorado, conforme art. 835, XII do CPC. Além disso o próprio art. 23, § 2º da lei 9.514/97 reforça que recai sobre o fiduciante as despesas de IPTU e taxas condominiais. O STJ tem inúmeras decisões tratando sobre a responsabilidade do devedor fiduciante pelo pagamento das despesas condominiais, de maneira que não pode ser penhorado o imóvel alienado fiduciariamente para saldar a dívida condominial9-10. Aliás, o próprio STJ julgou na 1ª Seção de Direito Público tema idêntico relativo à responsabilidade pelo IPTU, Tema 115811, reconhecendo que não cabe ao fiduciário esta responsabilidade. Por isso, em respeito ao sistema de precedentes obrigatórios e ao disposto no art. 926 do CPC, o STJ deve manter a coerência, estabilidade e previsibilidade de suas decisões, de maneira a conferir a mesma solução para as despesas condominiais, ou seja: não pode ser penhorado o imóvel alienado fiduciariamente. A mudança de entendimento compromete o crédito habitacional e desvirtua a finalidade da garantia fiduciária.  A obrigação propter rem é imputável ao titular imediato dos poderes sobre a coisa12. Não é este o credor fiduciário, mas, sim, o devedor fiduciante. Logo, não pode ser transferido ao credor fiduciário o passivo sob responsabilidade do devedor fiduciante para, ao fim, penhorar o imóvel dado em garantia fiduciária. O credor fiduciário não responde pelas dívidas de condomínio e, logicamente, não pode ter o imóvel - objeto da garantia - submetido à penhora por conta de dívida do devedor fiduciante. Por conseguinte, o credor fiduciário não é o legitimado passivo para integrar a execução dos débitos condominiais, só podendo ser chamado para responder a partir da sua imissão na posse, quando da realização da garantia fiduciária13. A esse respeito, o STF, quando julgou o Tema 1.153, entendeu, acertadamente, que o credor fiduciário só pode ser responsabilizado pelo IPVA quando houver consolidado a propriedade sobre o automóvel. Assim, enquanto estiver alienado fiduciariamente, compete ao devedor fiduciante a responsabilidade pelo pagamento do IPVA. A semelhança fática e jurídica dos casos justifica a aplicação da mesma conclusão jurídica. O regime estabelecido pela lei da alienação fiduciária atribui ao devedor fiduciante a responsabilidade pelo pagamento das despesas condominiais sobre o imóvel. Desta forma, o credor fiduciário não pode ser chamado para responder pela dívida do fiduciante. Não há omissão legislativa que autorize interpretação extensiva ou criação judicial de hipótese de penhorabilidade do imóvel alienado fiduciariamente. VI. Conclusão A alienação fiduciária tem expressiva relevância para o setor imobiliário, notadamente por permitir a realização ágil e segura da garantia e contribuir, assim, para reduzir a inadimplência. Como consequência, tem-se a redução dos juros, o aumento do prazo de financiamento, assim como o aumento da oferta de crédito imobiliário, o que beneficia diretamente o consumidor. A manutenção do regime da alienação fiduciária hígido ajuda na expansão do setor da construção civil, contribui para reduzir a inflação, a taxa de juros no âmbito do crédito habitacional, aumentar a oferta de emprego, bem como reduzir o déficit habitacional. O STJ deve preservar o regime jurídico da alienação fiduciária, tanto pelas razões econômicas envolvidas quanto pela coerência do sistema legal que a sustenta. Qualquer interferência nessa sistemática, especialmente pela alteração de critérios estabelecidos em lei, tende a gerar custos e potenciais prejuízos aos credores e ao mercado em geral, produzindo insegurança jurídica, aumento de preços e juros, com desdobramentos desfavoráveis ao consumidor Desta maneira, considerando a relevância da alienação fiduciária como pilar estrutural do crédito imobiliário nacional, torna-se necessário refutar a tese da penhora do imóvel dado em garantia para satisfazer dívida condominial. A descaracterização da garantia, fragilizando-a por meio da penhora, introduz incerteza a imprevisibilidade no mercado e, por conseguinte, eleva-se o risco e aumenta-se o custo de captação de recursos. A qualidade da garantia - liquidez, agilidade e conversibilidade - contribuem para o alongamento dos prazos de financiamento e redução das taxas de juros. Uma mudança radical incrementará custos indesejados ao financiamento, além de representar uma redução na oferta do crédito, penalizando toda a coletividade. _______ 1 Objeto do Tema 1266: Definir se é possível penhorar imóvel objeto de alienação fiduciária em decorrência de dívida condominial, antes da quitação do financiamento e enquanto a propriedade ainda é resolúvel em nome do credor fiduciário. 2 Manifestação ABRAINC apresentada nos autos do Tema n. 1.266 do STJ. 3 Trecho dos memoriais apresentados pela ABRAINC nos autos do Tema n. 1.266 do STJ. 4 Tema n. 982 do STF: "É constitucional o procedimento da Lei nº 9.514/1997 para a execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição Federal". 5 Esse objetivo fica claro da Exposição de Motivos Interministerial n. 32/MPO-MF, de 09 de junho de 1997, do Projeto de lei que resultou na edição da Lei n. 9.514/97. 6 Escrevemos sobre o crédito imobiliário e os instrumentos de financiamento em: Miranda, Victor Vasconcelos. O crédito imobiliário, o CNJ e a escritura pública. Disponível aqui. Acesso em 20/11/2025. 7 Parecer do economista Gustavo Franco, disponível nos autos do Tema n. 1.266 no STJ. 8 Segundo Melhim Chalhub, "o fiduciante é investido na posse direta do imóvel (parágrafo único do art. 23), assumindo-a por sua inteira conta e risco, daí porque é responsável por todos os impostos, taxas e contribuições que incidem sobre o imóvel, notadamente o imposto predial e as contribuições condominiais (...) a responsabilidade por esses encargos passará ao credor fiduciário se e quando vier a se tornar proprietário do bem e possuidor direto, em decorrência de execução da dívida garantida, nos termos do parágrafo único do art. 1.368-B do Código Civil" (CHALHUB, Melhim Namem. Alienação Fiduciária. 8ª ed. São Paulo: Grupo GEN, 2023. p.223 e 225). 9 "Nos contratos de alienação fiduciária em garantia de bem imóvel, a responsabilidade pelo pagamento das despesas condominiais recai sobre o devedor fiduciante, enquanto estiver na posse direta do imóvel. Assim, como ainda não se adquiriu a propriedade plena, eventual penhora não poderá recair sobre o direito de propriedade - que pertence ao credor fiduciário -, mas sim sobre os direitos aquisitivos derivados da alienação fiduciária em garantia". (REsp n.2172631/DF, Min. Rela. Nancy Andrighi, 3ª Turma, DJe 12/11/2024). 10 "Segundo o entendimento pacífico da Terceira Turma desta Corte, em se tratando de bem alienado fiduciariamente, não se admite a penhora do imóvel, ainda que para satisfação de taxas condominiais, sendo possível apenas a penhora de direitos do devedor sobre o contrato com pacto de alienação fiduciária". (STJ, AgInt no REsp 2131251/DF, Min. Rel. Moura Ribeiro, 3ª turma, Dje 9/9/2024). 11 Tema 1.158 do STJ: "O credor fiduciário, antes da consolidação da propriedade e da imissão na posse, não pode ser considerado sujeito passivo do IPTU." 12 Nesse sentido, o STJ, no Tema n. 886, entendeu que a responsabilidade pelas despesas condominiais é do promissário comprador, que mantém relação jurídica material direta com o imóvel. Assim, independentemente do registro, o compromissário comprador é o responsável pelos débitos condominiais, desde que tenha sido imitido na posse e o condomínio cientificado. A ratio decidendi é a mesma aqui quando se observa a relação jurídica mantida com o imóvel. 13 André Abelha faz um recorte bem humorado do assunto: Disponível aqui. Acesso em 20/11/2025.
quinta-feira, 27 de novembro de 2025

Embargos de terceiro: Algumas (breves) anotações

Introdução  Os embargos de terceiro são uma ferramenta amplamente utilizada por advogados do ramo imobiliário que buscam impedir a constrição indevida de imóveis em processos nos quais seus clientes, geralmente, não figuram como partes. Contudo, é fundamental que os embargos de terceiros sejam manejados de forma tempestiva e nas hipóteses previstas em lei. Afasta-se, assim, o risco de preclusão do direto do embargante, bem como sua condenação nas penas da sucumbência. Assim, no intuito de auxiliar colegas advogados que estão iniciando sua prática no Direito Imobiliário, mas sem pretensão de esgotar o tema, este breve artigo tratará de quatro importantes aspectos dos embargos de terceiro: (i) momento da propositura; (ii) legitimidade ativa (iii) competência e (iv) tutela de urgência. Momento de propositura Acerca do momento da propositura dos embargos de terceiros, o art. 1.046 do CPC/73 apontava que "Quem, não sendo parte no processo, sofrer turbação ou esbulho na posse de seus bens por ato de apreensão judicial, em casos como o de penhora, depósito, arresto, seqüestro, alienação judicial, arrecadação, arrolamento, inventário, partilha, poderá requerer Ihe sejam manutenidos ou restituídos por meio de embargos". Já na atual codificação, os embargos de terceiros estão previstos ao art. 674, caput, que afirma que "Quem, não sendo parte no processo, sofrer constrição ou ameaça de constrição sobre bens que possua ou sobre os quais tenha direito incompatível com o ato constritivo, poderá requerer seu desfazimento ou sua inibição por meio de embargos de terceiro". Como nota inicial, aponta-se que, no art. 674, caput, do CPC, a novel legislação opta pelo genérico termo "constrição", evitando a descrição exemplificativa de medidas de apreensão judicial. A mudança é salutar, eis que afasta o risco de julgamento de improcedência dos embargos de terceiro por suposta ausência de taxativa hipótese legal. Feita essa observação, nota-se que a redação do art. 674, caput, do CPC afirma que a ameaça de apreensão judicial poderá servir como mote para o ajuizamento, em caráter inibitório ou preventivo, de embargos de terceiros, positivando um antigo entendimento da doutrina abalizada1. É justamente por essa ratio que os embargos de terceiro podem ser opostos a qualquer tempo no processo de conhecimento enquanto não transitada em julgado a sentença e, no cumprimento de sentença ou no processo de execução, até 5 (cinco) dias depois da adjudicação, da alienação por iniciativa particular ou da arrematação, mas sempre antes da assinatura da respectiva carta (art. 675, caput do CPC). Deve-se mencionar que o parágrafo único desse artigo prevê o contraditório participativo, corolário do princípio da cooperação, por parte do magistrado, que possui o poder-dever de determinar a intimação pessoal do terceiro titular com interesse para embargar o ato. É importante destacar que outro momento para propositura dos embargos de terceiros está previsto ao art. 792, § 4º do CPC. Esse dispositivo legal prevê que, antes de eventual declaração judicial reconhecendo fraude à execução, o terceiro adquirente seja intimado para apresentar, no prazo de 15 dias úteis, embargos de terceiro2. Legitimidade ativa Acerca da legitimidade ativa, o caput do art. 674 do CPC afirma que será legitimado para opor embargos de terceiro quem "não for parte no processo", o que se levaria à conclusão de que, necessariamente, se estaria a tratar de um terceiro (leia-se: "parte estranha à lide"). Contudo, como nos lembra Daniel Amorim Assumpção Neves, registre-se que o simples fato de ser um terceiro e ter seu bem constrito judicialmente, por si só, não legitima o sujeito afetado a opor embargos de terceiro3. Tal situação se verifica nos casos expressamente previstos em lei acerca da responsabilidade patrimonial de terceiros (art. 790 do CPC) ou nos casos relacionados a (futuro) réu, que não tenha sido citado e, portanto, não integra a relação jurídica até aquele momento, mas não pode ser considerado um terceiro4. Destaca-se que o § 1º desse artigo aponta que "Os embargos podem ser de terceiro proprietário, inclusive fiduciário ou possuidor", dispensando-se, assim, a prova de posse do bem exigida pela codificação anterior (art. 1.046, § 1º do CPC/73). Por outro lado, serão legitimados para oposição de embargos de terceiro os mencionados nos quatro incisos do art. 674, § 2º, do CPC5, que não necessariamente precisam ser terceiros. É o exemplo do assistente simples: este participa do processo (rectius: integra a relação processual), mas - caso se encaixe em um dos incisos do art. 674, § 2º, do CPC - terá legitimidade ativa para opor embargos de terceiro. Assim, em que pese a menção ao termo "terceiro" nesse dispositivo legal, conclui-se que se pode caracterizar como legitimado a opor embargos de terceiro aquele sujeito que "não pode sofrer os efeitos do processo do qual surgiu a ordem de constrição patrimonial, porque o objeto desse processo não diz respeito ao direito material do qual seja titular".6 Competência     A competência para os embargos de terceiro está prevista no art. 676 do CPC, que aponta que "Os embargos serão distribuídos por dependência ao juízo que ordenou a constrição e autuados em apenso". Trata-se, como o leitor atento já deve ter constatado, de regra semelhante à dos embargos de devedor. É importante destacar que a competência do juiz que determinou o ato constritivo é de natureza funcional e, portanto, absoluta e improrrogável.7 Tal previsão é coerente, haja vista que, tendo os embargos de terceiros a finalidade de desconstituir (ou impedir) uma ordem judicial, "não seria adequado que outro órgão jurisdicional de mesma instância pudesse se sobrepor àquele juízo que ordenou a apreensão"8. Contudo, como toda regra comporta exceções, a competência para julgamento dos embargos de terceiros poderá ser deslocada em caso de oposição desse remédio processual por ente federal previsto ao art. 109, I, da Constituição Federal.    Nesses casos, a competência para julgamento dos embargos de terceiro será do juízo federal, que decidirá sobre o interesse da União no processo, nos termos da súmula 150 do STJ9, ressalvado o (controvertido) entendimento de que a competência para julgamento da ação principal continuaria a ser da Justiça Estadual10. Por fim, cabe analisar a hipótese da fixação de competência em caso de constrição judicial oriunda de carta precatória. A competência para julgamento dos embargos de terceiro será do Juízo Deprecado ou do Juízo Deprecante? Aponta o art. 676, parágrafo único do CPC que "Nos casos de ato de constrição realizado por carta, os embargos serão oferecidos no juízo deprecado, salvo se indicado pelo juízo deprecante o bem constrito ou se já devolvida a carta". Haja vista a literalidade da regra do caput do art. 676, conclui-se que, para adequada fixação da competência nesses casos, é imprescindível que se verifique o juízo responsável pela individualização do bem objeto da constrição judicial. É nesse sentido a jurisprudência do Tribunal da Cidadania: "Assim, em regra, a competência para julgamento dos embargos de terceiro que versarem unicamente sobre vícios ou defeitos da penhora, avaliação ou alienação do bem será do Juízo deprecado. Entretanto, caso haja indicação expressa do bem a ser penhorado pelo Juízo deprecante, será deste a competência para julgamento dos respectivos embargos"11 Tutela de urgência Por fim, serão traçadas breves considerações acerca da utilização do mecanismo da tutela de urgência em sede de embargos de terceiros. Diante da ameaça de constrição ou da constrição consumada, a reação natural do embargante seria formular, com base no art. 300 do CPC, pedido de tutela provisória de urgência, o que exigiria a comprovação (i) da probabilidade do direito e (ii) do perigo de dano. Contudo, em sede de embargos de terceiro, isso não é necessário, haja vista a regra do art. 678 do CPC: "A decisão que reconhecer suficientemente provado o domínio ou a posse determinará a suspensão das medidas constritivas sobre os bens litigiosos objeto dos embargos, bem como a manutenção ou a reintegração da posse, se o embargante a houver requerido". Verifica-se, assim, que comprovada a plausibilidade jurídica do pedido (prova do domínio ou posse sobre o bem objeto de constrição), haverá um perigo de dano presumido, o que exigirá do magistrado a imediata suspensão do ato constritivo. Cumpre destacar que a prova de domínio poderá ser feita por meio da audiência preliminar do art. 677, § 1º do CPC, que é uma verdadeira audiência de justificação, o que muito se assemelha ao procedimento previsto para a reintegração de posse (art. 562 do CPC). Como última observação, aponta-se que parágrafo primeiro do art. 678 do CPC exige a prestação de caução, ressalvada a impossibilidade financeira do requerente,     que deverá ser comprovada no ato da oposição dos embargos de terceiro. Sem prestação de caução, o bem litigioso ficará sequestrado com o juízo até o julgamento final dos embargos de terceiro12. __________ 1 "De fato, seria ilógico impor ao titular do bem ter que aguardar a concretização de uma ordem judicial tida por equivocada" (CARNEIRO, Paulo Cezar Pinheiro Carneiro e DE PINHO, Humberto Dalla Bernadina Novo Código de Processo Civil - Anotado e Comparado. 2 É válido destacar que o transcurso de prazo do art. 792, § 4º, do CPC/15 não impede a oposição dos embargos de terceiros opostos com fundamento no art. 675, caput, do CPC/15: "O art. 792, § 4º, do CPC/2015 prevê que, antes de declarar a fraude à execução, o juiz deverá intimar o terceiro que adquiriu o bem anteriormente pertencente ao executado para, querendo, opor embargos de terceiro no prazo de 15 (quinze) dias. Tais embargos têm cunho preventivo, porquanto se destinam apenas a possibilitar que o terceiro evite a constrição judicial enquanto se defende da alegação de ter praticado ato em fraude à execução. Daí que o transcurso do referido lapso temporal não obsta a oposição de embargos repressivos, com fundamento no art. 675, caput, do CPC/2015. Ou seja, o prazo previsto no art. 792, § 4º, do CPC/2015 não é preclusivo." (REsp 2.082.253-PR, rel. min. Nancy Andrighi, DJe 20/09/2023). 3 NEVES, Daniel Amorim. CPC Comentado, São Paulo, Editora JusPodvim. 2024, p. 1198.  4 Há, contudo, divergência nesse posicionamento, com José Miguel Garcia Medina "Os embargos de terceiros podem ser opostos por quem não é parte no processo, e, excecionalmente, por quem é parte, mas tratado de modo assemelhado a terceiro. Os proprietários dos bens sujeitos à execução, caso não tenham sido citados (integrando-se à relação processual) são terceiros". JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA, Novo Código Processo Civil Comentado, 5ª edição revista, 5 São estas as hipóteses previstas: I - o cônjuge ou companheiro, quando defende a posse de bens próprios ou de sua meação, ressalvado o disposto no art. 843 ;  II - o adquirente de bens cuja constrição decorreu de decisão que declara a ineficácia da alienação realizada em fraude à execução; III - quem sofre constrição judicial de seus bens por força de desconsideração da personalidade jurídica, de cujo incidente não fez parte;  IV - o credor com garantia real para obstar expropriação judicial do objeto de direito real de garantia, caso não tenha sido intimado, nos termos legais dos atos expropriatórios respectivos. 6 NEVES, Daniel Amorim. CPC Comentado, São Paulo, Editora JusPodvim. 2024, p. 1199. 7 CC 142.849/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22.3.2017. 8 NEVES, Daniel Amorim. CPC Comentado, São Paulo, Editora JusPodvim. 2024, p. 1202.  9 AgInt no REsp n. 2.032.452/MT, Min.Rel. Sérgio Kukina, 1ª Turma, j. 20.05.2024. 10 CC 93.969/MG, Min. Rel. Sidnei Beneti, 2ª Seção, j. 5.6.2008. 11 REsp n. 2.095.460/SP, Min. Rel. Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, j. 6.02.2024 12 REsp nº 754.895/MG, Min. Rel. Nancy Andrighi, 3ª Turma, j. 3.06.2005.
Nos últimos anos, incorporadoras vêm adotando com frequência crescente o modelo de fachadas ativas em edifícios residenciais. A proposta inicial desse instrumento urbanístico era promover o dinamismo dos passeios públicos por meio da interação entre pedestres e atividades comerciais instaladas nos térreos, evitando a monotonia das chamadas "paredes cegas". Essa diretriz foi consolidada no Plano Diretor Estratégico da cidade de São Paulo, durante a gestão do prefeito Fernando Haddad, em 20141. O objetivo central da política era claro: estimular a vitalidade em bairros de baixa movimentação, reforçar a segurança urbana pela ocupação qualificada do espaço público e integrar o uso residencial ao comercial. A lógica urbanística era simples e eficaz: áreas mais visíveis, movimentadas e habitadas tendem a sofrer menos com vandalismo e criminalidade. A distância entre teoria e prática A execução, contudo, revelou resultados bem distintos. Multiplicaram-se as chamadas fachadas inativas ou subutilizadas, marcadas por imóveis comerciais vazios e sucessivas placas de "aluga-se" ou "vende-se", na constatação de Thais Soares2. Em uma metrópole com mais de 12 milhões de habitantes, o cenário idealizado de dinamismo urbano deu lugar a lojas fechadas e espaços economicamente inviáveis. Grande parte desse insucesso decorre de projetos mal planejados. Talvez porque muitos empreendimentos foram concebidos por construtoras habituadas apenas ao setor residencial, sem domínio das especificidades de espaços comerciais, a quiçá conduzir esse fracasso. O resultado foram lojas pouco funcionais, muitas vezes projetadas como "sobras" do empreendimento3, o que as tornou pouco atrativas ao mercado. Surge então a pergunta: existe um culpado? Como observa Victor Hirata, gerente sênior da empresa imobiliária CBRE, a ausência de planejamento de longo prazo foi determinante: diversos projetos limitaram-se a atender exigências legais ou a atrair grandes redes no momento da entrega, sem considerar a sustentabilidade econômica. A aposta exclusiva em grandes varejistas, sem abertura para a diversidade de ocupantes, resultou na queda dos valores de locação e na frustração das expectativas, sobretudo dos permutantes que cederam terrenos em troca de unidades comerciais.4 Dados recentes reforçam essa realidade. Segundo reportagem do Estado de São Paulo de 7/10/25, do repórter Lucas Agrela, pesquisa da ACSP - Associação Comercial de São Paulo, apurou que entre 60% e 80% desses espaços encontram-se vazios. Os bairros com maior índice de ocupação são Vila Mariana, Ibirapuera, Perdizes, Vila Madalena, Santo Amaro e Av. Rebouças, com predominância da ocupação por redes de varejo de conveniência, como Oxxo e Carrefour Express, e agências bancárias. Importante destacar que muitos desses espaços nunca foram ocupados, demonstrando que não se trata de esvaziamento, mas de ausência de ocupação desde a própria construção, singela inviabilidade da destinação dessas áreas. A pesquisa revela um perfil restrito de locatários e evidencia que a vacância decorre da falta de planejamento estrutural, incluindo a análise relativa ao público-alvo.  A idealização do projeto visava não apenas os moradores do edifício, mas também o fluxo de pedestres da região, evidencia que teria sido ignorada.  Muitos entendem que a responsabilidade pela realização da pesquisa de campo e pela análise de viabilidade deveria recair exclusivamente sobre a incorporadora. Afinal, ao ter em mente os benefícios do empreendimento, deveria estudar tecnicamente se tal empreendimento "ficaria em pé", funcionaria adequadamente com todas as suas características: quantidade de unidades, equipamentos, pavimentos e... lojas no térreo. Mas, diante desse cenário, mais realista seria concluir que a responsabilidade é compartilhada, não recaindo sobre um único ator. A Prefeitura, como órgão planejador, autorizador e fiscalizador exerce papel fundamental. O permutante do terreno, por sua vez, pode agir motivado por vantagens econômicas muito distintas da situação de um vendedor do imóvel, cuja participação se esgota no recebimento do preço e entrega do terreno. Já a incorporadora deve conduzir o negócio cumprindo os requisitos de seu mister, atentando ao que se exige de empreendedores, agindo de boa-fé, fornecendo informações precisas, realizando estudos sobre o fluxo de público e avaliando a infraestrutura urbana, como transporte e estacionamento, planejando, enfim, um prédio adequado ao local.  Obvio, embora a falha seja muitas vezes coletiva, (o Estado planejou, o Incorporador concretizou) ela recai de forma mais latente sobre a empreendedora, que fez seus cálculos e atendendo aos pressupostos legais e exigências urbanísticas, acreditou e materializou o prédio, objetivando, é natural e justo, seus lucros. A "permuta financeira" em negócios imobiliários Nesse contexto, a análise de André Luis de Sá Carlos Portela5, em sua pesquisa de mestrado sobre a Permuta Financeira6 em Negócios Imobiliários, oferece reflexões relevantes. O autor observa que, embora largamente difundida, a prática carece de regulamentação específica e de maior atenção acadêmica. De acordo com Portela, a "Permuta Financeira" consolidou-se como um dos principais mecanismos de viabilização de incorporações no Brasil, configurando-se como alternativa estratégica diante da complexidade do setor.  Nessa modalidade, o terrenista transfere o imóvel ao Incorporador e, em contrapartida, recebe um percentual do VGV - Valor Geral de Vendas do empreendimento. Trata-se de uma conversão do valor do terreno em expectativa de receita futura, que desloca o risco para o sucesso da comercialização das unidades, e não somente fixando o risco na capacidade econômica da empreendedora. Ao incorporador, a vantagem é evidente: evita a imobilização de capital na compra do terreno e preserva recursos para novos projetos. Já o terrenista se beneficia da valorização potencial de seu bem, sem precisar arcar com a construção e comercialização das unidades diretamente, aspecto que diferencia a permuta financeira da permuta física, em que recebe unidades prontas e ao incumbir-se da venda, assume riscos de comercialização, mas não diretamente do empreendimento. Em resumo, numa alternativa o permutante se liga ao incorporador e com ele percorre todo o caminho do empreendimento; na outra, o permutante recebe unidades, para então definir a que as destinará.   Apesar das lacunas regulatórias e dos questionamentos fiscais que cercam o tema, Portela conclui que a permuta financeira constitui um instrumento pragmático de simplificação das relações entre terrenista e incorporador, equilibrando interesses e ampliando a viabilidade econômica dos empreendimentos. Contudo, ainda que o conceito apresentado pelo autor seja coerente e bem fundamentado, na prática observa-se um descompasso. A dinâmica desses negócios certamente voltada ao lucro, tem contribuído para o surgimento de áreas urbanas subutilizadas, uma cidade que cresce, mas permanece vazia, sem cumprir plenamente sua função social, tal como idealizada pelos princípios constitucionais e urbanísticos. Tal se dá em especial quando se constata a existência das lojas ("fachadas ativas") desocupadas, vale dizer, resultantes de falhas no planejamento. A responsabilidade do permutante Se de permuta se cogita ("pura" ou "financeira"), teria o permutante responsabilidade pelo empreendimento? Seria também responsável pela fachada ativa frustrada? Isto é, o terrenista, ao permutar com objetivo de participação na venda de unidades que se beneficiarão (ou existirão) também graças à construção da "fachada ativa", será responsável pelo resultado da obra?  Permutante e incorporador são personalidades jurídicas distintas, embora, em determinadas circunstâncias, possam se confundir na mesma figura. Como bem observa Caio Mario da Silva Pereira, "toda pessoa física ou jurídica, independentemente de sua anterior profissão, torna-se incorporador pelo fato de exercer, em caráter permanente ou eventual, uma certa atividade, que consiste em promover a construção da edificação dividida em unidades autônomas"7. Ou seja, o permutante pode assumir também o papel de incorporador. A partir disso, surge a questão central: até que ponto o proprietário do terreno (permutante) responde por eventuais prejuízos causados ao adquirente das unidades? Para que essa responsabilização exista, é necessário que ele se enquadre, de fato, na figura do incorporador e que sua conduta revele participação ativa na incorporação ou na comercialização das unidades. Vale lembrar de Antônio Chaves: "A situação da proprietária do terreno é das mais complexas. Não pode manter-se mais, como ocorria antes da Lei n. 4591 de 16/12/1964, numa atitude de simples expectadora dos conflitos que fatalmente surgiriam entre os impacientes adquirentes das unidades autônomas e as rés tão lerdas na execução"8  A compreensão de Jaques Bushatsky parece exata, quando escreveu: "Ora, é nesta linha lógica que se infere a responsabilidade do dono do terreno que ajusta "permuta no local": ele (é razoável supor) objetiva na modalidade de negócio que enceta, um benefício que não se confunde com a singela venda de seu imóvel e sim, certa participação na incorporação, muito embora distintas as características inerentes ao contrato de permuta e ao de incorporação"9 Ainda, prossegue o autor sugerindo cautelas: "a responsabilidade do permutante, questão importante e que merece, por óbvio, mais e melhores estudos. De prático, sabido que a declaração de eximentes nos contratos celebrados não arredará a responsabilização, cumprirá ao proprietário que objetivar negócio dessa espécie, assegurar-se a respeito da fiel execução do contrato, do exato desincumbir-se da incorporadora, de seu perfeito desempenho, ajustando para tal, as garantias mais e mais utilizadas hoje, pelo mercado." De modo geral, não se admite a responsabilização do permutante quando este apenas cede o terreno e não participa da incorporação ou da comercialização das unidades, tampouco interfere nas relações contratuais estabelecidas entre o incorporador e os adquirentes. Nesses casos, a relação jurídica se desdobra em dois eixos autônomos. Por outro lado, quando o permutante participa ativamente do planejamento da divulgação, comercialização ou intermediação das vendas, ainda que não figure formalmente no contrato de compra e venda, passa a integrar a cadeia de empreendimento, respondendo solidariamente pelos vícios e danos decorrentes da incorporação. A lei 4.591/1964, em seu art. 29, parágrafo único, estabelece presunção nesse sentido ao dispor que há vínculo entre o alienante de frações ideais do terreno e a atividade de construção quando, ao tempo da alienação, o projeto de construção já estiver aprovado, em vigor ou pendente de aprovação. Nessas hipóteses, o alienante é equiparado ao incorporador e, portanto, assume as responsabilidades inerentes a essa condição. Trata-se, em regra, das situações em que o proprietário do terreno já deu início ao processo de incorporação, submetendo o projeto à aprovação e, posteriormente, opta por celebrar contrato com terceiro para a execução do empreendimento. A jurisprudência tem reconhecido, com frequência, a intenção implícita de incorporar, responsabilizando o proprietário que, embora não figure formalmente como incorporador, demonstra interesse direto e efetivo no êxito do empreendimento. Nesse sentido, já decidiu o TJ/RJ, ao afirmar ser responsável o "proprietário do terreno que tem interesse direto na realização e no sucesso do empreendimento (pois alardeou que concebeu e estava executando em seu terreno um projeto que implicava na construção de um conjunto arquitetônico com edifícios chamados inteligentes), mas tenta disfarçar essa condição com o artifício de prometer vender o terreno a outra firma que assume a aparência de verdadeira incorporadora".10 Por sua vez, o STJ (REsp 1.065.132/RS) afasta a solidariedade quando o proprietário não desempenha funções próprias da incorporação, ou, assim se preferindo, quando ele, terrenista, permutante não concretize "prática de alguma atividade condizente com a relação jurídica incorporativa". PROCESSO CIVIL. DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. INEXECUÇÃO CONTRATUAL. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DO PROPRIETÁRIO DO TERRENO. INAPLICABILIDADE DO DIREITO DO CONSUMIDOR. (...) 2. A Lei de Incorporações (Lei n. 4.591/1964) equipara o proprietário do terreno ao incorporador, desde que aquele pratique alguma atividade condizente com a relação jurídica incorporativa, atribuindo-lhe, nessa hipótese, responsabilidade solidária pelo empreendimento imobiliário. 3. No caso concreto, a caracterização dos promitentes vendedores como incorporadores adveio principalmente da imputação que lhes foi feita, pelo Tribunal a quo, dos deveres ínsitos à figura do incorporador (art. 32 da Lei n. 4.591/1964), denotando que, em momento algum, sua convicção teve como fundamento a legislação regente da matéria, que exige, como causa da equiparação, a prática de alguma atividade condizente com a relação jurídica incorporativa, ou seja, da promoção da construção da edificação condominial (art. 29 e 30 da Lei 4.591/1964). 4. A impossibilidade de equiparação dos recorrentes, promitentes vendedores, à figura do incorporador demonstra a inexistência de relação jurídica consumerista entre esses e os compradores das unidades do empreendimento malogrado. 5. Recurso especial provido. (REsp 1065132/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 06/06/2013, DJe 01/07/2013). A propósito, de acordo com o art. 40, §2º da lei 4.591/1964, em caso de rescisão dos contratos de alienação das unidades autônomas, em razão de descumprimento contratual do incorporador ou da frustração do empreendimento, a responsabilidade do proprietário do terreno limita-se à devolução ao adquirente (consumidor final) da parcela da construção incorporada à sua propriedade. Caso a edificação não possa mais ser concluída, os valores devem ser restituídos, sob pena de caracterização de enriquecimento sem causa. Ressalte-se que essa devolução não se confunde com eventual reparação por danos materiais ou morais decorrentes do fracasso do empreendimento, tratando-se de obrigação limitada e objetiva.11 Em síntese, o proprietário do terreno somente assume responsabilidade perante os adquirentes se atuar como incorporador, ou seja, se participar da execução das obras ou da comercialização das unidades. A análise deve, portanto, recair sobre o comportamento efetivo do permutante: se ele se limitou à permuta, à troca do terreno por imóveis, não lhe cabe responsabilidade; se, ao contrário, assumiu obrigações típicas da incorporação ou participou de atos que revelam corresponsabilidade pelo empreendimento, responderá nos mesmos termos do incorporador. ________________________ 1 GESTÃO URBANA SP. Fachada Ativa. São Paulo: Prefeitura de São Paulo, [s. d.]. Disponível aqui. Acesso em: 12 nov. 2025.  2 SOARES, Thaís. As fachadas ativas estão virando fachadas fantasmas. Metro Quadrado, São Paulo, 10 abr. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 12 nov. 2025.  3 SOARES, Thais Quanto vale uma fachada ativa? Nem as incorporadoras sabem. Metro Quadrado, São Paulo, 09 set. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 12 nov. 2025 4 PORTELA, André Luis de Sá Carlos. Permuta Financeira em Negócios Imobiliários. São Paulo, 07 set. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 12 nov. 2025. 5 Impossível deixar de anotar que essa terminologia fere o conceito jurídico da "permuta", mas a novidade terminológica existe. 6 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e Incorporações. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 248. 7 INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 498, abr. 1977, p. 34. 8 BUSHATSKY, Jaques "Observações sobre a responsabilidade do proprietário do terreno, que o permuta por futuras unidades a serem erigidas no local, perante os adquirentes de unidade destinadas ao incorporador, prometidas à venda e não entregues". In: TUTKIAN, Cláudia Fonseca; TIMM, Luciano Benetti; PAIVA, João Pedro Lamana (coord.). Novo Direito Imobiliário e Registral. São Paulo: Quartier Latin, 2008. p. 412. 9 RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento n. 1999.002.04963, Capital, 16ª Câmara Cível, Rel. Des. Dauro Ignacio da Silva, julgado em 14 out. 1999, por maioria. 10 BUSSAB, Dora. Responsabilidade civil do proprietário do terreno cedido para a incorporação imobiliária. Migalhas Edilícias, São Paulo, 30 set. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 12 nov. 2025.
A proposta de reforma do CC (PL 4, de 2025), elaborada por comissão de juristas e apresentada ao Senado Federal em 2024, tem como objetivo atualizar institutos fundamentais do Direito Privado à luz das transformações sociais, tecnológicas e econômicas dos últimos vinte anos. Embora trate de diversos aspectos estruturais do Código vigente, um dos núcleos que mais despertou atenção - e controvérsia - foi o conjunto de alterações sugeridas para o regime jurídico dos condomínios edilícios. A vivência em condomínio não se limita à administração de um bem imóvel coletivo: trata-se de uma forma particular de exercício do direito de propriedade, cuja eficiência depende de normas claras, de equilíbrio entre autonomia e regulação, e da constante adaptação aos desafios da convivência. A ausência de previsões legislativas específicas sobre temas recorrentes, como a destinação econômica das unidades, a disciplina de condutas antissociais ou a formalização da personalidade jurídica do condomínio, tem gerado insegurança jurídica e conflitos que desafiam a interpretação judicial. Nesse cenário, as mudanças sugeridas pela proposta de reforma se propõem a preencher lacunas normativas, consolidar entendimentos jurisprudenciais e reforçar a autonomia da coletividade condominial, notadamente por meio do empoderamento da assembleia e do fortalecimento da atuação do síndico. Ao mesmo tempo, levantam debates relevantes sobre os limites da autorregulação, o risco de excessos deliberativos e a necessidade de técnica legislativa precisa e compatível com a complexidade da vida em condomínio. O presente artigo, fruto de um grupo de trabalho formado por profissionais atuantes no Direito Imobiliário e Condominial, tem como objetivo analisar, de forma técnica e segmentada, os principais pontos da proposta legislativa que impactam diretamente os condomínios edilícios.  A seguir, serão analisados os principais eixos de impacto da proposta de reforma do CC na realidade condominial, com enfoque técnico e aplicação prática. Iniciamos pelo fundamento estrutural da personalidade jurídica, seguido das mudanças na governança interna, no uso dos espaços comuns e, por fim, na disciplina das condutas incompatíveis com a convivência. Reconhecimento da personalidade jurídica do condomínio edilício O condomínio edilício, sob a égide do CC/02, apesar de possuir regramento específico em artigos próprios, não está incluído no rol do art. 441, que enumera as pessoas jurídicas de direito privado, conferindo-lhe, portanto, a natureza de ente despersonalizado do ponto de vista técnico. Embora não seja reconhecido legalmente como pessoa jurídica de direito privado, na prática, os Tribunais pátrios, já reconhecem o condomínio como ente personalizado, constituindo a chamada personalidade judiciária, diante da necessidade, por exemplo, de ingressar com execuções contra condôminos inadimplentes. Da mesma forma, a jurisprudência do STJ já tem atribuído personalidade jurídica aos condomínios nas relações tributárias2.  Apesar do avanço jurisprudencial, a doutrina majoritária mantém a posição de que o condomínio edilício não detém personalidade jurídica, por atuar por representação, por meio de seu síndico ou administrador, na defesa dos interesses comuns da massa condominial. A própria inscrição no CNPJ - Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica, embora obrigatória e essencial para a prática de atos administrativos - como a contratação de funcionários e a celebração de contratos, não tem o condão de conferir personalidade jurídica. Trata-se de uma formalidade de cunho fiscal e gerencial que não altera sua natureza de ente despersonalizado, embora sujeito de direitos e obrigações. Com o objetivo de superar essas limitações, a reforma do novo CC propõe a alteração para possibilitar o reconhecimento legal dos condomínios com personalidade jurídica de Direito Privado. Mas, será que previsão trará adequação a norma à realidade prática já consolidada, e conferindo maior segurança jurídica e reduzindo os entraves da gestão cotidiana? A proposta da reforma quanto a possibilidade de o condomínio adquirir a personalidade jurídica não visa equipará-lo a sociedade empresária. Até porque, a natureza jurídica do condomínio edilício é própria, com finalidade precípua de administrar a coisa comum e a manutenção do edifício, e não o equiparar a empresa ou a associação, pois não possuem fins lucrativos. Diante disso, sua constituição e seu registro devem permanecer atrelados ao Cartório de Registro de Imóveis, não havendo que se falar em registro na Junta Comercial, que é destinado aos entes com atividade empresarial. A previsão da reforma do CC é dar ao condomínio poderes para praticar atos de seus interesses e melhorar a gestão condominial. Mas, essa previsibilidade é concedida como uma faculdade, pois o texto legal vem em seu texto com a expressão "pode" condicionando a deliberação dos condôminos. Neste ponto, alguns juristas fazem a crítica por acreditarem que não deveria ser uma opção aos gestores dos condomínios, mas sim, uma obrigação de se tornarem entes personalizados o que traria maior segurança jurídica e uniformidade nas relações com terceiros, evitando a coexistência de dois regimes distintos para os condomínios. É nesse contexto que a proposta de reforma do CC traz relevante inovação ao prever, expressamente, a possibilidade de o condomínio edilício adquirir personalidade jurídica de Direito Privado, por deliberação dos condôminos. A medida visa adequar o texto legal à realidade consolidada na prática, oferecendo maior segurança jurídica à gestão condominial. Contudo, ao condicionar tal aquisição à deliberação da assembleia, a reforma mantém o caráter facultativo da personalidade jurídica, o que tem gerado críticas doutrinárias. Parte da crítica reside no risco de dualidade normativa: coexistirem, no mesmo ordenamento, condomínios com e sem personalidade jurídica, criando insegurança para terceiros contratantes e dificuldade de uniformização das relações jurídicas. Assim, questiona-se: por que a lei apenas faculta, e não impõe, a aquisição da personalidade jurídica? A quem caberá a iniciativa? Qual quórum seria necessário para essa deliberação? E mais: a ausência de personalidade jurídica continuaria a limitar a legitimidade ativa e passiva do condomínio em determinadas ações judiciais? Embora o texto atual da proposta reconheça a personalidade como faculdade, é inegável que a atuação cotidiana dos condomínios já reflete comportamentos típicos de entes personalizados. Tal realidade, inclusive, tem levado à crítica de que a reforma, ao manter a facultatividade, pouco inova, e ainda preserva a ambiguidade normativa que se pretendia superar. Conforme pontuado por parte da doutrina, seria mais coerente que a personalidade jurídica fosse atribuição legal obrigatória, e não uma opção a ser deliberada, justamente para evitar a perpetuação de regimes híbridos que confundem administradores, condôminos e terceiros. De toda forma, reconhece-se que, uma vez deliberada a adoção da personalidade jurídica, os condomínios passarão a contar com instrumentos mais eficazes de atuação, como a possibilidade de adjudicar unidades em leilões em seu próprio nome e a realização de atos negociais com maior autonomia patrimonial, mitigando a responsabilidade direta dos condôminos. Assim, embora o texto proposto represente um avanço necessário ao reconhecer uma realidade já consolidada na prática condominial, entende-se que a reforma poderia ir além ao tratar a personalidade jurídica como regra, e não como exceção, alinhando o direito à realidade cotidiana e eliminando incertezas que há anos permeiam a gestão condominial no Brasil. Hospedagem atípica: Limites de uso das unidades autônomas A prática da hospedagem atípica, especialmente por meio de plataformas digitais, tem se tornado cada vez mais recorrente nas relações condominiais, intensificando os conflitos sobre sua restrição ou permissão, diante da necessidade de resguardar a segurança, o sossego e a destinação originária dos condomínios edilícios. Essa modalidade de ocupação, marcada por alta rotatividade e curta permanência, diverge do modelo convencional de locação, gerando tensões entre os direitos individuais de uso da propriedade e os interesses coletivos da convivência condominial. Diante dessa realidade, a proposta de reforma do CC traz importante inovação ao prever, de forma expressa, que a Convenção Condominial ou o Regimento Interno poderão proibir ou restringir a hospedagem atípica nas unidades autônomas. Diferentemente do regime atual - em que se admite a prática sempre que não houver proibição expressa - a nova redação inverte a lógica interpretativa: na omissão da convenção, presume-se vedada a prática. A mudança visa conferir maior segurança jurídica aos condomínios, permitindo o exercício da autorregulação diante das dificuldades geradas por esse tipo de ocupação transitória. Importa ressaltar, no entanto, que o projeto de reforma não define, de forma objetiva, o que se compreende por hospedagem atípica. Essa lacuna conceitual pode gerar dúvidas quanto à aplicabilidade da norma e dar margem a divergências interpretativas: seria aplicável apenas às locações por aplicativos digitais? Estaria abrangida a cessão de uso temporária por vínculos contratuais distintos da locação tradicional? A ausência de clareza pode provocar litígios e insegurança justamente no campo que se pretende regulamentar. Além disso, a proposta levanta debates relevantes quanto à função social da propriedade. Para adquirentes que compraram imóveis como investimento com base na rentabilidade decorrente da locação por temporada, a vedação poderá gerar impactos econômicos significativos. Por outro lado, a positivação da regra trará maior previsibilidade para novos compradores, que poderão considerar expressamente, no momento da aquisição, os limites legais e convencionais quanto ao uso das unidades. Nesse contexto, torna-se ainda mais relevante a prática da due diligence prévia à compra, a fim de que o adquirente avalie os riscos jurídicos e econômicos inerentes à destinação do imóvel no contexto condominial. Assim, a regulamentação da hospedagem atípica, embora represente um avanço no ordenamento, exigirá interpretações cautelosas e adequações criteriosas das convenções condominiais, para que não haja violação à autonomia dos condôminos nem comprometimento da harmonia coletiva. Uso exclusivo de áreas comuns: Regulação e impactos da reforma O uso exclusivo de partes das áreas comuns por determinados condôminos é prática recorrente nos condomínios edilícios, sobretudo em unidades térreas ou de cobertura, cujos moradores frequentemente se beneficiam de porções adjacentes do espaço coletivo, sem que haja, em muitos casos, oposição por parte do condomínio. Apesar de essas áreas estarem, por definição legal (art. 1.331 do CC), vinculadas ao uso comum de todos os condôminos, a tolerância prolongada e pacífica do uso exclusivo pode gerar uma situação de aparente legitimidade, muitas vezes acompanhada de investimentos em manutenção e melhorias pelo usuário exclusivo.3 O art. 1.340 do CC4 estabelece que o condômino que se beneficia com exclusividade de parte da área comum é responsável pelos encargos decorrentes de sua conservação, dispensando os demais condôminos desse ônus. Essa previsão busca garantir a proporcionalidade dos encargos, conforme o princípio da equidade, mas não avança sobre a permissibilidade ou forma de autorização para esse tipo de uso. A legislação civil vigente, ao tratar das áreas comuns, limita-se a classificá-las juridicamente, sem proibir ou autorizar expressamente a cessão de uso exclusivo a determinados condôminos. Essa omissão normativa tem gerado interpretações divergentes e, na prática, forçado gestores e assembleias a recorrerem a princípios como a boa-fé objetiva, a função social da propriedade e à figura da suppressio, instituto vinculado à teoria do venire contra factum proprium, que impede o exercício de um direito quando, por tempo prolongado, seu titular deixa de exercê-lo, gerando legítima expectativa de renúncia. A proposta de reforma do CC visa suprir essa lacuna ao incluir, no §5º do art. 1.331, a possibilidade de cessão precária do uso exclusivo de pequenos espaços comuns a condôminos, desde que aprovada em assembleia especialmente convocada para esse fim, por maioria dos votos dos presentes. A cessão poderá ocorrer de forma onerosa ou gratuita, e deve respeitar os fins condominiais. Trata-se, portanto, da positivação de uma prática já amplamente aceita na jurisprudência e na experiência cotidiana, agora formalizada com critérios legais que buscam assegurar maior segurança jurídica. A alteração proposta representa um avanço importante para a consolidação da autonomia condominial, conferindo maior previsibilidade às decisões e permitindo que situações toleradas - ou mesmo judicializadas - sejam tratadas previamente pela via da convenção ou da deliberação assemblear. No entanto, o texto da proposta deve ser redigido com cautela, sob pena de permitir distorções que afetem a isonomia entre os condôminos, gerem conflitos sobre a destinação das áreas comuns ou provoquem prejuízos patrimoniais e estéticos ao conjunto. Assim, embora a proposta represente uma adequação normativa à realidade prática, é fundamental que as convenções condominiais e os regimentos internos prevejam critérios objetivos para essa cessão, evitando abusos e assegurando que a fruição exclusiva de partes comuns ocorra de forma transparente, proporcional e compatível com o interesse coletivo. Assembleias condominiais: Novas regras de deliberação e participação A proposta do novo CC visa conceder mais poderes para as assembleias condominiais, reforçando o poder das deliberações e fortalecendo a autonomia privada dos condôminos. Nesse cenário, no que se refere às Assembleias Gerais - ordinárias ou extraordinárias, a proposta legislativa reforça o poder de autorregulação dos condomínios. Embora a soberania das decisões assembleares seja relativa, por estar subordinada à legislação, à convenção condominial e aos princípios e direitos fundamentais, a reforma confere maior autonomia à coletividade. Busca-se, com isso, assegurar que as deliberações assembleares reflitam, de forma legítima, os interesses da maioria dos condôminos. Desde logo, destaca-se que a proposta do novo CC, em seu art. 1.3355, inciso IV, confere à convenção condominial a atribuição de estabelecer a competência das assembleias, a forma de convocação e os quóruns necessários para deliberação. Caberá, portanto, a dois terços dos condôminos deliberar sobre essas normas organizacionais, disciplinando o funcionamento interno do condomínio, inclusive quanto aos parâmetros para realização e validade das assembleias. A proposta do novo CC inova ao tratar da participação dos inadimplentes nas assembleias condominiais. Diferente da legislação vigente, que veda expressamente a participação e o voto, o novo texto apenas mantém a vedação ao direito de votar, sem proibir a presença do condômino inadimplente. Na prática, tal omissão exige cautela da gestão condominial, sobretudo nas assembleias presenciais, a fim de evitar constrangimentos ou exclusões indevidas. Outro ponto relevante é a ampliação do conceito de inadimplência, que passa a abranger não apenas o descumprimento de obrigações financeiras, mas também o desrespeito aos deveres de convivência previstos no art. 1.336 do CC. Dessa forma, condutas antissociais reiteradas podem, conforme previsto em convenção, ensejar a restrição à participação do condômino nas deliberações, fortalecendo a autorregulação condominial e a harmonia coletiva. Importante ressaltar que, embora a proposta do art. 1.335, inciso III, permita a participação do condômino inadimplente nas assembleias, o art. 1.335-A6 reforça o fortalecimento da autorregulação condominial, ao prever que a convenção poderá restringir não apenas o direito de voto, mas também o de participação nas deliberações. Assim, pela redação do projeto, o inadimplente pode participar das assembleias - ainda que impedido de votar, salvo disposição em sentido contrário na convenção condominial. Ou seja, a norma permite que os próprios condôminos estabeleçam, por meio da convenção, regras mais restritivas quanto à presença de inadimplentes nas reuniões, inclusive vedando sua participação integral. No mais, visando evitar que um condômino detenha poder desproporcional por meio de procurações apresentadas em assembleia, a proposta também regulamenta prática já recorrente, permitindo que a convenção limite a quantidade de procurações para representação de condôminos nas deliberações assembleares7.  A proposta também busca legitimar práticas já consolidadas na realidade condominial e reconhecidas pelo Judiciário, como a limitação de procurações para representação em assembleias e a cessão onerosa ou gratuita de pequenos espaços comuns, conforme previsto no art. 1.331, §5º do projeto8. Nesse contexto, destaca-se o reconhecimento das chamadas práticas consuetudinárias - normas de conduta oriundas da vivência cotidiana da coletividade condominial, que, embora não formalizadas legalmente, vinham sendo admitidas com base na autonomia privada e no princípio da boa-fé. Ao positivá-las, o legislador confere maior segurança jurídica, valorizando a autorregulação interna dos condomínios e reduzindo a margem de controvérsia interpretativa. Por outro lado, o papel do síndico, seja morador ou profissional, é imprescindível para que o protagonismo dos condôminos nas assembleias - intenção manifesta do legislador - seja efetivamente concretizado. Sua atuação contribui para tornar as assembleias mais organizadas, estimulando a participação segura dos condôminos e assegurando o cumprimento das decisões tomadas pela maioria, desde que observados os quóruns legais e convencionais exigidos, e que tais deliberações ocorram de forma democrática e em conformidade com a legalidade. Em síntese, a proposta de reforma do CC, ao tratar das assembleias condominiais, busca fortalecer a vontade da maioria, valorizando a autorregulação e a deliberação coletiva como pilares da governança interna. Tal aprimoramento normativo é benéfico não apenas para a estrutura administrativa dos condomínios, mas também para a sociedade como um todo, na medida em que estimula a participação ativa dos condôminos e o respeito às normas legais e convencionais. Ao conferir maior segurança jurídica às decisões assembleares e consolidar a democracia interna, o legislador visa otimizar a gestão condominial e, sobretudo, reduzir a judicialização de conflitos que poderiam ser solucionados no próprio âmbito comunitário. Exclusão do condômino antissocial: Novas regras e limites jurídicos Sob a ótica da legislação vigente, conforme o parágrafo único do artigo 1.3379 do CC, considera-se condômino antissocial aquele que, por sua conduta, compromete a convivência com os demais moradores. Como forma de sanção, poderá ser aplicada multa de até dez vezes o valor da contribuição devida às despesas condominiais No entanto, a aplicação da referida penalidade, muitas vezes, revela-se insuficiente para resolver o problema, resultando na judicialização da controvérsia e na eventual necessidade de exclusão do condômino antissocial. Essa medida extrema encontra amparo na conjugação dos princípios do abuso de direito (art. 187 do CC10) e da função social da propriedade (art. 5º, XXIII11 da CF/88). Com o intuito de trazer maior clareza e segurança jurídica à matéria, a proposta de reforma do CC (PL 4, de 2025) promove a inovação relevante ao inserir o § 3º ao art. 1.33712. O dispositivo prevê que, constatada a ineficácia da sanção pecuniária, poderá ser deliberada, em assembleia, a exclusão do condômino antissocial, devendo tal decisão ser submetida à apreciação judicial, mantendo o Poder Judiciário como árbitro dessa matéria. Na prática, a exclusão consistirá na proibição de acesso à unidade autônoma e as áreas comuns do condomínio, sem implicar perda do direito de propriedade, mas sim restrição ao exercício da posse direta. Quanto ao quórum deliberativo, a proposta fixa expressamente o percentual de 2/3 dos condôminos presentes em assembleia, formalizando por meio de legislação infraconstitucional o entendimento que já vinha sendo consolidado pela jurisprudência ao longo dos anos.  Ressalte-se, ainda, que a proposta de reforma estabelece ajustes no § 2º do art. 1.336, relativos à aplicação de juros moratórios convencionados e da majoração da multa de até 10% (dez por cento) sobre o débito, em casos de não pagamento do rateio das despesas ordinárias e extraordinárias condominiais13.  No que diz respeito aos "juros moratórios convencionados ou não sendo previstos, aos juros estabelecidos no art. 406 deste Código" fica uma aparente lacuna quanto ao percentual estabelecido e caso a convenção se mantenha silente, a tendência é que surjam diversos questionamentos quanto aos juros a serem aplicados, o que resultaria em mais insegurança jurídica sobre o tema. Um outro ponto relevante a ser considerado é que, em muitas situações, o condômino antissocial também se apresenta como inadimplente contumaz. O ciclo inicia-se com a imposição de sanções pecuniárias, gera multas elevadas - que não são quitadas - e, frequentemente, culmina na inadimplência. Nesse cenário, a expulsão, embora medida drástica, pode configurar a única alternativa para romper esse ciclo, resguardando a saúde financeira do condomínio ao afastar a fonte do desequilíbrio social. Ademais, ao regulamentar expressamente a possibilidade de exclusão do condômino antissocial, a proposta de reforma do CC tende a conferir maior segurança jurídica e respaldo à atuação dos condomínios, permitindo que suas decisões se sustentem diante de condutas reiteradamente incompatíveis com a vida em comunidade. Por fim, destaca-se a relevância de que as Convenções e os Regimentos Internos estejam adequadamente adaptados às novas disposições legais, estabelecendo critérios objetivos para a caracterização do comportamento antissocial. Isso contribuirá para mitigar litígios desnecessários e garantir que a legislação seja aplicada como ferramenta efetiva para a promoção da ordem, da convivência pacífica e da harmonia condominial. Conclusão A proposta de reforma do CC apresenta um conjunto de alterações que, embora pontuais no aspecto normativo, são capazes de produzir transformações estruturais profundas no regime jurídico dos condomínios edilícios. O reconhecimento da personalidade jurídica do condomínio, a limitação ao uso atípico das unidades autônomas, o fortalecimento do poder deliberativo da assembleia e a regulamentação da exclusão do condômino antissocial refletem uma tentativa clara de dar maior previsibilidade, segurança e eficácia à vida em comunidade. Ainda que se trate de uma proposta em trâmite, os debates já evidenciam a necessidade de revisão de institutos que, na prática, têm se mostrado insuficientes ou ultrapassados frente à complexidade da convivência condominial contemporânea. A reforma busca não apenas consolidar entendimentos jurisprudenciais, mas também oferecer novos instrumentos à coletividade para gerir, com autonomia e responsabilidade, as tensões inerentes ao uso compartilhado da propriedade. Nesse sentido, o aprimoramento legislativo deve caminhar ao lado da técnica interpretativa e da atuação profissional qualificada. O desafio que se impõe à doutrina, à jurisprudência e aos operadores do Direito é o de garantir que as mudanças legislativas sirvam à pacificação das relações condominiais, promovendo equilíbrio entre a proteção da propriedade privada e a valorização do interesse coletivo, sem abrir margem para arbitrariedades nem para omissões. Em um cenário de transformação normativa, cabe à comunidade jurídica acompanhar criticamente os desdobramentos da proposta, contribuindo para que a modernização legislativa se traduza em efetiva melhoria da convivência condominial. ________________________ 1 Art. 44. São pessoas jurídicas de direito privado: I - as associações; II - as sociedades; III - as fundações. IV - as organizações religiosas; (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003) V - os partidos políticos. (Incluído pela Lei nº 10.825, de 22.12.2003) VI - (Revogado pela Lei nº 14.382, de 2022) VII - os empreendimentos de economia solidária.      (Redação dada pela Lei nº 15.068, de 2024) 2 TRIBUTÁRIO. CONDOMÍNIOS EDILÍCIOS. PERSONALIDADE JURÍDICA PARA FINSDE ADESÃO À PROGRAMA DE PARCELAMENTO. REFIS . POSSIBILIDADE. 1. Cinge-se a controvérsia em saber se condomínio edilício éconsiderado pessoa jurídica para fins de adesão ao REFIS. 2 . Consoante o art. 11 da Instrução Normativa RFB 568/2005, oscondomínios estão obrigados a inscrever-se no CNPJ. A seu turno, aInstrução Normativa RFB 971, de 13 de novembro de 2009, prevê, emseu art. 3º, § 4º, III, que os condomínios são considerados empresas- para fins de cumprimento de obrigações previdenciárias . 3. Se os condomínios são considerados pessoas jurídicas para finstributários, não há como negar-lhes o direito de aderir ao programade parcelamento instituído pela Receita Federal. 4. Embora o Código Civil de 2002 não atribua ao condomínio a formade pessoa jurídica, a jurisprudência do STJ tem-lhe imputadoreferida personalidade jurídica, para fins tributários . Essaconclusão encontra apoio em ambas as Turmas de Direito Público: REsp411832/RS, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em18/10/2005, DJ 19/12/2005; REsp 1064455/SP, Rel. Ministro CastroMeira, Segunda Turma, julgado em 19/08/2008, DJe 11/09/2008 .Recurso especial improvido. (STJ - REsp: 1256912 AL 2011/0122978-6, Relator.: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 07/02/2012, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/02/2012) 3 Art. 1.331. Pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e partes que são propriedade comum dos condôminos. 4 Art. 1.340. As despesas relativas a partes comuns de uso exclusivo de um condômino, ou de alguns deles, incumbem a quem delas se serve. 5 Art. 1.335-A. A convenção poderá limitar o direito de participação e de voto nas assembleias de condôminos que:  I - estiverem inadimplentes para com o dever de contribuir para as despesas, ordinárias ou extraordinárias, do condomínio ou de rateio extraordinário aprovado em assembleia, qualquer que seja a sua finalidade; II - estiverem inadimplentes quanto aos valores do reembolso de reparos ou de indenizações a que eles próprios tenham sido condenados a pagar; III - tiverem sido apenados na forma do art. 1.337 deste Código; IV - descumprirem quaisquer dos deveres elencados no art. 1.336 deste Código. 6 Art. 1.335-A. A convenção poderá limitar o direito de participação e de voto nas assembleias de condôminos que:  I - estiverem inadimplentes para com o dever de contribuir para as despesas, ordinárias ou extraordinárias, do condomínio ou de rateio extraordinário aprovado em assembleia, qualquer que seja a sua finalidade; II - estiverem inadimplentes quanto aos valores do reembolso de reparos ou de indenizações a que eles próprios tenham sido condenados a pagar; III - tiverem sido apenados na forma do art. 1.337 deste Código; IV - descumprirem quaisquer dos deveres elencados no art. 1.336 deste Código. 7 Art. 1335-A, Parágrafo único. A convenção poderá, também, limitar a possibilidade de representação convencional dos condôminos nas assembleias. 8 Art. 1.331, § 5º No caso do § 4º, a assembleia, especialmente convocada para tanto, pode ceder, por maioria dos votos dos condôminos, a um ou mais condôminos, em caráter precário, oneroso ou gratuito, o exercício exclusivo de posse sobre pequenos espaços comuns. 9 Parágrafo único. O condômino ou possuidor que, por seu reiterado comportamento anti-social, gerar incompatibilidade de convivência com os demais condôminos ou possuidores, poderá ser constrangido a pagar multa correspondente ao décuplo do valor atribuído à contribuição para as despesas condominiais, até ulterior deliberação da assembléia. 10 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 11 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; 12 § 3º Verificando-se que a sanção pecuniária se mostrou ineficaz, ulterior assembleia poderá deliberar, por 2/3 dos condôminos presentes, pela exclusão do condômino antissocial, a ser efetivada mediante decisão judicial, que proíba o seu acesso à unidade autônoma e às dependências do condomínio. 13 § 2º O condômino que não pagar os valores do rateio ordinário ou extraordinário de despesas, ou aquele que não fizer o reembolso de valores a que foi condenado a pagar ao condomínio, a qualquer título, ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, aos juros estabelecidos no art. 406 deste Código, bem como à multa de até dez por cento sobre o débito, sendo vedada a estipulação de cláusula de desconto em razão da antecipação de pagamento. BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2025. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2025.  BRASIL. Congresso Nacional. Anteprojeto de Lei do Novo Código Civil. Estabelece a reforma e atualização do Código Civil brasileiro. Brasília, DF: Senado Federal, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 29 set. 2025. CÓCOLO, Victoria. Repercute expulsão de condôminos; direito à propriedade não é absoluto, dizem advogados. Consultor Jurídico (ConJur), [S.l.], 6 mar. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 01 out. 2025. COMISSÃO DE JURISTAS PARA A REFORMA DO CÓDIGO CIVIL (2023-2024). Anteprojeto de Reforma do Código Civil Brasileiro. Brasília: Senado Federal, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 7 out. 2025. USP. Professor repercute proposta do novo Código Civil, que prevê a expulsão de morador antissocial. Jornal da USP, São Paulo, 28 set. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 7 out. 2025. MACEDO, Fausto. A reforma do Código Civil e o Direito das Coisas. Estadão, São Paulo, 15 abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 7 out. 2025. CORREIO BRAZILIENSE. O projeto de reforma do Código Civil e o empoderamento dos condomínios. Correio Braziliense, Brasília, 1 jul. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 7 out. 2025.
A promulgação da lei 13.786/18, conhecida como lei dos distratos, representou um marco na regulamentação das relações contratuais no setor imobiliário brasileiro. Com o objetivo de estabelecer critérios claros para a resolução de contratos de compra e venda de imóveis, a lei trouxe inovações significativas, como a definição de limites para cláusulas penais e a possibilidade de devoluções parceladas, ou também a devolução em até 30 dias após a expedição do habite-se em casos de incorporações. Apesar de sua relevância, quase sete anos após sua entrada em vigor, alguns julgados do STJ têm demonstrado uma preocupante resistência em aplicar seus preceitos, resultando em um cenário de insegurança jurídica que afeta tanto consumidores quanto empresas do setor. Esse contexto é ainda mais crítico quando se considera o período de crise do mercado imobiliário, frequentemente denominado "crise dos distratos", que viu os percentuais de distratos no Brasil permanecerem na casa de 40% ao mês. Durante esse tempo, muitas incorporadoras e loteadoras enfrentaram dificuldades financeiras, levando a uma série de pedidos de recuperação judicial. A necessidade de um marco regulatório que protegesse tanto os consumidores quanto as empresas do setor se tornou evidente. Recentemente, o julgamento do REsp 2.106.548/SP pela 3ª turma do STJ, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, trouxe à tona a controvérsia sobre a aplicação da lei dos distratos em uma ação de rescisão contratual envolvendo lotes. O caso em questão envolvia um adquirente que buscava a rescisão do contrato alegando dificuldades financeiras para cumprir com os pagamentos. Ao decidir, a ministra Andrighi defendeu que a relação entre o comprador e a loteadora se enquadrava no CDC, argumentando que a aplicação dos percentuais de retenção previstos na lei dos distratos seria excessiva e, portanto, não se aplicariam no caso. É crucial destacar que essa decisão reflete apenas a posição da 3ª turma e não a opinião do STJ como um todo. O voto da ministra não apenas ignorou os avanços da nova legislação, mas também invocou precedentes e súmulas anteriores à vigência da lei dos distratos, criando um cenário de retrocesso. Essa postura gerou críticas, especialmente no que diz respeito à sua interpretação do CDC como limitador da lei dos distratos. O entendimento da ministra sugere um "conflito de normas" que, na verdade, pode ser visto como uma resistência à modernização da legislação. Em contrapartida, o voto divergente do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva trouxe à tona argumentos relevantes. O ministro destacou que a lei dos distratos foi criada para conferir maior segurança jurídica tanto aos consumidores quanto às empresas do mercado imobiliário, estabelecendo critérios objetivos para a restituição de valores em casos de rescisão contratual. Cueva argumentou que a cláusula penal, quando ajustada conforme a nova legislação, não poderia ser considerada abusiva, pois respeita os limites impostos pela lei. Para ele, a aplicação da lei dos distratos visava reduzir a judicialização de conflitos, oferecendo previsibilidade às partes envolvidas. O contraste entre os votos evidencia uma divisão significativa na interpretação da legislação. Enquanto o voto da ministra Andrighi sugere uma preferência por interpretações conservadoras, ultrapassadas e obsoletas, que desconsideram a inovação trazida pela lei dos distratos, o voto do ministro Cueva aponta para a necessidade de aplicar a nova legislação de forma a garantir a segurança jurídica e a estabilidade das relações contratuais no setor imobiliário. A decisão da 3ª turma, que se inclinou para a interpretação da ministra Andrighi, levanta preocupações sobre a segurança jurídica e a coerência sistêmica da jurisprudência do STJ. Ao promover uma interpretação que ignora a eficácia da lei dos distratos, o tribunal não apenas fragiliza a confiança dos agentes econômicos, mas também perpetua a insegurança que a própria legislação buscou eliminar. Em um desdobramento importante, a 4ª turma do STJ, sob a relatoria da ministra Isabel Gallotti, julgou o REsp 2.104.086, reafirmando a aplicação da lei dos distratos. A decisão permitiu a retenção de valores devidos ao vendedor, incluindo a taxa de ocupação e a cláusula penal, mesmo em contratos de venda de lotes não edificados. O entendimento foi de que, após a entrada em vigor da lei dos distratos, era legal aplicar esses descontos nos casos de rescisão, demonstrando um alinhamento com as disposições estabelecidas pela legislação. Essa decisão contrasta com a resistência observada na Terceira Turma e ressalta a necessidade de uma interpretação coesa e uniforme que respeite a nova legislação. Portanto, é fundamental que o STJ reavalie sua abordagem em relação à lei 13.786/18 e busque uma interpretação que respeite tanto a letra quanto o espírito da legislação. A segurança jurídica deve ser uma prioridade, e a aplicação das normas deve estar alinhada com os avanços legislativos que visam proteger tanto consumidores quanto fornecedores de imóveis. A resistência em aplicar a nova legislação não apenas compromete a confiança dos consumidores, mas também o desenvolvimento de um mercado imobiliário saudável e dinâmico. É legítimo que haja divergência jurisprudencial e controle de abusos pontuais, mas não se pode admitir que a aplicação da lei seja afastada por objeções subjetivas ao seu conteúdo normativo. O STJ deve reafirmar seu papel institucional e garantir a plena eficácia da legislação federal, em respeito à legalidade, à segurança jurídica e à estabilidade das relações contratuais no setor imobiliário.
1. Introdução O direito de preferência assegurado ao locatário em determinadas modalidades de alienação do imóvel é assunto de grande recorrência na prática dos negócios imobiliários.  Não por acaso, dedicando-se ao tema no restrito âmbito das relações jurídicas locatícias, a Lei do Inquilinato dedica nada menos do que oito artigos para a sua normatização . A despeito dos mais de trinta anos de vigência da norma legal, há questões relevantíssimas que exsurgem de sua interpretação e que não foram de todo pacificadas, o que contribui para a indesejável insegurança jurídica que ainda teima em grassar sobre o assunto. Uma das questões que o tema suscita correlaciona o direito de preferência do inquilino com a "venda em bloco", ou, como se costuma designar na prática negocial, com a alienação do "todo imobiliário". Tal hipótese é regrada pelo artigo 31 da Lei 8.245/91, que assim dispõe: Art. 31. Em se tratando de alienação de mais de uma unidade imobiliária, o direito de preferência incidirá sobre a totalidade dos bens objeto da alienação. A norma em tela, que reproduziu quase sem alteração o texto legal do artigo 24, §2°, da Lei 6.649/79 - o qual, por sua vez, repetiu o do artigo 16, §2°, da Lei 4.494/64 - estabeleceu que, para a fattispecie "alienação de mais de uma unidade imobiliária", o efeito jurídico é o de que "o direito de preferência incidirá sobre a totalidade dos bens objeto da alienação". Examinando-se a norma decomposta, as primeiras indagações que se colocam são voltadas ao perfazimento da fattispecie. Como se deve interpretar a dicção "alienação de mais de uma unidade imobiliária"? Qual é o objeto do direito de preferência? É necessário que as múltiplas unidades alienadas sejam contíguas, de modo a compor fisicamente um todo? A norma só incide se todas as unidades estiverem locadas? E se múltiplos forem os proprietários/locadores, cada qual comprometido a alienar seu próprio imóvel em conjunto com outros, constituindo-se o bloco indissolúvel como objeto indivisível da proposta de aquisição, a norma em exame terá aplicação? Como o intérprete deve aferir, no caso concreto, a formação do "todo imobiliário"?  Acerca do efeito jurídico, como os proprietários/locadores devem ofertar a aquisição do "todo imobiliário" ao(s) seu(s) inquilino(s)? E como este(s) deve(m) exercer o direito de preferência se as alienações, embora jungidas em bloco único, podem se operacionalizar por negócios jurídicos de natureza distinta, com preços e formas de pagamento diversas? E se alguma das alienações integrantes do todo não ensejar direito de preferência, como prevê o artigo 32 da Lei do Inquilinato, v.g., para a permuta, fica ela isoladamente excluída do exercício do direito de preferência ou não haverá preferência para alienação alguma do todo?  Indagações tais como aquelas acima formuladas, cada vez mais frequentes na prática dos negócios imobiliários em razão da necessidade de aquisição em bloco para a formação de terrenos aptos a receber empreendimentos imobiliários, têm recebido pouca atenção da doutrina especializada e tendem a ser submetidas com cada vez mais intensidade aos Tribunais.  O presente ensaio busca trazer a discussão a lume e, modestamente, propor critérios para respostas. Clique aqui para conferir a íntegra da coluna.
Resumo O artigo analisa criticamente a figura da cota cabecel, mecanismo criado para centralizar a representação em empreendimentos de multipropriedade, e demonstra como seu uso indiscriminado tem subvertido a democracia condominial, violando princípios constitucionais de representatividade, função social da propriedade e boa-fé contratual. Amparado em doutrina, jurisprudência e casos concretos, o estudo revela que a cota cabecel transformou-se em instrumento de perpetuação do poder dos incorporadores, criando um sistema oligárquico de governança incompatível com o direito de participação dos multiproprietários. Defende-se a necessidade de revisão normativa e judicial do instituto, a adoção de mandatos temporários e maior transparência administrativa para restabelecer a legitimidade e a confiança no mercado de multipropriedade brasileiro. 1. Introdução: A sofisticação da centralização A cota cabecel, também chamada cota cabeceira, surgiu de práticas negociais que antecederam a lei 13.777/18, quando a multipropriedade foi incorporada ao CC, e passou a ser apresentada como expediente de eficiência administrativa para viabilizar decisões em empreendimentos com muitos coproprietários. A experiência prática, contudo, revela outro efeito: o mecanismo tem servido para subverter a democracia condominial, concentrando o poder decisório em um único polo, quase sempre o incorporador ou a administradora por ele indicada. Sob o discurso da eficiência, instala-se um arranjo que limita o direito de voz e voto dos multiproprietários e transforma a assembleia em mero rito de convalidação; preserva-se a forma democrática, mas o condomínio passa a operar, na substância, como uma estrutura oligárquica. 2. A origem e o discurso da eficiência Historicamente, a cota cabecel surgiu da necessidade prática de administrar empreendimentos de uso compartilhado com dezenas ou centenas de coproprietários. Inspirados no timeshare norte-americano e europeu, os incorporadores brasileiros criaram a figura da fração representativa, não comercializada, detida pelo próprio empreendedor e dotada de poderes deliberativos concentrados.1 Esse arranjo foi justificado sob o argumento da eficiência decisória: viabilizar assembleias, garantir quórum e assegurar continuidade administrativa nas fases iniciais do empreendimento.2 Entretanto, a ausência de regulação específica abriu espaço para a criação de verdadeiras monarquias condominiais, nas quais o titular da cota cabecel delibera isoladamente sobre matérias que, pela Constituição e pelo CC, deveriam ser decididas coletivamente. 3. O déficit democrático e a erosão da representatividade O problema fundamental da cota cabecel é que ela inverte a lógica de legitimidade das decisões condominiais. O condomínio edilício e, por extensão, a multipropriedade, é expressão de um microssistema democrático, baseado na deliberação colegiada e na proporcionalidade da participação.3 Ao suprimir o voto direto dos multiproprietários e concentrá-lo em um único representante imposto pela convenção, a cota cabecel viola o princípio da autoadministração condominial e transforma a assembleia em mera formalidade legitimadora. O condomínio deveria ser a expressão mais concreta e completa da convivência plural de interesses individuais e, por isso, seu funcionamento deveria refletir a vontade real e participativa de seus membros, nunca a imposição hierárquica e déspota de um deles. Contrário a isso, a cota cabecel costuma cria uma assimetria de poder incompatível com a natureza do instituto, onde sob a aparência de técnica de gestão, o que se opera é uma verdadeira usurpação do direito político interno dos condôminos: o direito de votar, de discordar e de fiscalizar. 4. Violação da função social da propriedade e da autonomia privada A CF/88 (art. 5º, XXIII e art. 170, III) impõe à propriedade a função social, exigindo que o exercício do domínio atenda à coletividade e não apenas ao interesse individual. A cota cabecel, ao perpetuar o controle exclusivo de um agente sobre o conjunto, desvirtua a função social da propriedade compartilhada, que exige a participação ativa de todos os cotistas. O argumento da "autonomia da convenção" é frequentemente invocado pelos defensores da cota cabecel, mas não resiste ao exame da boa-fé objetiva (art. 422, CC) nem à vedação de cláusulas abusivas (arts. 39 e 51, CDC). Portanto, uma convenção que eterniza o poder de um incorporador, impedindo que os demais multiproprietários deliberem, é formalmente válida, mas nos parece materialmente inconstitucional, por violar o núcleo essencial do direito de propriedade e o princípio da dignidade do contratante. Entendemos que submissão permanente dos multiproprietários à vontade do incorporador fere de morte o princípio da dignidade da pessoa humana. Uma relação desequilibrada, com uma parte se tornando vulnerável e com seus direitos fundamentais esvaziados. 5. A experiência prática: A gestão que cala os coproprietários A prática revela o efeito mais perverso da cota cabecel: a criação de um condomínio de fachada. Nos empreendimentos em que a figura é mantida indefinidamente, os multiproprietários não são informados sobre quem detém a cota cabecel, tampouco recebem atas completas, balancetes ou prestações de contas. Em alguns casos, a administradora que controla a cota decide sozinha sobre reformas, taxas, locações e destinação de lucros, sem consulta ou ratificação da assembleia. A convenção de multipropriedade, muitas vezes, reserva uma fração específica de cada unidade (a "cota cabecel") ao incorporador, dando a ele o voto daquela unidade nas assembleias. Isso garante controle desproporcional ao empreendedor e fere o princípio democrático condominial. A advogada Márcia Rezeke observa que, quando a representação da unidade fica concentrada nas mãos do incorporador ou grupo econômico, o Judiciário tende a anular essa cláusula, por entender que fere os direitos dos demais coproprietários1. Em termos concretos, a cota cabecel converte os multiproprietários em acionistas sem voto de uma sociedade travestida de condomínio, o que colide com a própria essência do instituto condominial, fundado na coadministração e na solidariedade de interesses. A doutrina mais recente tem denunciado os riscos dessa concentração de poder. Karina Melo Saraiva, em estudo apresentado ao Congresso IBRADIM Centro-Oeste (2025), afirma que "a cota cabecel, quando transformada em poder absoluto do incorporador, rompe o equilíbrio sistêmico entre as funções condominial, hoteleira e de locação".2 Já Carlos Elias de Oliveira, ao tratar da multipropriedade em Direito Civil Contemporâneo, ressalta que a autonomia privada "não pode ser utilizada como álibi para criar figuras jurídicas que conduzam à exclusão do condômino de seu próprio condomínio".3 O controle judicial dessas cláusulas inseridas nas convenções de condomínio, portanto, é imperativo. O Judiciário deve reconhecê-las como cláusulas de desequilíbrio estrutural, equivalentes à alienação do poder político condominial, sujeitas à nulidade por ofensa à boa-fé objetiva e à função social do contrato. A jurisprudência do TJ/RS já sinalizou nessa direção, ao afirmar que a cláusula de representação única "não é nula per se, mas deve ser invalidada sempre que haja conflito de interesses ou falta de transparência".4 6. A prática revelada: Padrões de abuso em casos concretos A experiência forense em empreendimentos de multipropriedade revela um padrão recorrente de manipulação da cota cabecel para perpetuação do controle empresarial. Em um caso paradigmático de resort em região turística do Rio Grande do Sul, constatou-se a formação de um complexo grupo econômico onde incorporadora, administradora e empresa de cobrança compartilhavam o mesmo quadro societário, operavam no mesmo endereço e utilizavam canais únicos de comunicação. Mais grave ainda: os multiproprietários sequer conheciam a identidade dos detentores das cotas cabecéis, criando uma "caixa-preta" de poder onde decisões que afetam centenas de famílias são tomadas por figuras anônimas. A assembleia de instalação foi realizada sem convocação válida dos proprietários, impossibilitando a apresentação de outras empresas interessadas na administração e configurando um sistema que confere poder absoluto ao incorporador em detrimento dos demais condôminos. Em outro caso emblemático, desta vez em polo turístico paulista, a manipulação assumiu contornos ainda mais sofisticados: a incorporadora registrou uma nova convenção de condomínio apenas cinco dias antes da assembleia de instalação, alterando unilateralmente as regras de votação sem qualquer deliberação prévia. A convenção original previa votação proporcional às frações ideais, mas a versão imposta criou o sistema de "cabecéis" com cláusula mandato em favor da administradora, permitindo que esta vote pelos ausentes. Neste último caso, foram impostas restrições severas: procurações limitadas a apenas cinco cotas por representante, exigência de firma reconhecida e convocações que restringem a participação a determinadas categorias do calendário de uso. O resultado é um sistema onde "devem ser sempre as mesmas pessoas que decidem pelos que são impedidos de comparecer", criando uma oligarquia condominial disfarçada de democracia participativa. Esses casos demonstram que a cota cabecel, longe de ser um instrumento de eficiência, tornou-se uma sofisticada engenharia de exclusão democrática. 7. Caminhos de reconstrução: Participação e transparência O desafio, portanto, não está em extinguir a cota cabecel, mas em reconstruí-la sob bases democráticas e transitórias. Três mecanismos são essenciais: Mandatos temporários e revisáveis do titular da cota cabecel, vinculados a fases de implantação e sujeitos à aprovação da assembleia. Efetiva de representante por unidade, com a democratização da representatividade dos multiproprietários; Prestação de contas obrigatória e pública, com acesso digital aos multiproprietários e direito de fiscalização direta; Criação de conselhos de multiproprietários, quando as cotas cabecéis se concentram na mão do incorporador ou administrador, com poder consultivo e deliberativo, garantindo que a gestão não se confunda com propriedade. Entendemos que essas medidas representam um caminho possível de harmonização entre eficiência administrativa e representatividade real. 8. As implicações sistêmicas: Quando o abuso compromete o mercado O uso abusivo da cota cabecel está gerando uma crise de confiança estrutural no mercado de multipropriedade brasileiro. Quando os consumidores descobrem que seus direitos de participação foram suprimidos por mecanismos ocultos, a reação não se limita ao empreendimento específico, ela contamina toda a percepção do setor. A proliferação de associações de multiproprietários e o aumento exponencial de ações judiciais são sintomas de um mercado que perdeu a credibilidade junto ao seu público-alvo. A médio prazo, isso se traduz em resistência do consumidor a novos investimentos e dificuldade de captação para novos empreendimentos. Como consequência disso, a perpetuação dessas práticas está provocando uma judicialização em massa do setor. Cada empreendimento com cota cabecel abusiva torna-se um foco potencial de litígio coletivo, gerando custos astronômicos para incorporadores, administradoras e, indiretamente, para todo o sistema. Os custos de defesa judicial, as condenações em danos morais coletivos e as anulações de convenções criam um passivo contingente que compromete a viabilidade econômica dos empreendimentos. Mais grave: a jurisprudência consolidada contra essas práticas criará um efeito dominó, incentivando ações similares em outros empreendimentos. Nossa percepção é de que empreendimentos com governança viciada tenderão a sofrer desvalorização patrimonial significativa. Investidores institucionais e fundos imobiliários, cada vez mais sofisticados, evitam ativos com passivos jurídicos ou reputacionais. A cota cabecel abusiva cria um "desconto de governança" que reduz o valor de mercado das frações. Além disso, a fuga de investidores qualificados deixa o mercado dependente de consumidores menos informados, criando um ciclo vicioso de deterioração da qualidade dos empreendimentos. Por conta de muitos empreendimentos de multipropriedade estarem localizados em destinos turísticos estratégicos, a crise de confiança no setor pode afetar a atratividade turística dessas regiões. Consumidores insatisfeitos tornam-se detratores ativos, prejudicando a imagem dos destinos. Cidades como Gramado, Olímpia, Caldas Novas e outras que dependem economicamente do turismo podem sofrer impactos econômicos regionais significativos se o mercado de multipropriedade entrar em colapso reputacional. Conclusão A cota cabecel nasceu de um problema de governança, mas degenerou em um problema de legitimidade. O que era para ser instrumento de eficiência tornou-se uma ferramenta de controle; o que era solução transitória converteu-se em perpetuação de poder. Sob a ótica constitucional, consumerista e civil, a figura carece de limites e de reinterpretação normativa urgente. Enquanto o mercado insistir em reproduzir esse modelo sem controle, a multipropriedade continuará sendo um regime em que muitos são donos, mas poucos mandam.  Isto cria um paradoxo que desafia não apenas o Direito Imobiliário, mas a própria ideia de democracia privada. A longo prazo, o mercado será forçado a se reinventar. Empreendimentos que adotarem modelos de governança transparente, com participação efetiva dos multiproprietários, conselhos consultivos e mandatos temporários para administração, terão vantagem competitiva significativa. A transparência se tornará um diferencial de mercado, não apenas uma obrigação legal. Incorporadores visionários já começam a perceber que a sustentabilidade do negócio depende da construção de relações de confiança duradouras, não da exploração de assimetrias de poder. O mercado de multipropriedade brasileiro está em uma encruzilhada histórica. Pode continuar no caminho da exploração de consumidores através de mecanismos como a cota cabecel abusiva, arriscando uma crise sistêmica irreversível, ou pode evoluir para um modelo maduro, transparente e sustentável. A escolha não é apenas dos incorporadores, é de todo o ecossistema, incluindo administradoras, órgãos reguladores e o próprio Poder Judiciário. O tempo para correção de rota está se esgotando, e a história de outros países mostra que mercados que não se autorregulam acabam sendo regulados de forma draconiana pelo Estado. _______________________ 1 Revista Hotéis - "Vigência da Lei da Multipropriedade é tema de painel ADIT Share 2020". Revista Hotéis, 26/11/2020. (Debate sobre multipropriedade e cota cabecel, com juristas) 2 SARAIVA, Karina Melo. Gestão de Condomínios em Multipropriedade. Congresso IBRADIM Centro-Oeste, 2025. 3 OLIVEIRA, Carlos Elias de. Multipropriedade e a Função Social da Propriedade Compartilhada. Revista de Direito Civil Contemporâneo, n. 33, 2024. 4 TJRS, Apelação Cível nº 5007393-48.2022.8.21.0101, Rel. Des CARLOS CINI MARCHIONATTI, j. 16 nov. 2023. Disponível aqui.
A composição dos DBs - Dispute Boards, também designados como comitês de Resolução de Disputas, foi tema recente de um interessante diálogo sobre o melhor arranjo desses painéis em obras de infraestrutura e em contratos de longa duração. A questão central reside na dúvida em se formar painéis exclusivamente técnicos, conduzidos por engenheiros, ou privilegiar a formação jurídica e constituí-los por advogados com domínio contratual. A solução não é tão simples e objetiva, mas uma análise comparativa de experiências internacionais e brasileiras aponta para uma convergência, no sentido de que devemos buscar o equilíbrio. Nos contratos de construção de grande porte, o instituto se consolidou como um mecanismo de prevenção e solução célere e eficiente de disputas, onde os conflitos envolvem normalmente cronogramas, metodologias construtivas, qualidade de materiais e impactos econômico-financeiros, o que ensejou a preferência recorrente por engenheiros. Acreditando assim que estes painéis técnicos conseguem dar respostas rápidas e práticas, frequentemente aceitas pelas partes, enquanto existe um entendimento que os advogados devem ter papel consultivo ao comitê, evitando-se que os procedimentos se tornem excessivamente formais ou litigiosos. Não obstante a crença em alguns nestes argumentos, é preciso reconhecer que uma decisão tecnicamente correta pode se revelar frágil do ponto de vista jurídico, quando confrontada posteriormente em uma arbitragem ou no judiciário. Um dispute board sem advogados corre o risco de adotar soluções que tecnicamente se mostrem adequadas, mas podem ser frágeis juridicamente, onde a ausência de conformidade legal compromete a eficácia de uma decisão. Somente a presença de advogados experientes em contratos complexos assegurará a adequada coerência com as normas de ordem pública e a garantia do devido processo legal. Por outro lado, painéis formados exclusivamente por advogados podem se desviar para formalismos desnecessários, recursos reiterados e incidentes processuais, que resultam no encarecimento e atraso dos procedimentos. Por isso, a prática recomenda composições capazes de preservar a vocação preventiva e pragmática do dispute board, sem abrir mão do rigor jurídico indispensável à estabilidade das decisões. Esse possível excesso jurídico tem levado à defesa da importância de se buscar resgatar o caráter prático e preventivo dos mecanismos extrajudiciais, o que se daria com a indispensável presença de engenheiros nos dispute boards, uma medida necessária para chegar a decisões que reflitam a realidade dos canteiros de obra, reduzindo a dependência de perícias, que podem se tornar algumas vezes demoradas e onerosas. Em termos concretos, surgem inclusive arranjos em casos específicos com a presença de um único membro, que pode ser um engenheiro especializado em situações técnicas específicas ou um advogado com experiência em contratos complexos, embora o arranjo mais comum seja o colegiado de três membros, com dois engenheiros e um advogado, existindo diversos casos de indicação de profissionais com dupla formação. Devemos ainda observar que, em regra, a formação unicamente jurídica tende a necessitar de assessoramento técnico permanente e pode estimular debates processuais, que afastam o painel de sua missão central. A experiência brasileira se alinha a esta convergência, em obras como o metrô de São Paulo e concessões rodoviárias estaduais, demonstrando que em nosso país tem prevalecido esta composição, cuja combinação de competências técnicas e jurídicas se mostrou uma eficiente ferramenta para evitar paralisações, preservar a continuidade do contrato e reduzir custos. Esta realidade demonstra que, mais do que escolher entre engenheiros ou advogados, o que se busca são decisões rápidas, bem fundamentadas e exequíveis, que diminuem a litigiosidade e preservam o ritmo das obras. Além da composição profissional, importam as habilidades interpessoais, tais como escuta ativa, empatia, clareza na comunicação e firmeza na condução do comitê, que influenciam a qualidade das decisões, tanto quanto a bagagem técnica e jurídica. Um dispute board eficiente torna-se um espaço de diálogo institucionalizado, cuja credibilidade pessoal de seus membros se reveste no maior trunfo do colegiado e reforça a autoridade das recomendações e decisões. Diante desta reflexão, verifica-se não se tratar de escolher uma profissão em detrimento de outra, mas combinar as formações em busca da prevenção de litígios e de soluções rápidas, técnica e juridicamente sólidas. O futuro dos dispute boards no Brasil dependerá da capacidade de combinar competências, resguardar a essência preventiva e conter excessos formais, uma vez que o melhor dispute board é aquele que une engenheiros e advogados em torno de um propósito comum, que é a garantia da continuidade dos empreendimentos e a estabilização das relações contratuais.
A proposta de alteração do art. 726 do CC, trazida pelo projeto de reforma e atualização do CC (PL 4/25), reacende o debate sobre os limites da exclusividade nos contratos de corretagem imobiliária, diante das lacunas atualmente existentes na redação atual do dispositivo, cuja previsão é: Art. 726. Iniciado e concluído o negócio diretamente entre as partes, nenhuma remuneração será devida ao corretor; mas se, por escrito, for ajustada a corretagem com exclusividade, terá o corretor direito à remuneração integral, ainda que realizado o negócio sem a sua mediação, salvo se comprovada sua inércia ou ociosidade. No contexto contratual, a exclusividade corresponde à cláusula que assegura ao corretor de imóveis a sua remuneração, mesmo que o negócio se realize sem a sua intervenção, caso efetivado no curso do prazo contratual ou iniciado no lapso de sua vigência, com a apresentação do interessado pelo corretor, mesmo que a conclusão seja fora dele1. Nas lições de Alexandre Junqueira Gomide:  Muitas empresas também insistem que o contrato de corretagem seja firmado com exclusividade, prometendo ao cliente facilidades tais como publicidade em jornais de grande circulação, exposição do imóvel aos finais de semana, dentre outros benefícios. Em troca, a empresa de corretagem tem garantido o direito à comissão de corretagem caso a intermediação seja realizada por terceiros2. O direito ao recebimento da comissão somente poderá ser afastado quando houver a efetiva comprovação de inércia ou de ociosidade pelo corretor, haja vista o seu dever de diligência e de probidade para a obtenção do negócio3. Em consonância, o TJ/SP, representado por sua 42ª Câmara Cível, sedimentou, em recente julgado, o entendimento de que mesmo que o vendedor tenha alienado o imóvel por conta própria, na vigência de cláusula de exclusividade em contrato de corretagem, faz-se devido o pagamento da comissão4. Todavia, a despeito de consolidado o entendimento de que haveria uma presunção relativa do direito à comissão, há celeuma quanto à delimitação do prazo para a vigência da cláusula de exclusividade, uma vez que a redação atual do art. 726 do CC foi omissa quanto à questão. Acerca do tema, leciona Arnaldo Rizzardo que a ausência de prazo para a exclusividade vincularia o comitente de modo indefinido, em restrição ao próprio direito de propriedade, ensejando óbice à função do instituto5.  Nesse viés, a proposta de alteração do art. 726, do CC, pelo PL 4/25, prevê que para a validade da exclusividade no contrato de corretagem faz-se necessária a observância não somente da forma por escrito, mas também de estipulação de prazo determinado para seu exercício, o que, no silêncio das partes, será fixado em cinco anos. É a previsão do PL 4/25: Art. 726. Iniciado e concluído o negócio diretamente entre as partes, nenhuma remuneração será devida ao corretor; mas se, por escrito, for ajustada a corretagem com exclusividade, terá o corretor direito à remuneração integral, ainda que realizado o negócio sem a sua atuação, salvo se comprovada sua inércia ou ociosidade. § 1º A exclusividade deverá ser prevista por escrito e por tempo determinado. § 2º Na falta de previsão expressa quanto ao tempo da exclusividade, esta será de cinco anos. Em especial, há de se criticar a propositura da redação do § 2º do art. 726, pelo PL 4/25, consoante o qual, na falta de previsão contratual em sentido contrário, o prazo de vigência da exclusividade será de cinco anos.  Nessa toada, aponta-se que o prazo de cinco anos demonstra-se demasiadamente dilatado, indo de encontro à função da exclusividade na corretagem, pautada na concentração de diligências para o alcance do resultado útil pretendido, com o resguardo ao corretor do direito à comissão caso, mesmo sem a sua intermediação, o negócio venha a ser realizado6. Na praxe imobiliária, aponta-se que relevantes sociedades empresárias voltadas à intermediação se valem do prazo de 180 (cento e oitenta) dias para a vigência da exclusividade, demonstrando que a redação proposta no PL 4/25 destoa da realidade negocial. Da leitura do relatório parcial apresentado pela subcomissão de juristas responsáveis pela parte de contratos na reforma do CC, constata-se a ausência de qualquer menção a dispositivos normativos, a jurisprudência e a enunciados firmados nas Jornadas do Conselho da Justiça Federal, de modo que não foram indicados os fundamentos que ensejaram a propositura de prazo tão amplo. Nesse contexto, em que pese ser louvável a proteção ao corretor, fundamental para a viabilização de negócios jurídicos, com efetividade e segurança, a fixação do prazo de cinco anos para a vigência da cláusula de exclusividade, quando do silêncio contratual, enseja relevantes preocupações. Em sugestão de lege ferenda, aponta-se a fixação de prazo mais reduzido, adequado ao que já costuma ser praticado no mercado, com a seguinte proposta de redação ao art. 726, § 2º, do CC, constante no PL 4/25: "Na falta de previsão expressa quanto ao tempo da exclusividade, esta será de cento e oitenta dias." Assim, a exclusividade no contrato de corretagem será exercida de modo compatível tanto com os interesses dos corretores quanto dos contratantes, ensejando segurança jurídica e suprindo lacunas atualmente existentes na redação do CC. ________________________ 1 VENOSA, Silvio de Salvo. Manual de contratos e obrigações unilaterais da vontade. São Paulo: Atlas, 1997, p. 377. 2 GOMIDE, Alexandre Junqueira; "Contratos de Corretagem: Responsabilidades Quanto à Segurança Jurídica do Contrato Pretendido e Comissão pelo Resultado Útil. Um Estudo à luz do Código Civil", p. 252. Direito Civil: Estudos - Coletânea do XV Encontro dos Grupos de Pesquisa - IBDCIVIL: Estudos - Coletânea do XV Encontro dos Grupos de Pesquisa - IBDCIVIL. São Paulo: Blucher, 2018. 3 DONDELLI, Luís V.; MACHADO, Costa (orgs.); CHINELLATO, Silmara Juny (coord.). Código Civil Interpretado. 10. ed. São Paulo: Manole, 2017, p. 556. 4 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação Cível n. 1091863-11.2023.8.26.0100. Relatora: Ana Lucia Romanhole Martucci. 33ª Câmara de Direito Privado, Foro Central Cível - 42ª Vara Cível, julgado em 16 jun. 2025, registrado em 17 jun. 2025. 5 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. 21. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. E-book. p. 721. ISBN 978-65-5964-815-3. Disponível aqui. Acesso em: 6 ago. 2025. 6 RODRIGUES, Paulo Sérgio Romero Vicente. Contrato de corretagem imobiliária. 2023, p. 144. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 06 ago. 2025.
No último dia 13 de outubro de 2025, a 21ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal concedeu liminar em ação movida pelo ONR - Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, suspendendo os efeitos da resolução COFECI 1.551/25 ("resolução"). Editada em agosto deste ano pelo COFECI - Conselho Federal de Corretores de Imóveis, a norma busca instituir o Sistema de Transações Imobiliárias Digitais, disciplinando o credenciamento e o funcionamento das PITDs - Plataformas Imobiliárias para Transações Digitais e dos ACGIs - Agentes de Custódia e Garantia Imobiliária, bem como regulamentar as chamadas Transações Imobiliárias Digitais. Nos termos da decisão, a resolução extrapolou a competência normativa do COFECI, a qual está restrita à disciplina técnica e ética do exercício profissional dos corretores de imóveis, conforme o art. 5º da lei 6.530/1978. O Juízo ressaltou, de forma sucinta, mas esclarecedora, a distinção entre agências reguladoras e conselhos profissionais: embora ambos sejam autarquias, possuem finalidades substancialmente distintas. Enquanto as primeiras regulam setores da economia por meio da emissão de normas técnicas, fiscalização e aplicação de sanções em serviços públicos delegados, os conselhos profissionais regulam e fiscalizam o exercício de uma profissão, sem competência para inovar no ordenamento jurídico. Sob essa ótica, ao criar figuras como o "Token Imobiliário Digital" e ao dispor sobre custódia, transmissão e representação de direitos reais por meio digital, o COFECI teria adentrado matéria de competência privativa da União, relacionada ao Direito Civil e aos Registros Públicos, bem como à esfera de regulação do CNJ, responsável pela supervisão do SREI - Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, operado pelo ONR. Nesse mesmo sentido, a nota técnica 1/25 do IRIB - Instituto de Registro Imobiliário do Brasil destacou que a criação de um sistema autônomo de registro de "tokens imobiliários", nos moldes propostos pela resolução, extrapolaria as competências regulamentares do COFECI, ao adentrar matérias reservadas à União e ao CNJ. O documento também observou que a interoperabilidade, a autenticidade e a publicidade dos atos imobiliários devem permanecer vinculadas ao SREI, que constitui o ambiente institucionalmente reconhecido para o tratamento eletrônico de dados e para a produção dos efeitos jurídicos próprios dos registros imobiliários. O SREI foi instituído pela lei 13.465/17 com o objetivo de digitalizar e integrar nacionalmente os registros imobiliários, sob a supervisão da CNJ, que exerce a função de agente regulador. O ONR, entidade sem fins lucrativos, atua como operador técnico do sistema, responsável por sua padronização, interoperabilidade e segurança. Esse marco legal e institucional já define um locus próprio para a regulamentação de transações imobiliárias digitais, de forma coordenada e sob o controle do Poder Judiciário, especialmente porque o registro de imóveis, embora delegado à iniciativa privada, é um serviço público, cuja regulação e supervisão pertencem ao CNJ, conforme o art. 236 da Constituição Federal. A resolução COFECI 1.551/25, entretanto, pretendeu criar figuras jurídicas e institucionais que, na prática, configurariam um sistema paralelo de registro e negociação de direitos imobiliários, dissociado do SREI. Entre essas figuras, destacam-se: (i) o Token Imobiliário Digital, definido como representação digital de direitos reais sobre imóveis, passível de negociação em ambiente eletrônico; (ii) as PITDs - Plataformas Imobiliárias para Transações Digitais, concebidas como infraestruturas de negociação e registro de tais tokens; e (iii) os ACGIs - Agentes de Custódia e Garantia Imobiliária, entidades privadas incumbidas de custodiar os tokens, gerir garantias e intermediar a execução de obrigações decorrentes das transações. Embora inspiradas em experiências internacionais e em boas práticas de mercado, tais figuras não encontram respaldo no ordenamento jurídico brasileiro. O CC não admite a representação de direitos reais sobre imóveis por meio de documentos ou ativos digitais autônomos: sua constituição, transmissão e publicidade dependem, necessariamente, da inscrição no registro de imóveis, conforme os arts. 1.245 e 1.246 do CC e a lei 6.015/1973. Ao propor formas alternativas de representação e transferência de propriedade imobiliária, ainda que em ambiente eletrônico, o COFECI teria, segundo o Juízo, usurpado competências privativas da União, para legislar sobre Direito Civil e Registros Públicos (art. 22, I e XXV, da Constituição), e do CNJ, responsável pela regulação e supervisão do SREI. Além disso, ao prever regimes de custódia, garantias fiduciárias digitais e patrimônio de afetação desvinculado da titularidade real, a resolução acabou por instituir categorias jurídicas inéditas, sem amparo legal, o que gera insegurança quanto à validade dos atos e contratos celebrados sob tais regras. Em síntese, a resolução extrapolou os limites de um ato infralegal disciplinar, próprio de um conselho profissional, e adentrou o campo da regulação de direitos patrimoniais e registrários, matéria reservada à lei formal e à atuação dos órgãos competentes do Poder Público. A decisão liminar também determinou a vedação de divulgação da resolução como se vigente estivesse, impondo multa diária em caso de descumprimento dessa obrigação. Embora pouco usual, a medida revela a preocupação do Juízo com a disseminação de informações inverídicas, capazes de gerar insegurança jurídica nas operações imobiliárias digitais. A proposta do COFECI, há que se reconhecer, é tecnicamente estruturada e responde a uma demanda legítima de mercado. Contudo, como destacou o Juízo, há vícios de competência formal e material, uma vez que o Conselho não detém atribuição para criar regimes jurídicos próprios ou inovar em matéria de registro público e direitos reais. Mais do que um embate institucional, o caso reafirma a necessidade de coordenação entre os entes públicos e privados que compõem a governança do ambiente digital imobiliário. A tokenização de ativos imobiliários é um avanço inevitável e positivo, mas sua consolidação depende de harmonia normativa entre os agentes do sistema jurídico, especialmente o CNJ, o ONR, a CVM e o Banco Central do Brasil, este último responsável pela supervisão das prestadoras de serviços de ativos virtuais, nos termos da lei 14.478/22 (Marco Legal dos Criptoativos) e do decreto 11.563/23. A liminar não representa um retrocesso na inovação, mas sim um chamado à institucionalidade. O futuro da digitalização imobiliária depende da construção de marcos regulatórios consistentes, que assegurem segurança jurídica, integridade registral e interoperabilidade tecnológica, permitindo que a inovação avance sobre fundamentos sólidos e legitimamente instituídos.
Há cerca de dez anos, o STJ enfrentou a controvérsia sobre quem teria legitimidade - proprietário ou adquirente - para responder por dívidas condominiais na hipótese de alienação da unidade, notadamente quando se tratar de compromisso de compra e venda não levado a registro. O tema é socialmente sensível, já que, no Brasil, grande parte das transações imobiliárias ocorre à margem do registro imobiliário. Não à toa, o instrumento de compromisso de compra e venda foi objeto de intensos estudos doutrinários - destaque para José Osório de Azevedo Jr.1 - que ressaltaram sua natureza jurídica e efeitos, afastando a ideia de ser um simples contrato preliminar, dada sua relevância prática na dinâmica imobiliária nacional. Com o julgamento do Tema 8862, o STJ buscou pacificar a questão e fixou duas premissas centrais: a posse e o conhecimento do condomínio. O Tribunal afastou a questão registraria da centralidade da questão ("O que define a responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais não é o registro do compromisso de venda e compra...") e deslocou o foco para a fruição da coisa ao reconhecer que a responsabilidade decorre da "relação jurídica material com o imóvel, representada pela imissão na posse pelo promissário comprador e pela ciência inequívoca do condomínio acerca da transação". Assim, sem negar a responsabilidade originária do proprietário/vendedor, o STJ deixou claro que ela pode ser superada por dois elementos concretos e verificáveis: (i) a imissão do promissário comprador na posse e; (ii) a ciência inequívoca da transação pelo condomínio/credor. As despesas condominiais têm origem no rateio destinado à fruição e conservação das áreas comuns que integram o condomínio edilício. Por sua própria natureza, constituem encargos de uso e manutenção do empreendimento como um todo, beneficiando diretamente o possuidor do imóvel. Tanto é que, nos termos do art. 1.334 do CC e do art. 12 da lei 4.591/19643, se enquadra na categoria de "condômino", o proprietário, o promitente comprador e o cessionário de direito à aquisição, não havendo clara distinção quanto à obrigação de cada um deles no que tange às despesas condominiais. Assim, o responsável pelas despesas condominiais é sempre o condômino, que pode ou não ser o proprietário do imóvel. Esse raciocínio encontra paralelo na disciplina da alienação fiduciária, em que a lei 9.514/1997 é expressa ao atribuir ao devedor fiduciante, enquanto detentor da posse direta do imóvel, a obrigação pelo pagamento das dívidas e despesas condominiais. A questão estaria, em tese, solucionada se não fosse outro aspecto relevante, aparentemente conflitante com a solução dada: a natureza propter rem das despesas condominiais. As obrigações propter rem4 decorrem de um vínculo de direito real entre o sujeito e o imóvel, de modo que, uma vez constituído esse vínculo, a obrigação se transmite automaticamente ao seu titular. Trata-se de uma obrigação que adere ao bem e o acompanha, de titular a titular, independentemente de quem tenha dado causa ao inadimplemento. Assim, é inegável que a titularidade do imóvel confere ao promitente vendedor determinados direitos e obrigações patrimoniais, ainda que esvaziados, os quais podem ser eventualmente afetados pela execução condominial. Foi justamente esse o ponto enfrentado pelo saudoso ministro Paulo de Tarso Sanseverino ao analisar o Tema 886, no REsp 1.442.840/PR (DJe de 21/8/15). Na ocasião, discutia-se a possibilidade de penhora do imóvel, mesmo que isso implicasse direitos patrimoniais de terceiro - o promitente vendedor - que não figurava como parte na execução. Isto porque, ao se aplicar literalmente o Tema 886 haveria uma aparente dificuldade: não sendo o promitente vendedor parte na execução, a princípio não seria possível levar o imóvel à penhora, mas apenas os direitos aquisitivos do comprador. Com isso, a execução seria, se não totalmente frustrada, ao menos sensivelmente limitada - resultado que revela evidente contradição com a natureza jurídica das obrigações propter rem. Ao entender por tal dificuldade, o ministro Sanseverino recorreu à teoria da dualidade obrigacional, desenvolvida na Alemanha, segundo a qual há uma cisão da obrigação em "débito" (Schuld) - entendido como o dever de prestar - e "responsabilidade" (Haftung) - a sujeição patrimonial do indivíduo à satisfação da dívida. Ao aplicar a teoria às despesas condominiais, o Ministro Sanseverino concluiu que o débito deve ser atribuído àquele que efetivamente se beneficia dos serviços prestados pelo condomínio, isto é, o possuidor direto (promitente comprador). No entanto, concluiu o ministro que o promitente vendedor não se desvincula da obrigação, mantendo-se na condição de responsável pelo pagamento da dívida, enquanto mantiver a situação jurídica de proprietário do imóvel, respondendo, inclusive, com todo o seu patrimônio, visto que, segundo ele, a obrigação propter rem não se confundiria com os direitos reais de garantia. Diante da evidente controvérsia causada pelo acordão citado e o Tema 886, que têm gerado decisões divergentes no próprio STJ, recentemente a ministra Isabel Galloti propôs a revisão do Tema 8865, com o objetivo de promover a pacificação da matéria. Nesse contexto, e apesar da controvérsia existente, nos parece que tanto o Tema 886 quanto a teoria da dualidade das obrigações, aliada à natureza propter rem das despesas condominiais, possibilitam uma interpretação integrada e coerente capaz de solucionar adequadamente a questão. É no cotejo desses princípios que reside a adequada atribuição das responsabilidades, através da qual é possível assegurar a eficácia da execução condominial, a correta atribuição do dever de prestar a obrigação e a responsabilidade de todos os sujeitos de direito. Dessa forma, cabe ressaltar dois pontos principais: (i) o "débito" (Schuld) - a identificação do sujeito passivo da obrigação condominial decorre da relação jurídica material estabelecida com o imóvel, representada pela imissão na posse com animus dominus. Esse indivíduo é quem assume a obrigação pessoal de quitar a dívida, por ser o efetivo beneficiário dos serviços e despesas relacionados à fruição e conservação do condomínio e; (ii) a responsabilidade (Haftung) - que consiste na sujeição patrimonial de terceiros à satisfação da dívida. Em virtude do caráter propter rem das despesas condominiais, essa responsabilidade se estende a todos aqueles que detenham direitos reais subjetivos sobre o bem, ainda que de maneira diversa quanto à extensão e aos efeitos. Independentemente de o instrumento jurídico de transferência estar ou não registrado, a obrigação do proprietário tabular não desaparece. Nessa circunstância, o proprietário registral exerce função análoga à de um terceiro garantidor com ônus real: responde pela dívida condominial apenas até o limite do patrimônio a ela vinculado, e não com a integralidade de seus bens. É fato que o caráter propter rem não elimina a figura do sujeito passivo incumbido do dever de prestar; ao contrário, ele amplia a eficácia da obrigação ao atingir a esfera jurídica de qualquer pessoa que detenha vínculo real sobre o imóvel. Com isso, a intenção do legislador foi assegurar que não haja barreiras à sujeição patrimonial do bem ao cumprimento da obrigação condominial. Conforme destacado pela ministra Isabel Galloti, embora o proprietário não tenha se beneficiado dos serviços prestados pelo condomínio, ele garante o pagamento da dívida com o próprio imóvel, justamente por ser titular do direito real sobre o bem. A única distinção feita pelo Tema 886 no tocante ao registro, e que encontra justificativa, reside em sua função de publicidade. O registro do compromisso de compra e venda, bem como de eventuais cessões, confere a terceiros a publicidade necessária para delimitar a responsabilidade dos diferentes envolvidos em relação ao imóvel. Contudo, observa-se que, na prática brasileira, a maior parte desses instrumentos não é registrada, predominando, assim, a informalidade. Na ausência do registro, o conhecimento do condomínio sobre a existência de negócio jurídico e a imissão na posse do adquirente não se presume e depende de prova, como pontuou o STJ. Entretanto, no contexto da vida condominial, marcada pelo controle de acesso às áreas comuns, é bastante improvável que alguém assuma a posse de uma unidade edilícia sem que o corpo diretivo do condomínio tenha prévia ciência da situação. Assim como a informalidade predomina em relação ao registro, é igualmente comum que o condomínio tenha pleno conhecimento sobre quem ocupa cada unidade. Isso se comprova pela prática diária de emissão de boletos diretamente em nome dos ocupantes, e não dos proprietários tabulares. Ao reconhecer esta dinâmica e atribuir eficácia jurídica a situações recorrentes da vida condominial, o STJ buscou harmonizar as relações sociais e assegurar efetividade às cobranças condominiais. Isto porque, com a transferência da posse, é inegável que o promitente vendedor conserva para si uma propriedade formal, desprovida de poderes substanciais sobre o imóvel.6 Ao passo que o promissário comprador, ao contrário, passa a exercer plenamente os poderes de usar e gozar do bem e, em certa medida, até mesmo dele dispor, ainda que de forma limitada. Na prática, o domínio é reservado pelo promitente vendedor como uma espécie de garantia pelo pagamento do saldo devedor (quando há) ou em decorrência da inação do adquirente no registro da transferência, muitas vezes motivada pelos custos tributários envolvidos. Ademais, uma vez quitado o compromisso, não subsiste em favor do proprietário qualquer direito material sobre o imóvel, mas apenas a obrigação de outorgar a escritura definitiva. Portanto, de forma objetiva, o sujeito com legitimidade para figurar no polo passivo de execução condominial é aquele que, ao tempo do ajuizamento da ação detém a posse do imóvel com intenção de proprietário (animus dominus). Nesses casos, o promitente vendedor não seria sequer parte da execução condominial, devendo, no entanto, ser obrigatoriamente intimado em caso de penhora sobre o imóvel, conforme estabelece o art. 799, IV do CPC, sob pena de ineficácia (art. 804, § 3º), bem como seja intimado previamente sobre a realização do leilão (art. 889, VII)7. Ao ser devidamente cientificado e intimado acerca da execução, o promitente vendedor poderá optar por quitar o débito condominial, sub-rogando-se no crédito, ou acompanhar a eventual submissão do imóvel à execução para satisfação da dívida, adotando as medidas judiciais necessárias para o recebimento de eventual excedente, caso haja. É isso que, de fato, deveria ocorrer. Após serem esgotadas todas as possibilidades de satisfação do débito por meio do patrimônio pessoal do promissário comprador devedor, respeitando-se a ordem de preferência prevista no art. 835 do CPC, caberá, então, a penhora do próprio imóvel. Neste aspecto, o próprio STJ já firmou entendimento de que, nas dívidas condominiais, o próprio imóvel que gerou as despesas serve como garantia do pagamento da dívida, sendo possível a penhora do bem independentemente de quem figure como sujeito passivo da obrigação, possibilitando inclusive a constrição do imóvel mesmo que o proprietário não tenha participado da fase de conhecimento do processo.8 Como nota relevante, vale destacar que o projeto de reforma do CC atualmente em tramitação no Congresso Nacional (PL 4 de 2025) incorporou integralmente a diretriz estabelecida pelo Tema 8869. Todavia, parece ter deixado de esclarecer o papel do promitente vendedor na execução condominial. Seria oportuno que o texto legal explicitasse que o promitente vendedor responde pela dívida condominial, mas apenas nos limites dos direitos reais sobre o imóvel, e não com todo o seu patrimônio, conforme exposto anteriormente. Nesse contexto, a revisão do Tema 886 representa uma oportunidade relevante para consolidar o entendimento de que a obrigação pelo pagamento do débito condominial recai sobre o comprador que detém a posse do imóvel, enquanto ao promitente vendedor cabe uma responsabilidade concorrente, porém restrita. Essa responsabilidade do promitente vendedor não abrange todo o seu patrimônio, limitando-se aos direitos reais que possui sobre o imóvel, os quais podem ser objeto de penhora e expropriação para garantir a satisfação do crédito condominial. Dessa forma, busca-se um equilíbrio entre a efetividade da cobrança condominial e a proteção dos direitos de cada parte, promovendo Justiça e segurança jurídica no âmbito dos condomínios edilícios. _________ 1 Compromisso de Compra e Venda. Ed. Malheiros. 2 Recurso Especial nº 1.345.331/RS, de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão. 3 Art. 1.334. Além das cláusulas referidas no art. 1.332 e das que os interessados houverem por bem estipular, a convenção determinará: I - a quota proporcional e o modo de pagamento das contribuições dos condôminos para atender às despesas ordinárias e extraordinárias do condomínio; ................ § 2º. São equiparados aos proprietários, para os fins deste artigo, salvo disposição em contrário, os promitentes compradores e os cessionários de direitos relativos às unidades autônomas. 4 Art. 1.345. O adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios. 5 Recurso Especial nº 2015740 - SP (2022/0227934-3) 6 José Osório, pg. 18. 7 Neste sentido, a Lei nº 11.977/2009 que criou o Programa Minha Casa, Minha Vida, estabelece em seu art. 72 a obrigatoriedade da notificação ao titular do domínio, pleno ou útil (inclusive o promitente vendedor ou fiduciário), das execuções de cotas de condomínio, de imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana ou de outras obrigações vinculadas ou decorrentes da posse do imóvel urbano, nas quais o responsável pelo pagamento seja o possuidor investido nos respectivos direitos aquisitivos, assim como o usufrutuário ou outros titulares de direito real de uso, posse ou fruição. Com isso, a lei reforça o entendimento de que os titulares do domínio sobre o imóvel não são os responsáveis pelo pagamento dos encargos condominiais, mas devem ter ciência da sua execução, como forma de preservar seus direitos sobre o imóvel. 8 AgInt no REsp n. 2.006.920/PR, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe de 29/3/2023. No mesmo sentido: "A jurisprudência do STJ é no sentido de que a obrigação condominial estávinculada à própria coisa, de modo que o próprio imóvel gerador das despesas constitui garantia de pagamento da dívida. Desse modo, nada impede que se penhore o imóvel do proprietário atual na fase de cumprimento de sentença, mesmo não tendo participado do feito na fase de conhecimento" (AgInt no Aresp n. 2.142.462/SP, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 24/4/2023, DJe de 27/4/2023). 9 "Art. 1.345. O adquirente de unidade responde pelos débitos do alienante, em relação ao condomínio, inclusive multas e juros moratórios, observado o disposto no art. 502 deste Código, em caso de alienação onerosa. § 1° Consideram-se adquirentes, para os fins de aplicação deste artigo, o devedor fiduciante e o arrendatário, nos casos de alienação fiduciária de bens imóveis e de arrendamento mercantil. § 2° O comprador, promitente comprador ou cessionário, portadores de títulos que não estejam registrados no Registro de Imóveis, serão os únicos responsáveis pelo pagamento das cotas condominiais, se ficar comprovado que se imitiram na posse do bem ou que o condomínio teve ciência inequívoca dos negócios jurídicos celebrados, como, por exemplo, pela comunicação a que alude o inciso VIII do art. 1.336, deste Código."
Desde sua promulgação em 2018, diversos artigos publicados nesta coluna já abordaram a lei 13.786/18 - conhecida como Lei dos Distratos - que introduziu importantes alterações nas Leis de Incorporação Imobiliária (lei 4.591/64) e de Parcelamento do Solo Urbano (lei 6.766/79). Entre suas principais inovações, destaca-se o reforço à irretratabilidade dos contratos de aquisição de imóveis, bem como a definição objetiva das consequências jurídicas em caso de resolução contratual por inadimplemento, seja por parte do incorporador/loteador ou do adquirente. Em fevereiro de 2021, em artigo publicado em coautoria com o Prof. Melhim Chalhub1, destacamos que a lei 13.786/18 conferiu nova sistematização aos efeitos da resolução dos contratos de compra e venda de imóveis. No âmbito da incorporação imobiliária, o diploma legal passou a estabelecer parâmetros objetivos para a cláusula penal aplicável em caso de inadimplemento, limitando sua incidência a até 25% dos valores pagos - ou até 50% nas hipóteses de patrimônio de afetação - e autorizando, ainda, que a devolução das quantias ao adquirente seja realizada de forma parcelada e diferida no tempo. Naquela ocasião, também ressaltamos que a súmula 543 do Superior Tribunal de Justiça, editada em 2015, restou superada com o advento da nova legislação de 2018, por refletir orientação divergente daquela consolidada no precedente jurisprudencial. É verdade que logo após a edição da Lei, parte da doutrina2 questionou os valores e percentuais estabelecidos para a hipótese de resolução do contrato por culpa do adquirente, notadamente o percentual admitido para a multa contratual de até 50% dos valores pagos (art. 67-A, § 5º). Segundo tais autores, o percentual seria elevado e injusto. Não se pretende, neste artigo, discutir se a opção legislativa brasileira ao estabelecer os parâmetros da multa foi, em essência, justa ou não. O que se pode afirmar, contudo, é que - ao contrário do que se costuma imaginar - na maioria dos casos de resolução contratual por iniciativa do adquirente, o montante já pago pelo comprador corresponde a menos de 30% do valor total do contrato. Assim, a multa aplicada, geralmente situada entre 5% e 10% do valor contratual, não representa, em termos práticos, uma penalidade excessiva. Justa ou não, o fato é que a Lei nº 13.786/2018 encontra-se em pleno vigor e produz seus regulares efeitos jurídicos. Pois bem. Não obstante tenha tramitado regularmente pelo Congresso Nacional e obtido sanção presidencial pelo então Presidente Michel Temer, parte do Poder Judiciário mostrou-se, desde sempre, relutante na aplicação da lei 13.786/18. Nesse sentido, é fácil verificar inúmeros julgados, dos mais diversos Tribunais Estaduais, que simplesmente afastavam a incidência da cláusula penal admitida pela Lei, reduzindo-a sobremaneira e poucas vezes de forma fundamentada3. Em caso apreciado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a multa de 50% dos valores pagos por adquirente de imóvel na planta foi reduzida de 50% para 20% porque "[...] a aplicação, ao caso, da lei nova importaria em evidente insegurança jurídica ao jurisdicionado, vez que, como dito, a jurisprudência se consolidou no sentido de permitir retenção de, no máximo, 25% dos valores pagos, com restituição em parcela única"4. Em outro acórdão publicado pelo mesmo Tribunal de Justiça de São Paulo, o Des. Ferreira da Cruz afirmou que "a multa/retenção de 50% sempre foi - e continuará sendo - abusiva"5. Como se pode notar, desembargador do TJSP, em voto proferido em recurso de apelação, classificou a Lei Federal como "abusiva" e, portanto, negou a sua aplicação ao caso concreto. Longos sete anos depois da edição da lei 13.786/18, o leitor pode estar se perguntando qual foi o posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, cuja atribuição também é uniformizar a jurisprudência dos tribunais, consoante determinado no artigo 105, III, 'd', da Constituição Federal. Acompanhando a evolução jurisprudencial do STJ sobre o tema, constata-se a ausência de uniformidade na aplicação da Lei nº 13.786/2018. Embora a 4ª Turma tenha reconhecido, em alguns precedentes, a validade da cláusula penal que prevê a retenção de até 50% dos valores pagos pelo adquirente em contratos submetidos ao regime de patrimônio de afetação6, decisão recente da 3ª Turma - proferida em setembro de 2025, no julgamento do REsp nº 2106548/SP - reacendeu o debate sobre a compatibilização entre normas especiais e princípios gerais no âmbito das relações contratuais imobiliárias. O caso analisado dizia respeito à resolução de contrato de compra e venda de imóvel localizado em empreendimento submetido à lei 6.766/79. O recorrente havia adquirido três lotes, mas pleiteou a rescisão contratual sob a alegação de insuportabilidade no pagamento das prestações. Embora não tenha ficado claro se a aquisição se deu com finalidade residencial - caracterizando o recorrente como destinatário final - ou se se tratava de uma operação de cunho especulativo, voltada ao investimento imobiliário, o julgamento reconheceu, de forma expressa, a natureza consumerista da relação, submetendo-a à incidência do Código de Defesa do Consumidor. Ainda que o recorrente reconheça que a culpa para a resolução do contrato não pudesse ser atribuída à empresa loteadora, pretendia receber 90% (noventa por cento) dos valores pagos, discordando dos descontos legais determinados na hipótese de resolução culposa por fato atribuível ao adquirente, nos termos do artigo 32-A, da lei 6.766/79 (dispositivo alterado pela lei 13.786/18). Ao apreciar o feito, a Min. Nancy Andrighi defendeu suposto "conflito aparente de normas" entre o CDC e a Lei 13.786/2018. Isso porque, segundo o voto, "a lei 13.786/2018 se limitou a alterar apenas as leis 4.591/64 e 6.766/79, que tratam da incorporação imobiliária e parcelamento do solo urbano, sem qualquer alteração ou revogação de artigos do CDC, o qual deve prevalecer em eventual conflito". Conforme o voto da Ministra, o Código de Defesa do Consumidor - especialmente com base nos artigos 51, inciso IV, e 53 - não admitiria que o consumidor suportasse a perda de valor superior a 25% das quantias pagas. Nesse contexto, os percentuais de retenção previstos na lei 13.786/18 não se aplicariam às relações de consumo, mas apenas como "regra geral". Contrariamente, entendemos que não há qualquer conflito normativo. A lei 4.591/64 e a lei 6.766/79 tratam, respectivamente, da incorporação imobiliária e do parcelamento do solo urbano, disciplinando aspectos estruturais e negociais desses empreendimentos. Quando o adquirente atua na condição de destinatário final, a relação jurídica estabelecida com o incorporador ou loteador atrai, naturalmente, a incidência do Código de Defesa do Consumidor, sem que isso implique sobreposição ou incompatibilidade entre os diplomas legais. Trata-se, portanto, de uma convivência normativa harmônica, em que o CDC atua como vetor interpretativo complementar, especialmente na proteção da parte vulnerável da relação contratual. Cumpre observar que o CDC não dispõe de regra específica quanto aos percentuais de devolução de valores em hipóteses de resolução contratual nos contratos regidos pelas leis 4.591/64 e nº 6.766/79. Trata-se de uma lacuna normativa compreensível, dado o caráter geral do Código, voltado à regulação das relações de consumo em múltiplos setores, e não à disciplina específica da aquisição de lotes ou unidades autônomas em empreendimentos imobiliários. O artigo 53 do CDC não é um dispositivo específico para tratar do desfazimento contratual em caso de culpa do adquirente de lotes urbanos ou unidades autônomas na planta. Mas as críticas ao voto da Min. Nancy não se limitam ao (inexistente) alegado conflito de normas. O mesmo voto também afastou o diferimento da restituição em favor do adquirente. Explica-se. A lei 13.786/2018, ao reconhecer que a resolução contratual durante a execução das obras pode comprometer a viabilidade econômica do empreendimento e prejudicar os demais adquirentes, estabeleceu que a restituição dos valores pagos pelo comprador não deve ocorrer de forma imediata. Assim, por exemplo, nos contratos de loteamento com obras em andamento, a devolução dos valores pode ser diferida para até 180 dias após o prazo contratualmente previsto para a conclusão das obras (art. 32-A, § 1º, I, da lei 6.766/79). Já nos casos de incorporação imobiliária submetida ao regime de patrimônio de afetação, o prazo para restituição é de até 30 dias após a expedição do habite-se (art. 67, § 5º, da lei 4.591/64). São medidas que visam preservar o equilíbrio econômico-financeiro do empreendimento e garantir a continuidade das obras, sem descurar da proteção ao consumidor e dos demais adquirentes das unidades do empreendimento. Ocorre que no voto proferido no REsp nº 2106548/SP, a ilustre Ministra Nancy Andrighi afastou a aplicação da lei 13.786/18 quanto ao diferimento da restituição dos valores pagos, fundamentando sua posição no Tema Repetitivo nº 577 do STJ. Segundo esse entendimento, é abusiva a cláusula contratual que condiciona a devolução das quantias ao término da obra ou que prevê sua realização de forma parcelada, independentemente de quem deu causa à resolução do contrato. Contudo, é importante destacar que o precedente que originou o Tema 577 data de 2013, ou seja, é anterior à vigência da Lei dos Distratos. O mesmo voto também fundamentou a necessidade de devolução imediata dos valores com fundamento na então finada súmula 543 do STJ, datada de 2015. Como se observa, o voto da Ministra Nancy Andrighi acabou por afastar os efeitos da lei Federal 13.786/2018, reconduzindo a solução do caso à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça anterior à vigência da norma. Tal postura, respeitosamente, nega eficácia à legislação vigente, o que contraria uma das funções constitucionais atribuídas ao STJ (art. 105, inciso III, alínea "a", da Constituição Federal). A prevalência de entendimento jurisprudencial superado por lei federal, suscita preocupações quanto à segurança jurídica e à coerência sistêmica da jurisprudência da Corte. É importante destacar que o voto proferido pela relatora do recurso não foi acompanhado de forma unânime pelos demais ministros da 3ª Turma. O Min. Ricardo Villas Bôas Cueva inaugurou divergência, defendendo que  Com a edição da lei 13.786/2018, procurou-se conferir maior segurança jurídica tanto aos consumidores quanto às empresas que atuam no mercado imobiliário, por meio da fixação de critérios objetivos a serem observados para a restituição de valores, na hipótese de resolução de contrato de compra e venda de imóvel por fato imputado ao adquirente de unidade imobiliária em incorporação imobiliária e em parcelamento de solo urbano. Para atingir esse objetivo, foram elencadas todas as verbas passíveis de retenção pelo promitente vendedor, tendo como parâmetro os custos e os eventuais prejuízos por ele suportados. A proposição legislativa também visou reduzir o número de demandas levadas ao Poder Judiciário, visto que, à míngua de critérios legalmente fixados, o montante passível de restituição/retenção acabava ficando ao arbítrio do julgador.  Em seu voto, o Min. Cueva ainda afirmou que a cláusula que previa a retenção dos valores estava fundada em expressa previsão legal e, portanto, não poderia ser considerada abusiva, já que respeitado o limite legalmente imposto. Não se nega que, em situações excepcionais, a cláusula penal fixada no contrato em consonância com a lei 13.786/18 pode ser considerada elevada (e não abusiva). Em tais situações, o juiz poderá reduzir o seu montante, desde que previstos os requisitos do artigo 413, do Código Civil, ou seja, quando o valor for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio. Ademais, o próprio STJ, em situações específicas, já autorizou tal redução7. Ao analisar a natureza jurídica e a finalidade dos contratos imobiliários submetidos à incorporação imobiliária e ao loteamento, o Min. Cueva destacou em seu voto que [...] nas resoluções de contratos disciplinados pela Lei nº 6.766/1979, a redução equitativa da cláusula penal somente poderá ser admitida em hipóteses excepcionalíssimas, desde que atendidos os pressupostos do art. 413 do Código Civil, com a necessária fundamentação, devendo ser observado, ainda, o dever de reparação integral dos prejuízos suportados pelas empresas do setor imobiliário.  Ora. A crítica apontada neste artigo é que a redução da cláusula penal no REsp nº 2106548/SP não foi realizada com base no artigo 413 do Código Civil, mas orientada nos fundamentos anteriormente criticados. Além da divergência inaugurada pelo voto do Min. Ricardo Cueva, o Min. Moura Ribeiro também apresentou voto vencido, defendendo a possibilidade de retenções superiores ao limite de 25% dos valores pagos pelo adquirente. O eminente Ministro, contudo, fez uma ressalva importante: ponderou que tais descontos não deveriam incidir sobre o inciso II do dispositivo legal, uma vez que "o limite de 10% sobre o valor do contrato, previsto na lei, pode ultrapassar a integralidade dos valores pagos, deixando o comprador sem qualquer restituição". Não obstante os votos divergentes apresentados, a Terceira Turma, por maioria, lamentavelmente deu parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Relatora Nancy Andrighi. Os Srs. Ministros Humberto Martins (Presidente) e Daniela Teixeira votaram com a Sra. Ministra Relatora.  Conclusão  A decisão proferida pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp nº 2106548/SP revela uma preocupante tendência de resistência de parte do Poder Judiciário à aplicação da lei 13.786/2018, mesmo após sete anos de sua vigência. Ao invocar precedentes e súmulas anteriores à promulgação da norma - e ao interpretar o Código de Defesa do Consumidor como impeditivo à incidência da Lei dos Distratos - o voto vencedor da Ministra Relatora Nancy Andrighi parece desconsiderar o esforço legislativo voltado à construção de um marco regulatório específico para os contratos imobiliários, com critérios objetivos e previsíveis para a resolução contratual, de modo a fortalecer a relação entre empresas e adquirentes de bens imóveis. Essa postura, ainda que respeitável, compromete a segurança jurídica e a coerência sistêmica da jurisprudência do STJ, cuja função constitucional é justamente a de uniformizar a interpretação da legislação federal, bem como afastar decisões que neguem vigência à Lei Federal. A prevalência de entendimentos superados, em detrimento de norma vigente e específica, não apenas fragiliza a confiança dos agentes econômicos no ordenamento jurídico, como também perpetua a judicialização de conflitos que a própria Lei nº 13.786/2018 buscou mitigar. É legítimo que haja divergência jurisprudencial e controle de abusos pontuais, mas não se pode admitir que a aplicação da lei seja afastada por objeções subjetivas ao seu conteúdo normativo. A crítica à "espinha dorsal" da Lei dos Distratos - como se percebe em votos que a classificam como abusiva - revela, mais do que uma interpretação jurídica, uma resistência ideológica à opção legislativa democraticamente construída. Cabe ao STJ, portanto, reafirmar seu papel institucional e garantir a plena eficácia da legislação federal, em respeito à legalidade, à segurança jurídica e à estabilidade das relações contratuais no setor imobiliário. __________ 1 CHALHUB, Melhim Namem; GOMIDE, Alexandre Junqueira. Resolução de promessas de venda no contexto da incorporação imobiliária - Evolução legislativa e precedentes. Migalhas, 03 fev. 2021. Disponível aqui. Acesso em 1º out. 2025. 2 Em artigo acadêmico, Cláudia Mara de Almeida Rabelo Viegas e Rodolfo Pamplona Filho questionam a compatibilidade dos percentuais com princípios do CDC, especialmente em relação à função social do contrato e à equidade. Vide mais em PAMPLONA FILHO, Rodofo; VIEGAS, Cláudia Mara de Almeida Rabelo. Distrato imobiliário: natureza jurídica da multa prevista na lei 13.786/2018. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 108. n. 1008, p. 195-217, out. 2019. 3 Nesse sentido: TJMG, 20ª Câmara Cível. AC: 50606476120238130702, Rel. Des. Christian Gomes Lima julgado em 21 ago. 2025, Dje 22 ago. 2025; TJSP, 15ª Câmara de Direito Privado. AC: 1152841-51.2023.8.26.0100, Rel. Des. Rodolfo Pellizari, julgado em 10 dez. 2024, Dje10 dez. 2024; TJDF, 6ª Turma Cível. AC 0706067-28.2024.8.07.0001 1943010, Rel. Des. Leonardo Roscoe Bessa, julgado em 14 nov. 2024, Dje 25 nov. 2024; TJPR, 1ª Turma Recursal. RI 0074146-46.2023.8.16.0014, Rel. Mag. Vanessa Bassani, julgado em 21 set. 2024, Dje 22 nov. 2024; TJRJ, 14ª Câmara de Direito Privado. AC: 0027465-54.2020.8.19.0203, Rel. Des. Daniela Brandão Ferreira, julgado em 27 fev. 2024, Dje 28 fev. 2024 e TJRS, 17ª Câmara Cível. AC 008174-70.2022.8.21.0101, Rel. Des. Rosana Broglio Garbin, julgado em 21 fev. 2024, Dje 28 fev. 2024. 4 TJSP, 6ª Câmara de Direito Privado. AC: 1012109-86.2019.8.26.0576, Rel. Des. Rodolfo Pellizari, julgado em 22 nov. 2021, Dje 22 nov. 2021). 5 TJSP, 28ª Câmara de Direito Privado. AC 1076379-90.2022.8.26.0002, Rel. Des. Ferreira da Cruz, julgado em 05 fev. 2024). 6 Nesse sentido: AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEU PROVIMENTO AO RECLAMO DA PARTE CONTRÁRIA. INSURGÊNCIA RECURSAL DO REQUERENTE. 1."Em contratos oriundos de incorporação submetida ao regime de patrimônio de afetação, a retenção dos valores pagos pelo comprador desistente pode chegar a até 50%, segundo o art . 67-A, I, e § 5º, da Lei 13.786/2018." (AgInt no REsp n. 2.110.077/SP, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 29/4/2024, DJe de 2/5/2024.). 2 . Agravo interno desprovido." (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T4 - Quarta Turma. AgInt nos EDcl no REsp 2.145.090/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 07 out. 2024, DJe 10 out. 2024); "AGRAVO INTERNO. RECURSO ESPECIAL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO. DESISTÊNCIA DO COMPRADOR. CONTRATO CELEBRADO APÓS A VIGÊNCIA DA LEI N.º 13.786/18. RETENÇÃO DE ATÉ 50% DOS VALORES PAGOS. PREVISÃO CONTRATUAL EXPRESSA. ABUSO NÃO CARACTERIZADO NO CASO CONCRETO. 1. Em contratos oriundos de incorporação submetida ao regime de patrimônio de afetação, a retenção dos valores pagos pelo comprador desistente pode chegar a até 50%, segundo o art. 67-A, I, e § 5º, da Lei 13.786/2018.2. Agravo interno a que se nega provimento." (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T4 - Quarta Turma. AgInt no REsp 2.110.077/SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 29 abri. 2024, DJe 02 maio 2024) e "AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. RESCISÃO CONTRATUAL REQUERIDA PELOS ADQUIRENTES. PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO. RETENÇÃO DE 50% DOS VALORES PAGOS. CABIMENTO. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. O STJ firmou entendimento de que, nos contratos oriundos de incorporação submetida ao regime de patrimônio de afetação, como no casos dos autos, a retenção dos valores pagos pode chegar a 50%, conforme estabelece o art. 67-A, I, e § 5º, da Lei 13.786/2018 .2. Agravo interno a que se nega provimento." (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. T4 - Quarta Turma. AgInt no REsp 2.055.691/SP, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 05 jun. 2023, DJe 13 jun. 2023). 7 "CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. CULPA DO COMPRADOR. CONTRATO FIRMADO APÓS A LEI 13.786/2018. CLÁUSULA PENAL. VALIDADE. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. É possível a redução da cláusula penal ajustada nos limites autorizados pela lei, quando sua aplicação mostrar-se manifestamente excessiva, tendo em vista a natureza e a finalidade do contrato. 2. Agravo interno a que se nega provimento." (Superior Tribunal de Justiça. Quarta Turma. AgInt no REsp 2106885/SP. Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 24 jun. 2024, DJe 27/6/2024).
Resumo O presente artigo analisa criticamente a decisão da 2ª seção do STJ no REsp 2.183.860/DF, que validou a notificação de mora por correio eletrônico ao devedor fiduciante. A pesquisa examina os impactos dessa decisão sobre o direito fundamental à moradia, a proteção do consumidor e a segurança jurídica nas relações contratuais imobiliárias. Através de metodologia analítico-descritiva, fundamentada em revisão bibliográfica, análise jurisprudencial e dados estatísticos, demonstra-se que a flexibilização da notificação contraria princípios constitucionais e enfraquece o sistema normativo protetivo estabelecido pelo ordenamento jurídico brasileiro. O estudo conclui pela necessidade de revisão do entendimento jurisprudencial, priorizando a função social do contrato e a dignidade da pessoa humana. Palavras-chave: Notificação eletrônica. Alienação fiduciária. Direito à moradia. Proteção do consumidor. Segurança jurídica. Sumário: 1. Introdução. 2. O direito fundamental à moradia e a vulnerabilidade do consumidor. 3. A afronta ao sistema normativo protetivo. 4. Estatísticas judiciais e a litigiosidade bancária. 5. Jurisprudência contrária à flexibilização da notificação. 6. Crítica à análise econômica do direito. 7. A contradição com o fortalecimento do sistema registral brasileiro. 8. A convergência com os objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU. 9. Propostas de aperfeiçoamento do sistema. 10. Conclusão. 1. Introdução A revolução digital tem transformado profundamente as relações jurídicas contemporâneas, promovendo maior celeridade e eficiência nos procedimentos judiciais e extrajudiciais. No âmbito do Direito Imobiliário, essa transformação se manifesta através da implementação de sistemas eletrônicos de registro, protocolos digitais e, mais recentemente, na validação de notificações por meio eletrônico. A decisão da 2ª seção do STJ no REsp 2.183.860/DF, que validou a notificação de mora por correio eletrônico ao devedor fiduciante, representa um marco nessa evolução tecnológica aplicada ao direito. À primeira vista, tal posicionamento sugere um avanço em termos de modernização e celeridade processual, alinhando-se às tendências contemporâneas de digitalização dos serviços públicos e privados. Contudo, uma análise mais aprofundada revela que tal entendimento pode contrariar princípios constitucionais fundamentais, afrontar dispositivos do CDC e enfraquecer garantias previstas na lei de alienação fiduciária (lei 9.514/97), na lei de incorporação imobiliária (lei 4.591/64), na lei do superendividamento (lei 14.181/21), no marco civil da internet (lei 12.965/14) e no marco legal das garantias (lei 14.711/23). Mais gravemente, essa decisão apresenta uma contradição sistêmica com a política de fortalecimento do sistema registral brasileiro, implementada através dos recentes provimentos do CNJ, que visam consolidar registradores e tabeliões como agentes fundamentais de segurança jurídica.  Ademais, a flexibilização da notificação eletrônica pode comprometer os compromissos assumidos pelo Brasil na Agenda 2030 da ONU, especificamente no que se refere ao ODS 16 - Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 16 - Paz, Justiça e Instituições Eficazes. O presente estudo tem como objetivo analisar criticamente os impactos dessa decisão sobre o direito fundamental à moradia, a proteção do consumidor e a segurança jurídica nas relações contratuais imobiliárias, considerando também sua incompatibilidade com as políticas públicas de fortalecimento institucional e os compromissos internacionais assumidos pelo país.  Busca-se demonstrar que a flexibilização da notificação, embora aparentemente benéfica sob o prisma da eficiência, pode comprometer direitos fundamentais e criar precedentes prejudiciais ao sistema de proteção consumerista e à coerência das políticas públicas nacionais. 2. O direito fundamental à moradia e a vulnerabilidade do consumidor A moradia, prevista no art. 6º da CF/88, constitui direito social fundamental, imprescindível à dignidade da pessoa humana. Esse direito não se limita à mera disponibilidade de um teto, mas abrange condições adequadas de habitabilidade, segurança jurídica da posse e proteção contra despejos arbitrários. A consagração constitucional do direito à moradia reflete o reconhecimento de sua importância para o desenvolvimento humano e social. Segundo Silva (2019), "o direito à moradia adequada é um direito humano fundamental que serve como base para o gozo de todos os outros direitos humanos". Esta perspectiva evidencia que qualquer medida que possa facilitar a perda da moradia deve ser analisada com extrema cautela. O CDC, no art. 4º, I, reconhece a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, incluindo as dimensões técnica, jurídica, econômica e informacional. No contexto da notificação eletrônica, essa vulnerabilidade se manifesta de forma ainda mais acentuada. A vulnerabilidade técnica torna-se evidente quando se considera que nem todos os consumidores possuem conhecimentos suficientes para gerenciar adequadamente suas comunicações eletrônicas. Filtros de spam, problemas de conectividade, falta de familiaridade com tecnologias digitais e até mesmo o desconhecimento sobre a importância de verificar regularmente os e-mails são fatores que podem comprometer a efetividade da notificação. Dados da pesquisa TIC Domicílios 2023, realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, revelam que apenas 81% dos domicílios brasileiros possuíam acesso à internet. Mais preocupante ainda é o fato de que o uso de correio eletrônico permanece restrito e pouco difundido nas camadas menos favorecidas da população. A pesquisa indica que apenas 69% dos usuários de internet no Brasil utilizam correio eletrônico regularmente, sendo que este percentual diminui significativamente nas classes sociais C, D e E. Considerando que o financiamento imobiliário através do SFH - Sistema Financeiro de Habitação é direcionado prioritariamente para famílias de menor renda, a adoção da notificação eletrônica pode criar uma barreira adicional ao acesso efetivo à informação. Segundo Claudia Lima Marques: "A vulnerabilidade não é apenas técnica ou jurídica, mas também informacional e econômica, devendo o fornecedor adotar condutas que minimizem os riscos ao consumidor" (Contratos no CDC: o novo regime das relações contratuais, 9. ed. São Paulo: RT, 2021). 3. A afronta ao sistema normativo protetivo O marco civil da internet (lei 12.965/14), reconhecido como a "Constituição da Internet" brasileira, estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no país. Esta norma é fundamental para a análise da notificação eletrônica, pois aborda questões cruciais relacionadas à proteção de dados e direitos digitais dos usuários. O art. 8º do marco civil garante o direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações como condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet. Essa disposição é relevante para a discussão sobre notificação eletrônica, pois estabelece que são nulas as cláusulas contratuais que violem esses direitos fundamentais. Além disso, o marco civil reforça que tudo que está previsto no CDC e seja aplicável às relações de consumo via internet deve ser rigorosamente cumprido. Esta convergência normativa demonstra que a flexibilização da notificação eletrônica deve respeitar os direitos fundamentais estabelecidos no ambiente digital. A lei 14.711/23, conhecida como marco legal das garantias, representa uma reforma significativa no sistema de garantias brasileiro. Esta norma dispõe sobre o aprimoramento das regras relativas ao tratamento do crédito e das garantias, promovendo a extrajudicialização e o fortalecimento de garantias de devido processo. O marco legal das garantias amplia as competências de notários e registradores, promovendo o aperfeiçoamento da execução extrajudicial dos créditos com garantias reais. Contudo, é fundamental que essas inovações sejam implementadas com respeito aos direitos fundamentais dos consumidores e às garantias processuais estabelecidas pelo ordenamento jurídico. A convergência entre o marco legal das garantias e a questão da notificação eletrônica revela a necessidade de equilibrar a modernização dos procedimentos com a proteção adequada dos direitos do consumidor. A desburocratização não pode significar a supressão de garantias essenciais para a proteção do devedor. A lei 9.514/97, em seu art. 26, §1º, estabelece que o devedor fiduciante seja intimado pessoalmente ou por via postal com aviso de recebimento, garantindo segurança jurídica e efetividade da ciência. Esta disposição não é meramente formal, mas constitui salvaguarda essencial para proteger o mutuário de eventuais abusos. A exigência de intimação pessoal ou postal com aviso de recebimento visa assegurar que o devedor tenha conhecimento inequívoco da mora e da possibilidade de perda do imóvel. Ao autorizar a substituição do aviso postal por correio eletrônico, retira-se essa formalidade essencial, fragilizando a posição do consumidor na relação contratual. A lei de incorporação imobiliária (lei 4.591/64) reforça a necessidade de publicidade e formalização nas relações imobiliárias. O art. 43 estabelece que "quando o incorporador contratar a entrega da unidade a prazo e preços certos, determinados ou determináveis, mesmo quando pessoa física, ser-lhe-ão impostas as seguintes normas", incluindo a observância de procedimentos específicos para comunicações com os adquirentes. A supressão das etapas formais de notificação fragiliza a confiabilidade do sistema registral e afeta diretamente a segurança dos negócios jurídicos. O princípio da publicidade, fundamental no Direito Imobiliário, exige que as informações relevantes sejam disponibilizadas de forma clara, acessível e inequívoca. A lei 14.181/21, conhecida como lei do superendividamento, representa um avanço significativo na proteção do consumidor endividado. Esta normativa impõe ao fornecedor o dever de adotar medidas efetivas de informação e de negociação prévia, prevenindo situações de inadimplemento e preservando a dignidade do consumidor superendividado. O art. 54-C do CDC, incluído pela lei do superendividamento, estabelece que "o fornecedor deverá informar, prévia e adequadamente, ao consumidor sobre os riscos da contratação do crédito e sobre as consequências do inadimplemento". Esta disposição evidencia a necessidade de comunicação efetiva e adequada, o que pode ser comprometido pela notificação eletrônica. Além disso, o referido diploma impõe ao fornecedor o dever de adotar medidas efetivas de informação e de negociação prévia, prevenindo situações de inadimplemento e preservando a dignidade do consumidor superendividado. A convergência dessas normas evidencia a existência de um sistema protetivo consolidado, que busca harmonizar os interesses dos credores com a proteção dos devedores. Este sistema se fundamenta na premissa de que a informação adequada e tempestiva é essencial para o exercício dos direitos do consumidor. A flexibilização dos procedimentos de notificação representa uma ruptura com esse arcabouço normativo, comprometendo a eficácia das garantias legais estabelecidas e criando precedentes que podem enfraquecer todo o sistema de proteção ao consumidor no âmbito das relações imobiliárias. 4. Estatísticas judiciais e a litigiosidade bancária Os dados do relatório "Justiça em Números 2023", elaborado pelo CNJ, revelam um panorama preocupante da litigiosidade no Brasil. As instituições bancárias figuram como os principais litigantes, concentrando aproximadamente 30% das demandas judiciais em tramitação. Este percentual representa mais de 20 milhões de processos envolvendo instituições financeiras, evidenciando a existência de práticas sistemáticas que geram conflitos com os consumidores. A concentração da litigiosidade em instituições bancárias sugere problemas estruturais na prestação de serviços e na gestão de contratos. A análise dos dados demonstra que a flexibilização de procedimentos formais tende a gerar maior insegurança jurídica e, consequentemente, maior litigiosidade. A notificação eletrônica, por sua natureza menos formal e mais sujeita a falhas, pode contribuir para o aumento do número de conflitos judiciais. A experiência internacional corrobora esta preocupação. Estudos realizados nos Estados Unidos indicam que a implementação de sistemas de notificação eletrônica sem salvaguardas adequadas resultou em aumento significativo de execuções imobiliárias irregulares, gerando custos sociais e econômicos substanciais. Durante a crise das execuções hipotecárias de 2010 nos Estados Unidos, documentou-se que a flexibilização dos procedimentos de notificação contribuiu para problemas sistemáticos no sistema de foreclosure. O GAO - Government Accountability Office reportou em 2011 que problemas na documentação e nos procedimentos de notificação resultaram em execuções irregulares que afetaram milhares de famílias. A tentativa do Congresso americano de resolver questões relacionadas à documentação através da aprovação da H.R. 3808, que forçaria tribunais a reconhecer notarizações eletrônicas e de outros Estados, demonstra a complexidade dos problemas gerados pela digitalização inadequada dos procedimentos. A análise da experiência americana revela que a CFPB - Consumer Financial Protection Bureau posteriormente implementou regras mais rigorosas para proteger os consumidores, exigindo que os credores forneçam notificações claras e adequadas antes de iniciar procedimentos de execução. Essa experiência demonstra que a flexibilização prematura de procedimentos de notificação pode gerar custos sociais significativos e necessitar de correções legislativas posteriores. 5. Jurisprudência contrária à flexibilização da notificação A jurisprudência do STJ, antes do julgamento do REsp 2.183.860/DF, vinha reforçando consistentemente a necessidade de notificação formal como requisito essencial para a consolidação da propriedade fiduciária. Esta linha jurisprudencial refletia a compreensão de que a formalidade da notificação constitui garantia fundamental do devedor. No REsp 1.846.331/SP, o Tribunal reconheceu expressamente que "a notificação pessoal ou por via postal com aviso de recebimento constitui requisito imprescindível para a consolidação da propriedade do imóvel em nome do fiduciário". Este entendimento foi reiterado em diversos outros julgados, criando uma jurisprudência sólida e protetiva. A decisão que validou a notificação eletrônica representa uma mudança significativa de paradigma, que merece análise cuidadosa. Esta alteração jurisprudencial pode ter implicações profundas para milhares de contratos de financiamento imobiliário em andamento, afetando direitos adquiridos e expectativas legítimas. A mudança de entendimento jurisprudencial, especialmente em matéria que envolve direitos fundamentais, deve ser fundamentada em razões sólidas e considerar os impactos sociais e econômicos decorrentes. A mera busca por eficiência processual não pode justificar a relativização de garantias constitucionais. 6. Crítica à análise econômica do direito A fundamentação da decisão baseada na Análise Econômica do Direito, especialmente na redução dos custos de transação, revela uma abordagem que privilegia a eficiência econômica em detrimento da proteção de direitos fundamentais. Esta perspectiva, embora relevante, não pode se sobrepor ao princípio da dignidade da pessoa humana. Conforme observa Souza (2022), "a AED deve ser utilizada como ferramenta complementar, jamais como vetor absoluto de decisão, sobretudo quando em jogo direitos fundamentais e interesses difusos". A aplicação irrestrita da lógica econômica pode levar à mercantilização de direitos que deveriam ser protegidos pelo ordenamento jurídico. A busca pela eficiência econômica deve ser ponderada com outros valores constitucionais, especialmente quando se trata de direitos sociais fundamentais. A redução de custos para as instituições financeiras não pode justificar a redução da proteção oferecida aos consumidores. A análise econômica do direito, quando aplicada adequadamente, deve considerar não apenas os custos diretos de transação, mas também os custos sociais decorrentes da flexibilização de garantias. Os custos de litígios futuros, da insegurança jurídica e da violação de direitos fundamentais devem ser incluídos na equação econômica. 7. A contradição com o fortalecimento do sistema registral brasileiro O CNJ tem publicado diversos provimentos que atualizam e modernizam os serviços de tabelionato de notas e registro de imóveis, com efeitos diretos sobre a atuação de registradores e notários. Esses instrumentos normativos visam modernizar os serviços cartorários, mas com foco na manutenção de garantias e formalidades essenciais. Os provimentos têm estabelecido regras sobre processos extrajudiciais, incluindo busca e apreensão e consolidação de propriedade fiduciária perante o Ofício de Registro de Títulos e Documentos. Essa regulamentação demonstra uma preocupação clara com a manutenção de procedimentos formais e seguros, visando fortalecer o sistema registral como um todo. A política do CNJ de fortalecimento do sistema registral reconhece o papel fundamental dos registradores e tabeliões como agentes de segurança jurídica. Esses profissionais atuam como intermediários qualificados, garantindo a autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, especialmente no âmbito das relações imobiliárias. O fortalecimento dessas instituições representa um investimento na criação de um sistema mais robusto e confiável para a proteção dos direitos dos cidadãos. A capacitação técnica e a responsabilidade civil desses profissionais constituem garantias adicionais para a segurança dos negócios jurídicos. A autorização da notificação eletrônica representa uma contradição flagrante com a política de fortalecimento do sistema registral. Enquanto o CNJ busca consolidar registradores e tabeliões como agentes de segurança jurídica, a decisão do STJ permite que procedimentos essenciais sejam realizados sem essa intermediação qualificada. Esta contradição compromete a coerência das políticas públicas e enfraquece o sistema registral que está sendo fortalecido através dos provimentos do CNJ. A flexibilização da notificação "bypassa" as instituições registrais e suas garantias formais, contrariando toda a lógica de fortalecimento institucional. 8. A convergência com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU O Brasil é signatário da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, comprometendo-se com o cumprimento dos 17 ODS - Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Entre esses objetivos, destaca-se o ODS 16 - Paz, Justiça e Instituições Eficazes, que estabelece metas específicas para o fortalecimento do sistema de justiça e das instituições. A Agenda 2030 se transformou na principal referência para a formulação e implementação de políticas públicas para governos ao redor do mundo. O compromisso assumido pelo Brasil exige que todas as políticas e decisões sejam avaliadas quanto à sua compatibilidade com os ODS. O ODS 16 estabelece como meta "até 2030, fornecer identidade legal para todos, incluindo registro de nascimento", reforçando a importância da função registral como garantidora de direitos fundamentais. Além disso, o objetivo visa "promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas a todos os níveis". As serventias extrajudiciais atuam em consonância com a Agenda 2030, prestando diversos atos gratuitos como registro e certidão de nascimento, de óbito e de casamento, buscando satisfazer a igualdade de acesso à emissão de documentos essenciais para o exercício da cidadania. A flexibilização da notificação eletrônica pode comprometer o cumprimento do ODS 16 por várias razões: 1) Compromete o acesso igualitário à justiça: A exclusão digital ainda é uma realidade significativa no Brasil, e a notificação eletrônica pode aprofundar desigualdades existentes; 2) Enfraquece instituições eficazes: A decisão contraria a política de fortalecimento das instituições registrais, que são fundamentais para a construção de um sistema de justiça eficaz; 3) Reduz a inclusão: Ao privilegiar meios digitais, pode-se excluir parcela significativa da população que não tem acesso adequado à tecnologia. 9. Propostas de aperfeiçoamento do sistema Reconhecendo a inevitabilidade da modernização tecnológica, é possível propor critérios rigorosos para a validação da notificação eletrônica, que conciliem eficiência com proteção dos direitos do consumidor.  Estes critérios deveriam incluir: a) Confirmação expressa do devedor sobre o recebimento da notificação; b) Utilização de sistemas de entrega certificada com comprovante de leitura; c) Envio simultâneo por múltiplos canais (e-mail, SMS, carta registrada); d) Prazo diferenciado para resposta, considerando as dificuldades de acesso digital; e) Obrigatoriedade de tentativa de contato telefônico antes da consolidação da mora. Além dos critérios para validação, é fundamental fortalecer os mecanismos de proteção ao consumidor, incluindo: a) Criação de cadastro nacional de devedores com informações de contato atualizadas; b) Implementação de programas de educação financeira digital; c) Estabelecimento de centrais de atendimento especializadas para esclarecimentos sobre notificações; d) Desenvolvimento de aplicativos móveis e sítios eletrônicos nacionais para acompanhamento dos processos de notificação e consolidação de propriedade fiduciária; e) Criação de mecanismos de mediação obrigatória antes da execução. Para resolver a contradição identificada, seria necessário: Integração tecnológica com segurança: Desenvolver sistemas que utilizem a infraestrutura registral existente para validar notificações eletrônicas, mantendo as garantias formais. Fortalecimento da intermediação registral: Utilizar os cartórios como intermediários certificadores das notificações eletrônicas, aproveitando sua expertise em segurança jurídica. Alinhamento com os ODS: Assegurar que qualquer modernização tecnológica seja compatível com os compromissos assumidos na Agenda 2030, especialmente no que se refere ao acesso igualitário à justiça. 10. Conclusão A autorização para constituição de mora por meio eletrônico, ainda que fundamentada na busca por celeridade e redução de custos, representa um retrocesso significativo na proteção dos direitos fundamentais. A análise desenvolvida neste estudo demonstra que tal flexibilização viola princípios constitucionais essenciais e coloca em risco o direito social à moradia. Ao contrário de fortalecer a segurança jurídica, a notificação eletrônica fragiliza o equilíbrio contratual, amplia a vulnerabilidade do mutuário-consumidor e contraria frontalmente as normas protetivas estabelecidas pelo CDC, pela lei de alienação fiduciária, pela lei de incorporação imobiliária, pela lei do superendividamento, pelo marco civil da internet e pelo marco legal das garantias. A convergência dessas normas evidencia a existência de um sistema protetivo consolidado, que busca harmonizar os interesses dos credores com a proteção dos devedores. A ruptura com esse arcabouço normativo compromete a eficácia das garantias legais e cria precedentes prejudiciais ao sistema de proteção consumerista. A contradição com a política de fortalecimento do sistema registral brasileiro representa um aspecto ainda mais grave da questão. Os recentes provimentos do CNJ têm como objetivo consolidar registradores e tabeliões como agentes fundamentais de segurança jurídica, mas a decisão do STJ permite que procedimentos essenciais sejam realizados sem essa intermediação qualificada. Esta incoerência compromete a coerência das políticas públicas e enfraquece o sistema registral que está sendo fortalecido. A incompatibilidade com os compromissos assumidos na Agenda 2030 da ONU agrava ainda mais a situação. A flexibilização da notificação eletrônica pode comprometer o cumprimento do ODS 16 - Paz, Justiça e Instituições Eficazes, especialmente no que se refere ao acesso igualitário à justiça e ao fortalecimento de instituições eficazes. O Brasil, como signatário da Agenda 2030, deve assegurar que todas as políticas e decisões sejam compatíveis com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Os dados estatísticos apresentados reforçam a necessidade de cautela na implementação de mudanças que possam afetar o acesso à justiça e a proteção dos direitos fundamentais. A exclusão digital ainda é uma realidade significativa no Brasil, e a adoção da notificação eletrônica pode aprofundar desigualdades existentes. A jurisprudência anterior do próprio STJ demonstrava compreensão adequada da importância da formalidade na notificação, reconhecendo-a como requisito essencial para a consolidação da propriedade fiduciária. A mudança de entendimento, embora possa ser justificada pela evolução tecnológica, não pode ignorar os impactos sociais e os riscos para os direitos fundamentais. A experiência internacional, especialmente a crise das execuções hipotecárias dos Estados Unidos, demonstra que a flexibilização prematura de procedimentos de notificação pode gerar custos sociais significativos e necessitar de correções legislativas posteriores. A implementação de regras mais rigorosas pelo CFPB - Consumer Financial Protection Bureau evidencia a necessidade de equilibrar modernização tecnológica com proteção adequada dos direitos do consumidor. A aplicação da análise econômica do direito, embora relevante, deve ser ponderada com outros valores constitucionais, especialmente quando se trata de direitos sociais fundamentais. A eficiência econômica não pode ser o único critério para a tomada de decisões judiciais que afetem direitos fundamentais. Assim, faz-se imperiosa a revisão desse entendimento jurisprudencial, priorizando a função social do contrato, a dignidade da pessoa humana e a harmonização com as políticas públicas de fortalecimento institucional. É necessário desenvolver critérios rigorosos que conciliem a modernização tecnológica com a proteção efetiva dos direitos do consumidor, o fortalecimento do sistema registral e o cumprimento dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. A proteção do direito à moradia, a manutenção do equilíbrio nas relações contratuais e a coerência das políticas públicas exigem que se preserve a formalidade e a segurança dos procedimentos de notificação. Somente através dessa abordagem equilibrada será possível conciliar o progresso tecnológico com a proteção dos direitos fundamentais, o fortalecimento das instituições e o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, mantendo a confiança no sistema jurídico brasileiro e sua coerência com os compromissos internacionais assumidos pelo país. Agora nos resta aguardar os novos posicionamentos dos Tribunais, à luz das recentes alterações e reafirmações feitas pela lei 14.711/23. ______________________ MORAES, Alexandre Nunes de.  Direito Imobiliário e Registral na prática. 3ª Edição. Editora Imperium. 2024. JUNIOR, Luiz Antônio Scavone. Direito Imobiliário. Teoria e Prática. 20ª Edição. Editora Forense. 2024. FERREIRA, Ruy Barbosa Marinho. Usucapião na Prática Forense. 2ª Edição. Editora Edijur. 2022. ARECHAVALA, Luis. Alienação de Imóveis: Manual de compra e venda, permuta e doação. 1ª Ed. Editora Lumen Juris. 2023.  SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 42. ed. São Paulo: Malheiros, 2019. SOUZA, André Luiz de. Análise econômica do direito e seus limites no contexto brasileiro: uma reflexão sobre a aplicação de critérios econômicos na interpretação jurídica. Revista Brasileira de Direito Econômico, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 45-63, maio/ago. 2022. BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Brasília, DF. 1973. Disponível aqui. Acesso: 10 jul. 2025. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, DF. 2002. Disponível aqui. Acesso: 10 jul. 2025. BRASIL. Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022. Dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos (Serp); e dá outras providências. Brasília, DF. 2022 Disponível aqui. Acesso: 10 jul. 2025. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. BRASIL. Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964. Dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. BRASIL. Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997. Dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário, institui a alienação fiduciária de coisa imóvel e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. BRASIL. Lei nº 14.181, de 1º de julho de 2021. Altera o Código de Defesa do Consumidor para prevenir e tratar o superendividamento. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025.BRASIL. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Dispõe sobre o aprimoramento das regras relativas ao tratamento do crédito e das garantias e às medidas extrajudiciais para recuperação de crédito. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. TIC Domicílios 2023: pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros. São Paulo: CGI.br, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números 2023. Brasília: CNJ, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010. Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Brasília, DF: CNJ, 2010. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. COLÉGIO REGISTRAL DO RIO GRANDE DO SUL. Provimentos Estaduais. Porto Alegre, 2025. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. COLÉGIO REGISTRAL DO RIO GRANDE DO SUL. CNJ publica dois provimentos que atualizam serviços de tabelionato de notas e registro de imóveis. Portal do Colégio Registral RS, Porto Alegre, 16 jun. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Cartórios terão até 60 dias para informar mudanças na titularidade de imóveis às prefeituras. Portal CNJ, Brasília, DF, 5 jul. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. O objetivo de desenvolvimento sustentável (ODS) 16 (paz, justiça e instituições eficazes) e a Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) enquanto política judiciária brasileira de acesso à justiça. Revista Eletrônica de Direito Processual, Rio de Janeiro, v. 25, n. 3, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. OBJETIVO de Desenvolvimento Sustentável 16. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. [San Francisco, CA]: Wikimedia Foundation, 2024. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Nova York: ONU, 2015. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1.846.331/SP. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Quarta Turma. Julgado em: 11 fev. 2020. DJe: 18 fev. 2020. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 2.183.860/DF. Relator: Ministro Marco Aurélio Bellizze. Segunda Seção. Julgado em: 14 jun. 2023. DJe: 19 jun. 2023. UNITED STATES. Government Accountability Office. Mortgage Foreclosures: Documentation Problems Reveal Need for Ongoing Regulatory Oversight. GAO-11-433. Washington: GAO, 2011. Disponível aqui. Acesso em: 10 jul. 2025. UNITED STATES. Consumer Financial Protection Bureau. How does foreclosure work? Disponível aqui. Acesso em: 10 jul.2025.
Introdução Após anos de discussões no Poder Judiciário a respeito do percentual a ser restituído em caso de rompimento do vínculo contratual por desistência imotivada do adquirente, foi promulgada a lei 13.786/18, que estabeleceu regras claras a respeito, inserindo e alterando dispositivos legais da lei de incorporação imobiliária (lei 4.591/64). A lei ficou conhecida como "lei dos distratos" - embora regule situações diversas do desfazimento bilateral do negócio celebrado entre as partes, como a resilição unilateral e a resolução. Uma das alterações foi a inserção do art. 67-A na lei 4.591/64 para prever expressamente que, em caso de extinção contratual por desistência do adquirente, a restituição será parcial, facultando-se ao incorporador a dedução da parcela correspondente à comissão de corretagem e a aplicação de cláusula penal (pena convencional) de até 25% da quantia paga1. O §5º do citado art. 67-A, entretanto, estabeleceu exceção à regra geral para tratar dos casos de empreendimentos submetidos ao regime do patrimônio de afetação, prevendo a possibilidade de fixação de uma pena até o limite de 50% das quantias pagas - cujo pagamento seria devido no prazo de até 30 dias após a expedição do habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão municipal2. Ocorre que, com certa regularidade, após a conclusão da obra do empreendimento e extinção do patrimônio de afetação, são propostas demandas judiciais por adquirentes que buscam o desfazimento do negócio afirmando não terem mais condições de honrar com o pagamento das parcelas do preço - resilição unilateral, portanto. Uma das principais questões acerca da aplicação deste dispositivo diz respeito à possibilidade de aplicação da cláusula penal de 50% após a extinção do patrimônio de afetação; ou se, nestas situações, aplicar-se-ia a regra geral que estabelece o percentual de retenção máximo de 25% dos valores pagos.  Patrimônio de afetação na incorporação imobiliária Como se sabe, "o patrimônio de afetação possibilita ao incorporador a separação de uma massa patrimonial destinada à consecução de uma finalidade específica - realização de determinado empreendimento imobiliário"3. O art. 31-A da lei 4591/64 (incluído pela lei 10.931 de 2004) estabelece que, a critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime de afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes. O §1º enuncia a finalidade principal de sua constituição ao estabelecer que o "patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva".  De outro lado, as formas de extinção do patrimônio de afetação são previstas no art. 31-E da lei 4.591/64, segundo o qual, "com o fim da incorporação imobiliária, por meio da averbação da construção e transmissão da propriedade ou do direito de aquisição das unidades autônomas para os respectivos adquirentes, e quando for o caso, no pagamento contraído pelo incorporador junto a instituição financiadora do empreendimento (art. 31-E, I). Além disso, também pode se extinguir pela revogação, caso exista denúncia da incorporação, depois de restituídas as quantias dispendidas aos adquirentes (art.31-E, II) e pela liquidação deliberada pela assembleia geral dos adquirentes (art. 31-E, III)"4.  A lei 14.382, de 2022, incluiu no texto do art. 31-E os §§ 1º, 2º e 3º para detalhar e especificar as condições para a efetiva extinção do patrimônio de afetação.  O §1º faz referência ao inciso I, tratando das situações nas quais a extinção ocorre pela conclusão da incorporação imobiliária e possibilita a extinção individual, para cada unidade autônoma, ao prever que "uma vez averbada a construção, o registro de cada contrato de compra e venda ou de promessa de venda, acompanhado do respectivo termo de quitação da instituição financiadora da construção, importará a extinção automática do patrimônio de afetação em relação à respectiva unidade, sem necessidade de averbação específica".  Já o §2º se refere às unidades que se mantiveram no estoque da incorporadora e estabelece que "quando da extinção integral das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento e após a averbação da construção, a afetação das unidades não negociadas será cancelada mediante averbação, sem conteúdo financeiro, do respectivo termo de quitação na matrícula matriz do empreendimento ou nas respectivas matrículas das unidades imobiliárias eventualmente abertas".  Assim, em um mesmo empreendimento já concluído, poderá haver unidades não mais submetidas ao patrimônio de afetação e outras ainda submetidas a tal regime, apenas enquanto não quitadas as obrigações junto à instituição financiadora da obra. A leitura dos dispositivos legais permite afirmar que, a princípio, não basta somente o preenchimento de apenas um dos requisitos para a extinção do patrimônio de afetação, sendo necessária a conclusão da obra, com a respectiva averbação do certificado de conclusão na matrícula do imóvel e, para os imóveis não comercializados em definitivo, a quitação das obrigações junto à instituição financiadora da obra. A cláusula penal após a extinção do patrimônio de afetação O debate que se coloca, como já apontado, envolve os efeitos da extinção do patrimônio de afetação no que diz respeito à aplicação da pena convencional em seu patamar superior (50%). A questão a ser respondida é a seguinte: nos casos em que a resolução por inadimplemento do adquirente ou resilição por sua iniciativa ocorre após a extinção do patrimônio de afetação, ainda seria possível aplicar a regra especial?  As incorporadoras imobiliárias, diante da desistência de adquirentes, em geral, sustentam que a extinção da afetação não altera o regime jurídico do contrato, em especial no que diz respeito à cláusula penal aplicável. Ao defender sua tese, sustentam que a extinção não se daria tão somente pelo término da obra e respectiva averbação da conclusão na matrícula do imóvel, mas especialmente pela satisfação de todas as obrigações garantidas, incluindo-se o crédito da instituição financiadora da obra e, eventualmente, as demandas judiciais envolvendo a Sociedade de Propósito Específico e vendedora do empreendimento. Até porque, como já evidenciado, a finalidade do patrimônio de afetação é, exatamente, garantir a reserva e o destacamento de patrimônio suficiente para suportar eventuais passivos decorrentes da realização do empreendimento e, assim, tem como característica a sua incomunicabilidade com outras dívidas ou créditos da Incorporadora Imobiliária. Por consequência lógica, a extinção do patrimônio de afetação não desnaturaria a aplicação estrita da norma, que não faz a ressalva quanto a aplicação do percentual de 50% a título de pena convencional apenas para os casos de empreendimento com patrimônio de afetação não encerrado. Esta não tem sido, todavia, a orientação prevalecente nas Câmaras de Direito Privado do TJ/SP, que - em inúmeros precedentes5 - têm declarado a extinção do patrimônio de afetação a partir da mera averbação da construção e decidido pela limitação da pena convencional, nessas situações, ao percentual de 25%, nos termos do art. 67-A, II. Assim, comprovada a conclusão da obra e, especialmente, houver a averbação específica da extinção do patrimônio de afetação na matrícula do imóvel, ainda que haja obrigações pendentes de cumprimento pela vendedora do imóvel, entende-se, geralmente, pela aplicação do percentual de 25% a título de pena convencional6. A orientação prevalecente, todavia, nos parece manifestamente equivocada, já que a extinção ou não do patrimônio de afetação é elemento absolutamente irrelevante para análise da matéria. O regime jurídico a que se submete o contrato está definido no momento de sua celebração. É justamente por isso, por exemplo, que o STJ afastou a possibilidade a aplicação da lei dos distratos aos contratos celebrados em momento anterior à sua promulgação. É neste momento, de formação do contrato, que as expectativas legítimas das partes são definidas, a partir da base objetiva, orientando sua conduta. Com efeito, o negócio jurídico é celebrado sobre uma base negocial, que contém aspectos objetivos e subjetivos, base essa que deve manter-se até a execução plena do contrato, bem como até que sejam extintos todos os efeitos decorrentes do contrato (pós-eficácia). Por base do negócio jurídico devem se entender todas as circunstâncias fáticas e jurídicas que os contratantes levaram em conta ao celebrar o contrato, que podem ser vistas nos seus aspectos subjetivo e objetivo7. Se no momento da celebração do contrato existe patrimônio de afetação constituído para o empreendimento, as partes esperam - e orientam seus comportamentos a partir dessa expectativa - que a retenção em caso de desistência imotivada (resilição unilateral) será de até 50% dos valores pagos. Daí se poder afirmar (ou repetir): a extinção ou não do patrimônio de afetação é irrelevante para a análise da matéria, importando apenas se existia ou não patrimônio de afetação no momento da celebração do contrato. A tese adotada na jurisprudência conduziria a situações absolutamente esdrúxulas e compromete a integridade do sistema, tornando impossível às partes antever qual a norma que será aplicada no momento de (eventual) desfazimento do negócio.  Afinal, qual seria o instante de apuração acerca da existência ou não de patrimônio de afetação? A propositura da ação? A sentença? O trânsito em julgado? O primeiro inadimplemento de uma das parcelas? E se o patrimônio de afetação é extinto no curso do processo, entre a propositura da ação e a sentença, qual a regra aplicável? O mesmo critério poderia ser aplicado nos casos em que o patrimônio de afetação é constituído após a celebração do contrato? A parte que fica inerte por mais tempo, aguardando a extinção do patrimônio de afetação (que, presume-se, irá ocorrer em algum momento) obtém para si situação mais vantajosa que a parte que ajuizou a ação em momento anterior?  Imagine-se, então, dois contratos celebrados numa mesma data tendo como objeto unidades de empreendimento submetido a regime de afetação. Os adquirentes, colegas de trabalho, são demitidos cerca de 1 ano após a celebração do negócio, enquanto as obras ainda estavam sendo realizadas. Um deles (A), percebendo não possuir mais condições financeiras de manter o compromisso que assumiu, busca se desobrigar, requerendo o desfazimento do negócio. Para este, não haveria dúvida acerca da possibilidade de retenção de até 50% dos valores pagos. O outro (B), entretanto, embora também não possua condições de arcar com as prestações, não pede o desfazimento do negócio no primeiro momento e decide aguardar a conclusão da obra e extinção do patrimônio de afetação, para só depois pedir o desfazimento. Por que seu tratamento seria (substancialmente) diferenciado em relação ao primeiro?  A norma legal não traz qualquer distinção quanto aos percentuais aplicados antes e depois da conclusão da obra e extinção do patrimônio de afetação; sob que fundamento o julgador poderia fazer tal diferenciação - que a lei, repita-se, não fez?  O que se tem, nestes casos, é que o vago pretexto de proteger a parte hipossuficiente e vulnerável da relação conduz a soluções casuísticas cuja fundamentação não se sustenta, porque não serve para outros casos semelhantes - levando à incerteza e insegurança jurídica. A preservação da coerência e integridade do sistema exige a construção de fundamentos jurídicos minimamente estáveis, a partir de premissas fundamentais que não se desintegram diante das contestações mais superficiais e, por essa razão, entende-se que percentual de retenção de 50% das quantias pagas, a título de clausulas penal, deve ser aplicado, ainda que haja a extinção do patrimônio de afetação no curso do cumprimento do contrato. _____________________ 1 Art. 67-A . Em caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus à restituição das quantias que houver pago diretamente ao incorporador, atualizadas com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, delas deduzidas, cumulativamente: I - a integralidade da comissão de corretagem; II - a pena convencional, que não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga. 2 §5º Quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação, de que tratam os arts. 31-A a 31-F desta Lei, o incorporador restituirá os valores pagos pelo adquirente, deduzidos os valores descritos neste artigo e atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente, admitindo-se, nessa hipótese, que a pena referida no inciso II do caput deste artigo seja estabelecida até o limite de 50% (cinquenta por cento) da quantia paga. 3 Disponível aqui. 4 BORGES, Marcus Vinicius Motter, Incorporação Imobiliária, in Curso de Direito Imobiliário Brasileiro, 2021, p.438 5 Neste sentido são as decisões proferidas nos seguintes casos, dentre tantos outros: Apelação Cível nº 1083278-07.2022.8.26.0002, 29ª Câmara de Direito Privado, Relator(a) Des. José Augusto Genofre Martins, 28 de julho de 2024. Apelação Cível nº 1026915-26.2024.8.26.0100, Relator(a) Des. Ana Lucia Romanhole Martucci, 33ª Câmara de Direito Privado, 9 de setembro de 2024. Embargos de Declaração Cível nº 1001258-54.2023.8.26.0541/50000, Relator(a) Des. Antonio Rigolin, 31ª Câmara de Direito Privado, 10 de julho de 2024. Apelação Cível: 1000509-09.2022.8.26.0400, Relator(a) Des. Claudio Godoy, 1ª Câmara de Direito Privado, 15/02/2024.  Apelação Cível 1009289-34.2022.8.26.0562, Relator Des. Sergio Alfieri, 27ª Câmara de Direito Privado, 23/02/2023. 6 Neste momento, não foram localizadas decisões colegiadas no Superior Tribunal de Justiça acerca da questão. Mesmo as poucas decisões monocráticas encontradas não abordaram a matéria, já que a análise normalmente se limita a aspectos processuais.  7 LEÃO, Luis Gustavo de Paiva. A quebra da base objetiva dos contratos. Mestrado - Direito Civil, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.
A busca por eficiência, segurança e equilíbrio na execução de dívidas com garantia imobiliária é um antigo desafio no Brasil. Regras claras e aplicadas de modo previsível são essenciais se queremos um mercado imobiliário com crédito abundante, acessível e barato. 1. De onde viemos Ao longo do século XX, o credor hipotecário nunca encontrou um bom caminho para a recuperação do seu crédito: ou percorriam uma longa e excruciante execução em juízo, ou se arriscavam pela polêmica e jamais bem compreendida excussão extrajudicial. O resultado foi o crescente anacronismo dessa garantia milenar e sua paulatina substituição pela AF - alienação fiduciária, trazida pela lei 9.514/1997, mais eficaz por seu procedimento extrajudicial radicalmente distinto do sistema geral previsto no CPC. A nova garantia mergulhou no caldeirão cultural do Brasil, provocando, como era de se esperar, discussões judiciais tonitruantes e interpretações contra legem. A principal controvérsia resumia-se a esta pergunta: a lei 9.514/1997 prevalece sobre o art. 53 do CDC, pelo qual são nulas "as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas" nas alienações fiduciárias em garantia? Foram anos de incerteza, até que o STJ, atento à relevância social e econômica da garantia, julgou, em 2022, o Tema 1.095, com tese vinculante pela qual a "lei 9.514/1997, por se tratar de legislação específica", afasta a aplicação do CDC1: Em 2023, outro passo importante rumo à segurança jurídica: o STF, ao julgar o Tema 982, fixou tese de repercussão geral pela qual declarou ser "constitucional o procedimento da lei 9.514/1997 para a execução extrajudicial da cláusula de alienação fiduciária em garantia, haja vista sua compatibilidade com as garantias processuais previstas na Constituição Federal". Ainda em 2023, a lei 14.711/232, além de atualizar diversas regras aplicáveis à lei 9.514/1997, finalmente modernizou a hipoteca, tornando similares os procedimentos extrajudiciais das duas garantias, e mantendo certas diferenças3. Embora os avanços tenham sido notáveis, eles não foram suficientes para aplacar uma importante discussão: na execução das garantias, a arrematação do imóvel por menos do que 50% do seu valor caracteriza preço vil e invalida o leilão extrajudicial? Se para você a resposta é óbvia, saiba que uma parte do Judiciário discorda. Antes e depois do Tema 1.095 do STJ, os julgamentos a esse respeito não foram uniformes nem mesmo no próprio STJ: Em 2021, a 3ª turma, por unanimidade de votos, decidiu que, em leilão extrajudicial, caracteriza preço vil o lance não alcança 50% do valor de avaliação do imóvel4; Em 2023, a 3ª turma, por unanimidade de votos, entendeu que "o art. 27, §2º, da lei 9.514/1997 há de ser interpretado com as limitações até então impostas pela jurisprudência à semelhante questão, orientação corroborada pelo arts. 891 e 903, § 1º, I do CPC de 2015, segundo os quais: a) não será aceito lance que ofereça preço vil, considerando-se vil, não tendo sido fixado preço mínimo, o preço inferior a cinquenta por cento do valor da avaliação (art. 891); b) a arrematação poderá ser invalidada quando realizada por preço vil ou com outro vício (art. 903)", decidindo assim, a partir de critérios extraídos do CPC, pela caracterização de preço vil e consequente anulação de leilão extrajudicial de alienação fiduciária de imóvel5. No mesmo ano, contudo, por decisão monocrática, reconheceu-se como válido lance correspondente ao valor da dívida, mesmo inferior a 50% do valor de avaliação do imóvel, com fundamento no "Princípio da Especialidade, a demandar a aplicação da lei 9.514/1997, que dispõe sobre o Sistema de Financiamento Imobiliário", em deterimento das regras gerais do CPC6; Em 2024, a 3ª turma, por unanimidade de votos, decidiu que a "partir da vigência da lei nº 14.711/23, não há mais dúvidas de que, em segundo leilão, não pode ser aceito lance inferior à metade do valor de avaliação do bem, ainda que superior ao valor da dívida (acrescido das demais despesas), à semelhança da disposição contida no art. 891 do CPC/15"7; Em 2025, a 3ª turma, mais uma vez por unanimidade de votos, decidiu que "muito embora o art. 27, § 2º, da lei 9.514/1997 autorize a venda do imóvel em segundo leilão pelo valor da dívida, a arrematação não poderá ser realizada por preço vil, assim considerado aquele inferior a 50% do valor de avaliação, sob pena de causar um prejuízo exagerado em desfavor do devedor fiduciante", afirmando que esse piso deve estar previsto no edital8. Para superar tamanha insegurança jurídica, pavimentando a melhoria do sistema, o primeiro passo é termos as coisas claras, entendendo o singular mecanismo da execução extrajudicial dessas garantias. Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
A expansão urbana tem exigido do setor imobiliário o domínio não apenas da técnica jurídica de parcelamento e incorporação do solo, mas também da correta estruturação ambiental dos empreendimentos. Loteamentos, incorporações e os chamados condomínios de lotes envolvem etapas de licenciamento e regularização ambiental que não podem ser ignoradas, sob pena de graves consequências jurídicas, civis e patrimoniais. No ordenamento jurídico brasileiro, os principais institutos de parcelamento do solo urbano são: Loteamento (lei 6.766/1979): criação de novos lotes mediante abertura de vias públicas; Condomínio edilício (lei 4.591/1964): edificação com frações autônomas e áreas comuns e Condomínio de lotes (art. 58 da lei 13.465/17): desdobramento do condomínio edilício, sem exigência de edificação prévia. Cada um desses modelos exige análise jurídica própria, mas compartilham um ponto comum: a imprescindibilidade da regularização ambiental prévia à sua viabilidade urbanística e registral. A legislação ambiental brasileira em vigor - especialmente a lei 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente), o Código Florestal (lei 12.651/12) e a resolução CONAMA 237/97 - impõe que empreendimentos potencialmente modificadores do meio ambiente estejam sujeitos ao licenciamento ambiental prévio. Nos projetos imobiliários, esse licenciamento é frequentemente condição exigida pelos órgãos municipais e estaduais para a aprovação urbanística do empreendimento. Ainda que a resolução CONAMA 237/97 não preveja expressamente a precedência do licenciamento sobre os atos urbanísticos, ela estabelece, em seu art. 10, §1º, que o procedimento de licenciamento deve ser acompanhado da comprovação da regularidade fundiária e urbanística, como certidão de uso do solo e demais autorizações específicas. No Estado do Paraná, por exemplo, tem-se recente atualização de lei estadual específica que dispõe sobre normas gerais para o licenciamento ambiental no estado (lei estadual 22.252/24) e, regulamentando as definições dessa legislação, o decreto estadual 9541/25, que dispõe sobre procedimentos administrativos referentes ao licenciamento ambiental de empreendimentos e/ou atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ao meio ambiente. Afunilando ainda mais a especificidade do tema, o órgão ambiental estadual em questão editou IN 21, de 25 de abril de 2025, definindo critérios, diretrizes e procedimentos para o licenciamento ambiental de empreendimentos imobiliários urbanos no território paranaense. Na mencionada instrução normativa observa-se critérios para enquadramento em diferentes tipos de procedimentos de licenciamento ambiental, levando-se em consideração o tipo de empreendimento ou atividade, os quais são assim elencados: parcelamento do solo urbano (loteamento, condomínio de lotes ou desmembramento); condomínios para fins habitacionais, industriais ou comerciais; construção de barracões e implantação de parques urbanos. Na prática, o licenciamento ambiental se mostra complexo em razão de inúmeros atos normativos a serem observados para seu devido procedimento, que pode variar a depender da região em que se localiza a atividade a ser licenciada, mas é etapa essencial e muitas vezes condicionante da viabilidade urbanística e registral do empreendimento. Com a recente aprovação da lei 15.190/25, denominada lei geral de licenciamento ambiental, de âmbito federal, que entrará em vigor em seis meses, essa complexidade em razão da existência de diversas leis esparsas tende a ser superada, uma vez que a lei federal visa promover a uniformização das normas em todo o território nacional. Fato é que a ausência de uma boa estruturação em procedimentos de licenciamento ambiental pode acarretar: (i) Impossibilidade de registro no cartório de imóveis (art. 18 da lei 6.766/1979); (ii) Embargos e autuações ambientais; (iii) Responsabilidade civil e criminal dos empreendedores (art. 225, §3º da Constituição Federal); (iv) Riscos contratuais com adquirentes e financiadores. A due diligence ambiental é uma etapa estratégica na análise de viabilidade jurídica de empreendimentos imobiliários. Consiste na investigação da situação ambiental da área pretendida, considerando: (i) Existência de reservas legais ou áreas de preservação; (ii) Passivos ambientais anteriores (multas, TACs, contaminações); (iii) Classificação fundiária, uso do solo e restrições legais; e (iv) Necessidade de licenciamento, EIA/RIMA ou estudos simplificados. Do ponto de vista prático, é comum que empreendedores adquiram imóveis rurais ou urbanos sem conhecimento das limitações ambientais e acabem com áreas economicamente inviáveis, bloqueadas por restrições legais ou com passivos ocultos. Um exemplo recorrente é a tentativa de implantar loteamentos em áreas de fundos de vale ou margens de cursos d'água, o que esbarra diretamente nas Áreas de Preservação Permanente (art. 4º do Código Florestal). Com a crescente adoção do condomínio de lotes como alternativa urbanística, surgem novos desafios: embora previsto legalmente, muitos municípios ainda não dispõem de regulamentação própria. Isso implica exigências específicas em termos de licenciamento ambiental e infraestrutura mínima, que se confundem com os critérios aplicáveis aos loteamentos. A doutrina tem destacado que a implantação desses empreendimentos deve respeitar tanto a lei 4.591/1964, quanto a legislação ambiental e urbanística local, sendo necessário o licenciamento ambiental prévio quando o empreendimento estiver fora do perímetro urbano consolidado ou puder causar impacto ambiental relevante. A ausência dessa etapa pode inviabilizar o registro e expor os empreendedores a riscos administrativos e judiciais. Conclusão A regularidade ambiental não é uma etapa secundária, mas sim um pilar estrutural do sucesso jurídico e econômico de empreendimentos imobiliários. Loteamentos, incorporações e condomínios de lotes, apesar de suas particularidades legais, compartilham a necessidade de uma atuação planejada e preventiva, com especial atenção ao diagnóstico ambiental da área desde a concepção do negócio. Ignorar essa etapa significa não apenas comprometer o empreendimento perante os órgãos públicos, mas também gerar um passivo oculto que afeta a confiança do mercado, a segurança dos adquirentes e a própria liquidez do ativo. A due diligence ambiental deixou de ser apenas um diferencial competitivo e tornou-se requisito essencial de diligência e responsabilidade corporativa. Incorporadoras, construtoras e investidores que compreendem essa realidade transformam um potencial risco em oportunidade, protegem-se juridicamente, fortalecem sua reputação e garantem a viabilidade ambiental e econômica de seus empreendimentos. _______ Referências BRASIL. Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA). Resolução 237, de 19 de dezembro de 1997. Dispõe sobre a competência e o licenciamento ambiental. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. BRASIL. Estado do Paraná. Decreto 9.541, de 11 de agosto de 2025. Regulamenta a Lei nº 22.252/2024, sobre procedimentos administrativos de licenciamento ambiental no Estado do Paraná. BRASIL. Estado do Paraná. Lei 22.252, de 12 de dezembro de 2024. Estabelece normas gerais para licenciamento ambiental no Estado do Paraná. BRASIL. Lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964. Dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias. Brasil. Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano e dá outras providências. BRASIL. Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. BRASIL. Lei 12.651, de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre normas para conservar, recuperar e utilizar de forma sustentável as florestas e demais formas de vegetação nativa no Brasil.
O Direito brasileiro acaba de dar um passo silencioso, mas potente, rumo à sofisticação das garantias privadas: nasce a Conta Notarial, também conhecida como "Escrow Account" ou Conta Caução. Uma ferramenta discreta, de operação técnica, mas com potencial de reconfigurar a forma como lidamos com risco, confiança e segurança jurídica em negócios entre particulares. Afinal, quantas vezes as partes hesitam diante de uma transação porque não sabem a quem confiar o dinheiro? A assinatura do contrato de compra e venda de um imóvel, o início de uma obra de alto custo, a divisão de bens em um divórcio. Tudo isso exige mais do que cláusulas bem redigidas e exige confiança operacional. E é aí que entra o notariado. A lei 14.711/23, conhecida como "Marco legal das garantias" promoveu inovações na lei 8.935/94 e implementou, especificamente no art. 7º-A da lei 8.935/94, a criação da "Escrow Account", a qual foi recentemente regulamentada pelo provimento 197/25 do CNJ. A Conta Notarial permite que o tabelião de notas atue como administrador de valores vinculados a um negócio jurídico. Mais do que lavrar atos, o notário passa a exercer, com respaldo legal e bancário, um papel de custódia qualificada, imparcial e verificadora de condições objetivas para liberação de recursos quando cumpridas as condições estabelecidas pelas partes. O que é e como funciona a Conta Notarial? Imagine a seguinte situação: Pedro é proprietário de um imóvel urbano e deseja vendê-lo para Paulo por R$ 300.000,00. As partes concordaram com o preço e com todas as demais condições, porém, existe um impasse: Pedro não quer assinar a escritura pública de compra e venda antes de receber o valor integral e Paulo não quer transferir o dinheiro antes de ter certeza de que o imóvel será formalmente transferido em seu nome. O tabelião de notas, ciente da recente alteração trazida pela lei 14.711/23, que trouxe a ampliação de sua atuação como intermediador de valores ligados a diversos negócios jurídicos, propõe a utilização da Conta Notarial. Na prática, funciona assim: as partes definem, em instrumento contratual, as condições que autorizam o repasse de determinado valor. O montante é então depositado numa conta bancária vinculada, sob administração do cartório, e permanece intocado até que o tabelião, com fé pública e respaldo técnico, certifique o cumprimento das condições acordadas. Não há espaço para subjetivismos. Tudo deve ser mensurável, verificável, auditável. A robustez do serviço se ancora na tecnologia do Banco Safra, instituição conveniada com o CNB/CF - Colégio Notarial do Brasil, e no ecossistema digital do e-Notariado, plataforma digital que viabiliza a realização de atos notariais pelos usuários dos serviços de forma online em todo o Brasil, como testamentos eletrônicos e autorizações de viagem e doações de órgãos. Agora, soma-se a isso a Conta Notarial, ampliando a atuação do notariado brasileiro como agente de desjudicialização, racionalidade contratual e proteção patrimonial, uma vez que o modelo garante que os valores fiquem protegidos durante todo o curso do negócio, alheios a constrições judiciais, execuções fiscais ou outros riscos externos. Aplicabilidade e cenários de uso Os usos são diversos e reveladores da relevância da ferramenta. Em operações de compra e venda de imóveis, por exemplo, o comprador pode depositar o valor total, liberando-o apenas após a transferência do bem, o registro da escritura ou a entrega das chaves. Em contratos de empreitada, os repasses podem ser fracionados conforme a evolução física da obra, evitando tanto inadimplência quanto adiantamentos desnecessários. Já em sucessões e divórcios, a conta pode ser usada para garantir pensões, cauções ou partilhas condicionadas, por exemplo. Tudo isso, com segurança jurídica, imparcialidade e rastreabilidade. O tabelião não representa nenhuma das partes, não decide sobre a validade do negócio, nem interfere em sua eficácia. Seu papel é o de fiel depositário do pacto. Em caso de dissentimento, lavra ata para constatar a verificação da ocorrência ou da frustração das condições negociais, suspende o repasse e orienta a busca de solução consensual ou judicial. Simples e revolucionário em termos de governança contratual. Aspectos formais e procedimentais A Conta Caução também inova ao reduzir riscos operacionais. Sua abertura é realizada a partir de requerimento formal apresentado ao cartório, com identificação das partes, dados do negócio jurídico, descrição clara das condições para liberação dos valores, conta destinatária, prazo de vigência e análise das certidões exigidas pela norma. Os valores depositados não podem ser penhorados, desviados ou confundidos com outros ativos, constituindo verdadeiro patrimônio segregado, o que garante maior confiabilidade dos usuários a remessa e retenção do capital. Permanecem alocados em conta específica, por prazo máximo de 180 dias (prorrogáveis por mais 30 dias com justificativa), e sua movimentação exige documentação precisa, certidões atualizadas e verificação de eventuais restrições judiciais ou indícios de fraude. Passado esse prazo sem cumprimento das condições, os valores retornam ao depositante originário.  Como parte do procedimento, a ata notarial será lavrada, a requerimento das partes, pelo tabelião, com o objetivo de verificar o sucesso ou a frustração das cláusulas acordadas e, subsequentemente, procederá ao repasse do valor alocado ao destinatário, considerando a eficácia ou a rescisão do negócio celebrado. Custos e remuneração E toda essa segurança possui um custo baixo, uma vez que a remuneração é repartida entre o banco, o cartório e o CNB/CF, com tarifas proporcionais ao valor administrado e sem ônus direto ao tabelião. A taxa mínima de operação é de R$ 50,00, o que torna o serviço acessível mesmo a negócios de menor porte. O tabelião, inclusive, não arca com nenhum custo operacional e é remunerado pela instituição financeira, além dos emolumentos legais aplicáveis aos atos notariais adicionais eventualmente lavrados. Considerações finais A Conta Notarial representa uma mudança de paradigma: sai o modelo de confiança tácita entre partes privadas e entra um terceiro imparcial, técnico, fiscalizador, com fé pública e responsabilidade civil objetiva, propondo-se de forma bem-sucedida a mediar transações, conferir idoneidade às operações, revolucionar o mercado das negociações e consequentemente mitigar os riscos correlacionados ao sistema econômico nacional. Num país que ainda carece de soluções práticas para mitigar riscos privados sem judicialização, a presença do tabelião neutro como gestor financeiro vinculado a condições contratuais pode ser um divisor de águas. É mais uma expressão da maturidade do notariado brasileiro, cada vez mais digital, próximo do cidadão e protagonista na transformação da cultura jurídica nacional. ________________________ BRASIL. Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Dispõe sobre serviços notariais e de registro. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 nov. 1994. Disponível aqui. BRASIL. Lei 14.711, de 30 de outubro de 2023. Dispõe sobre o aprimoramento das regras de garantia, a execução extrajudicial de créditos garantidos por hipoteca, a execução extrajudicial de garantia imobiliária em concurso de credores, o procedimento de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis em caso de inadimplemento de contrato de alienação fiduciária, o resgate antecipado de Letra Financeira, a alíquota de imposto de renda sobre rendimentos no caso de fundos de investimento em participações qualificados que envolvam titulares de cotas com residência ou domicílio no exterior e o procedimento de emissão de debêntures; altera as Leis nºs 9.514, de 20 de novembro de 1997, 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), 13.476, de 28 de agosto de 2017, 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), 9.492, de 10 de setembro de 1997, 8.935, de 18 de novembro de 1994, 12.249, de 11 de junho de 2010, 14.113, de 25 de dezembro de 2020, 11.312, de 27 de junho de 2006, 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e 14.382, de 27 de junho de 2022, e o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969; e revoga dispositivos dos Decretos-Lei nºs 70, de 21 de novembro de 1966, e 73, de 21 de novembro de 1966. Disponível aqui. Acesso em: 9 ago. 2025. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Provimento nº 197, de 13 de junho de 2025. Dispõe sobre a regulamentação da conta notarial vinculada, nos termos do §1º do art. 7º-A da Lei nº 8.935/1994. Disponível aqui. COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL. Ministro Mauro Campbell anuncia o Provimento nº 197/25 e institui a conta notarial. 2025. Disponível aqui. COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL. Conta Notarial (Escrow Account) - Esclarecimentos gerais. 2025. Disponível aqui. COLÉGIO NOTARIAL DO BRASIL. 2025. Disponível aqui. LOUREIRO, Luiz Guilherme. Manual de direito notarial: da atividade e dos documentos notariais. 4. ed. Salvador: JusPODIVM, 2020.
Análise do REsp 2.130.141, que reconheceu a inaplicabilidade da súmula 308/STJ aos contratos de alienação fiduciária em garantia de bens imóveis. Importante decisão proferida pelo STJ reconheceu que não é possível equiparar o contrato de alienação fiduciária em garantia de bens imóveis, regido pela lei 9.514/97, com a contratação de hipoteca, afastando o entendimento de supressão da eficácia da garantia perante terceiros adquirentes quando firmada entre construtora e agente financeiro que havia sido sedimentado através da súmula 308, do STJ. A súmula 308, do STJ, publicada em 25/4/05, assim dispõe: "A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.". A decisão, didaticamente proferida, analisou caso em que empresa incorporadora e construtora alienou fiduciariamente unidades em garantia de pagamento de dívida confessada para com grupos de consórcio. Não obstante o impeditivo legal e contratual, a empresa devedora fiduciante contratou com terceiro a promessa de compra e venda das unidades, transferindo a posse das mesmas. Apesar da dívida confessada, a empresa devedora fiduciante inadimpliu com os pagamentos mensais, o que acarretou na consolidação da propriedade fiduciária em nome da Credora. Neste momento, na iminência da realização dos leilões extrajudiciais, o terceiro interessado ingressou com demanda judicial objetivando o provimento jurisdicional para o cancelamento da alienação fiduciária gravada sobre os bens imóveis. A tese desenvolvida pelo terceiro promitente comprador para a pretensão de cancelamento da alienação fiduciária contratada e que foi acolhida nas instâncias inferiores resumia-se à aplicação, por analogia, súmula 308, do STJ, que estabelece: A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.". Diante do recebimento do REsp 2.130.141 - RS, a 4ª turma do STJ, ciente da relevância do tema e de sua repercussão no mercado imobiliário, ponderou ser essencial uma análise mais aprofundada sobre a controvérsia jurídica envolvendo a garantia por alienação fiduciária e a aplicação, por analogia, da súmula 308, do STJ. Para tanto, o ministro relator Antonio Carlos Ferreira estabeleceu axiomas para o melhor desenvolvimento e compreensão do Julgado: 1º Axioma: A ratio decidendi O excelso relator recuperou as razões pelas quais foi editada a referida súmula em comento, destacando a sua origem nos argumentos dos compradores prejudicados pela falência da empresa construtora Encol S.A. Engenharia que adquiriram unidades que haviam sido hipotecadas a agentes financeiros, mas que não as receberam. Além, o nobre ministro discorreu sobre a ratio decidendi da súmula 308, do STJ,  apontando que é "fundamental analisar os fundamentos fáticos relevantes dos julgados que a precederam", destacando que quase todos os julgados que confluíram para a elaboração da Súmula citaram como fato relevante ser a relação negocial oriunda do Sistema Financeiro de Habitação - SFH, que tem por objetivo facilitar e promover a construção e a aquisição da casa própria ou moradia, especialmente pelas classes de menor renda da população" (art. 8º da lei 4.380/1964).  De maneira perspicaz, a decisão compreendeu que os novos julgados ao aplicarem por analogia a súmula e afastarem a aplicabilidade da alienação fiduciária o fazem com base na presunção de boa-fé do adquirente, como se esta fosse a sua ratio decidendi.  Contudo, como afirmado no julgado, "não se extrai como fato jurídico essencial o respeito à boa-fé do adquirente no âmbito dos direitos reais, mas sim a existência de um regime especial instituído pelas normas do Sistema Financeiro da Habitação.". Desta forma, neste ponto, concluiu o julgado aclarando: "possuindo razões de decidir distintas, não se poderia aplicar analogicamente o entendimento sumular.". 2º Axioma: A comparação entre os institutos da Hipoteca e da Alienação Fiduciária Conceitualmente, a Alienação Fiduciária em Garantia de Bens Imóveis e a Hipoteca são institutos distintos que guardam, como destacado na decisão, aspectos comuns, dentre os quais serem "acessórios, empregados como garantia real para transações jurídicas principais sobre propriedades imobiliárias.". A hipoteca é um direito real de garantia em que a posse e propriedade do bem imóvel permanecem com o devedor hipotecante, cabendo ao credor apenas o direito de preferência de crédito sobre os credores quirografários em caso de expropriação judicial do bem, sendo preterido, no entanto, quando de encontro com credores privilegiados, como é o caso do crédito tributário e trabalhista.  A alienação fiduciária, por sua vez, erigida na forma da lei 9.514/97, importa na transferência ao credor da propriedade resolúvel do bem e a posse indireta, mantendo-se o devedor tão somente na posse direta do bem até que ocorra a quitação da dívida. Com a quitação da dívida, cumpre-se a condição resolúvel e a propriedade é transferida para o devedor, extinguindo-se a obrigação.  Em direta conceituação, CHALHUB esclarece de forma precisa a distinção da alienação fiduciária em garantia da hipoteca: "Em suma, enquanto a hipoteca é um direito real em coisa alheia, a propriedade fiduciária é um direito real em coisa própria"1. Partindo desta premissa de distinção entre a garantia real da hipoteca e a garantia da alienação fiduciária, a decisão ora examinada estabeleceu seu terceiro princípio lógico: "Como justificar a aplicação da súmula 308 do STJ à alienação fiduciária diante do tratamento normativo distinto conferido aos devedores de ambas garantias reais? Enquanto o devedor hipotecário detém a propriedade, o devedor fiduciante possui apenas a posse direta do imóvel, sendo, portanto, o negócio jurídico celebrado com terceiro de boa-fé ineficaz em face do proprietário do bem, o credor fiduciário.". 3º Axioma: Da venda A Non Domino A venda a non domino ocorre quando alguém vende a outrem um bem sem ser o seu legítimo proprietário. Segundo a doutrina de RODRIGUES, "em tese, a venda de coisa alheia é nula, pois ninguém pode alienar o que não é seu."2. O Devedor Fiduciante, ao vender, prometer vender ou ceder a terceiro o imóvel que alienou fiduciariamente, tornou ineficaz perante o proprietário e credor fiduciário o negócio jurídico entabulado, o que impede a aplicação por analogia da súmula 308, do STJ. Segundo a decisão em estudo, "se o devedor fiduciante, por contrato de promessa de compra e venda ou de cessão de direito, negocia com terceiro de boa-fé bem imóvel de propriedade do credor fiduciário, tal transação não afeta a alienação fiduciária devidamente registrada por escritura pública. Consequentemente, torna-se inviável aplicar o entendimento sumular.". 4º Axioma: A hipótese de exceção normativa para restringir a aplicação de regra jurídica válida Por fim, a decisão ponderou que na lei 9.514/97 há dispositivo que exige a anuência expressa do credor fiduciário para que o devedor fiduciante transmita para terceiros os direitos que detém sobre o bem imóvel alienado fiduciariamente. Segundo o raciocínio do julgado, não poderá a súmula 308, do STJ, que é uma exceção à regra geral do direito imobiliário sobre a prioridade registral - a hipoteca celebrada entre a incorporadora e a instituição financeira não tem eficácia perante os adquirentes que conseguiram crédito por intermédio do Sistema Financeiro da Habitação - ser aplicada de modo estendido ao instituto da alienação fiduciária, mas sim, e tão somente, aos casos de hipoteca. Em lógica, conclui o ministro relator Antonio Carlos Ferreira: Logo, seja pela inadequação de se estender a ratio decidendi da súmula aos casos não contemplados no SFH, seja por ausência de similaridade normativa entre os institutos, seja porque o negócio jurídico realizado por quem não é dono não produz efeito em relação ao proprietário fiduciário, ou mesmo pela impossibilidade de elastecer uma hipótese de exceção normativa para restringir a aplicação de regra jurídica válida, o fato é que a Súmula n. 308 do STJ não deve ser empregada nas hipóteses de alienação fiduciária. Portanto, as linhas de raciocínio representadas pelos quatro axiomas que servem de premissas estruturantes para o Julgamento de procedência do REsp 2.130.141/RS - e que também serviram para o julgamento do AREsp 2.315.164/RS - conduzem inequivocamente à conclusão de inaplicabilidade da súmula 308, do STJ, mesmo que por analogia, aos contratos de alienação fiduciária em garantia regidos pela lei 9.514/97. __________________ 1 CHALHUB, Melhim Namem. Negócio fiduciário. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 196 2 RODRIGUES. Sílvio. Direito Civil: Dos Contratos e das Declarações Unilaterais da Vontade. 24.ed. São Paulo: Saraiva, 1997, v. 3, p. 132.
O debate sobre os distratos imobiliários no Brasil, especialmente nas aquisições de imóveis ainda em construção, parece girar em torno de um único eixo: a proteção do consumidor. Sob essa ótica, o Poder Judiciário tem flexibilizado, de forma sistemática, as penalidades e os prazos para a restituição dos valores pagos ao incorporador, previstos nos contratos de compra e venda de imóveis quando do distrato. Tal postura, em evidente contraste com as disposições do art. 67-A da lei 4.591/1964, introduzido pela lei 13.786/18 (a chamada lei dos distratos), vem reforçando a percepção de um protecionismo irrestrito ao adquirente, mesmo quando isso se dá em afronta ao próprio contrato assinado e à própria legislação vigente. Essa premissa pode parecer justa sob o olhar do senso comum, mas será que é realmente eficiente à luz da AED - Análise Econômica do Direito? O referido art. 67-A da lei de incorporações imobiliárias institui um procedimento específico para disciplinar o desfazimento de contratos de aquisição de imóveis firmados exclusivamente com o incorporador. O dispositivo detalha as regras para a devolução das parcelas pagas, aplicando penalidades proporcionais e fixando prazos distintos para a restituição, conforme a existência ou não de patrimônio de afetação no empreendimento. Nos projetos com patrimônio de afetação, a penalidade pode chegar a 50% dos valores pagos, com devolução em até 30 dias após o "habite-se" ou a revenda da unidade. Nos casos sem patrimônio de afetação, a multa é limitada a 25%, e a devolução ocorre em até 180 dias após o distrato, salvo antecipação em caso de revenda. A norma busca garantir previsibilidade e equilíbrio contratual, assegurando a devolução de valores ao adquirente, mas preservando a viabilidade financeira dos empreendimentos e a proteção da coletividade de compradores adimplentes. Ocorre que, quando judicializados os desfazimentos contratuais no bojo de incorporações imobiliárias, o Poder Judiciário, mesmo após seis anos da entrada em vigor da lei dos distratos, desconsidera os ditames legais com que os compromissos são formulados e, com base no art. 413 do Código Civil brasileiro, reduz os patamares de multas e altera os prazos para a restituição das parcelas pagas aos adquirentes. Na Corte Paulista, há o entendimento, inclusive, de que "A multa/retenção de 50% para empreendimentos com regime de afetação de patrimônio sempre foi, e continuará sendo, abusiva."1. Nestes termos, a AED nos ensina que o Direito não pode ser avaliado apenas pelo viés moral ou distributivo. Ele deve ser examinado também sob a ótica dos incentivos e dos custos sociais que produz. Aparentemente, o Judiciário brasileiro tem desconsiderado esse aspecto essencial. Isso porque quando o comprador pode distratar o contrato com baixa penalidade e restituição antecipada dos valores pagos, cria-se um incentivo perverso: o contrato passa a ser tratado como uma escolha sem custo, como se o comprador pudesse decidir depois se quer ou não seguir no negócio, sem precisar pagar por essa possibilidade. O consumidor assume o contrato apenas se o mercado estiver favorável. Se o preço do imóvel cair ou se ele repensar sua decisão, pode desistir sem arcar devidamente com os custos econômicos dessa ruptura, deixando o ônus para o incorporador e, por extensão, para toda a cadeia produtiva e para os compradores adimplentes que permanecem no empreendimento. Essa é a essência do problema: o incentivo gerado por decisões judiciais contrárias à lógica contratual e à legislação específica desequilibra o mercado e impõe custos sociais relevantes. O aumento do risco contratual precisa ser compensado, e as incorporadoras o fazem elevando os preços dos imóveis ou restringindo o acesso ao crédito. A conta, no fim, recai sobre todos os consumidores, inclusive os que agem de boa-fé. Sob a ótica do Teorema de Coase, quando os direitos são bem definidos e as partes operam em um ambiente com custos reduzidos de transação, a tendência natural é que elas alcancem soluções eficientes por meio da negociação, independentemente da alocação inicial dos direitos. No mercado imobiliário brasileiro, no entanto, a intervenção judicial frequente nos distratos cria um ambiente de incerteza jurídica e desorganiza as expectativas das partes. Ainda que os custos de transação diretos não sejam necessariamente elevados, dado que a jurisprudência já define o padrão de alocação de riscos, o efeito mais relevante está nos incentivos criados para comportamentos oportunistas por parte dos compradores, que passam a internalizar a possibilidade de rescisão vantajosa como parte da estrutura do contrato. Esse ambiente desestimula a alocação eficiente de recursos, eleva os riscos sistêmicos e, paradoxalmente, prejudica o próprio consumidor que se pretende proteger. Em situações como a aqui analisada, decisões judiciais que alteram a distribuição contratual de riscos e encargos tendem a ser ineficientes, pois desorganizam o mercado ao invés de proteger, de fato, o grupo social que se busca amparar. Mais grave ainda: ao desconsiderar as regras do referido art. 67-A, o Judiciário ignora que a penalidade para o distrato foi calibrada para proteger não apenas as incorporadoras, mas a coletividade de adquirentes adimplentes. O mercado imobiliário, sobretudo em empreendimentos submetidos ao patrimônio de afetação, depende do cumprimento contratual para manter o fluxo de caixa saudável, e para assegurar a entrega das unidades. Foi com base nessa sistemática que se criou a regra de devolver as parcelas pagas somente após a conclusão das obras afetadas, a fim de preservar o fluxo financeiro do patrimônio de afetação, pois é dele que sairá o valor das restituições a serem feitas aos adquirentes que distratarem. Quando muitos são os distratos judicializados, faltará recursos no caixa do empreendimento, e isso poderá atrasar a entrega das construções, quando não levar a incorporação a um cenário de completo déficit financeiro. É importante ressaltar que, segundo estudos da AED, a imposição de penalidades adequadas ao rompimento de contratos não tem caráter meramente punitivo, mas é um mecanismo de precificação eficiente dos riscos. Quando o custo do distrato é reduzido artificialmente por intervenção judicial, o mercado perde a capacidade de internalizar esses riscos. O resultado é um ambiente de incentivo ao oportunismo e à contratação irresponsável. Em crises econômicas, como a vivenciada a partir de 2014, esse desequilíbrio ficou evidente: altos índices de distratos, falências de incorporadoras, paralisação de obras e milhares de compradores adimplentes prejudicados. É um ciclo destrutivo que pode ser mitigado respeitando-se integralmente as penalidades legais. O Judiciário precisa reconhecer que, sob a ótica da AED, a proteção desproporcional do consumidor individual pode gerar efeitos adversos para toda a coletividade. O excesso de tutela cria incentivos oportunistas e compromete a eficiência do mercado, aumentando os riscos e afetando a precificação dos contratos. O custo dessa desorganização não é isolado: ele é socializado, com imóveis mais caros, menor oferta e maior insegurança jurídica para todos os agentes envolvidos. O Teorema de Coase nos lembra que mercados eficientes dependem de um ambiente previsível, no qual as partes possam negociar racionalmente. A segurança jurídica, portanto, não é um obstáculo à proteção do consumidor, é justamente o que garante um mercado mais acessível, estável e benéfico para todos. ________ 1 TJ/SP, Apelação Cível 1018599-32.2021.8.26.0002, julgada em 31/08/2022, Relator Desembargador Ferreira da Cruz, V. U. ________ NOVO, Márcia Giangiacomo Bonilha. Poque a penalidade prevista no art.67-A da lei 4.591/64 deve ser inexorável? In: LOPES, Nathalia Lima Feitosa; SAMMI, Priscila Mie Gomes (coord.). Incorporações imobiliárias - estudos aplicados. São Paulo: Almedina, 2024, pgs. 142 a 166. PORTO, Antônio M.; GAROUPA, Nuno. Curso de Análise Econômica do Direito. Rio de Janeiro: Atlas, 2021. E-book. Pgs. 181 a 204. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786559771394/. Acesso em: 29 jun. 2025.
Estamos sempre debatendo no país - e isso é positivo - a produção de novas leis, a atualização de códigos, o estabelecimento de marcos regulatórios. Por vezes se promulgam regras enlouquecedoras, em outras oportunidades a sociedade ganha com normas atualizadas. Atualmente discute-se, por ilustração, a atualização do CC de 2.002, propondo-se a alteração de mais de 1100 artigos, dos 2046 atualmente vigentes; somente com o tema da locação urbana, tramitam mais de 200 projetos no Congresso Nacional; assembleias estaduais e câmaras municipais discutem uma enormidade de projetos. Fazer lei é tarefa difícil, fazer boa lei é tarefa hercúlea. Por isso é conveniente examinar o resultado de leis existentes, colocando sob lente de aumento e nos perguntando: a norma atendeu o que nela se buscava? Teve serventia? E sob o mesmo prisma, pensemos na leis em produção, nos projetos que tramitam. Examinemos com esse objetivo o CPC de 2015 com relação aos condomínios edilícios. Se tiver trazido melhoria, merecerá aplauso; se o resultado for insosso ou ruim, acolhamos as lições. Propõe-se, aqui, a avaliação com base na métrica que se mostra hoje essencial: o tempo que corre entre o problema e a sua solução. Sim, em condomínios o principal desafio sempre esteve em como obter satisfação em tempo razoável do primeiro dos deveres do condômino: "contribuir para as despesas de condomínio", na letra do art. 1.336 - I, do CC. Em condomínios edilícios é notória a convulsão gerada pelo descumprimento do dever de pagar a cota de despesas. Recorde-se: anos se passavam com o inadimplente usando a piscina, festejando no salão, guardando o carro na garagem, subindo de elevador, treinando na academia. São direitos que o condômino inadimplente tem (assunto para outra oportunidade), mas que são de complicada compreensão aos não versados nas leis e compreensões jurisprudenciais. Dado o espraiamento do problema e das suas consequências entre tanta gente (são comuns os prédios com mais de 1000 usuários, todos abalados por qualquer questão comezinha no condomínio; torna-se viciosa a repetição das questões em todos os condomínios brasileiros), a velocidade da solução é tema primordial. Ignorar essa pressa é ofender enorme parcela da sociedade. Neste quadro (é da velocidade na distribuição das soluções justas que se cogita) o Código de 2.015 (Lei 13.105/15, de 16/03/2015) foi recebido com forte dose de esperança. Em vista da imprescindível celeridade, a primeira alteração importante foi a inserção, dentre os títulos executivos, do "crédito referente às contribuições ordinárias ou extraordinárias de condomínio edilício, previstas na respectiva assembleia geral, desde que documentalmente comprovadas". Com esta previsão passaram a ser economizados anos (senão décadas) de tramitação de processos judiciais que sempre foram muito danosos ao Condomínios e até - injustamente no mais das vezes - à reputação de síndicos e administradores, que não eram culpados pela lentidão judicial. Eram abundantes as situações em que o débito amontoado era maior do que o valor da unidade geradora das despesas, a demonstrar quanto tardava a solução da cobrança judicial. Embora a base legal (senão moral) da cobrança das contribuições sempre tenha sido pacífica, tal não impedia o arrastar dos processos judiciais. Isso se dava não apenas devido às carências da estrutura do Poder Judiciário, mas porque, se é verdade que a lei previa que a ação de cobrança tramitasse pelo "procedimento sumário" (espécie do gênero "procedimento comum", criada em prol da redução do tempo de trâmite do processo), também era verdade que de sumário (ou rápido) esse procedimento nada tinha. Lembre-se que a alteração em 2015 retratou um retorno à previsão que existia na lei 4.591, de 1964, tendo sido a "via executiva" afastada em 1973, quando o Código de então impôs que as cobranças fossem feitas através do "procedimento sumário", notoriamente moroso, nada sumário. Portanto, ponto para os condomínios: as cobranças passaram a ser mais ligeiras e o que tardava até dez anos, tem demorado, em São Paulo, cerca de um ano. Segundo destaque: quando os problemas não forem resolvidos adequadamente é fortíssimo o prestígio que a nova legislação dá à rapidez dos processos judiciais: o art. 4º proclamou o "direito de obter em prazo razoável a solução integral"; n'outro momento a lei previu a alteração do procedimento judicial pelas partes (partes de boa fé certamente aproveitarão essa previsão), melhorando-o; está prevista a validade de atos processuais que atinjam a sua finalidade, mesmo que não realizados com a exatidão prevista na lei; o "negócio processual" é válido, aos poucos tem sido integrado às convenções de condomínio, ara a simplificação do desate dos problemas. Terceiro destaque, sempre mirando a presteza na solução dos litígios: foram realçadas, na boa trilha já traçada há anos pela lei processual anterior, as "tutelas antecipadas", fundadas em urgência ou evidência, aquela concedida quando se mostrar que a demora porá em risco o resultado útil do processo judicial e esta, a de evidência, quando a comprovação da alegação for completa e documental já no início do processo, quando a questão tiver sido objeto de súmula vinculante ou de julgamento de casos repetitivos. Essas "tutelas antecipadas" podem tornar o processo judicial em instrumento realmente útil para a supressão de situações ilegais e têm sido aplicadas, por exemplo, para afastar maus usos da unidade ou da área comum, ou para impedir construções ou demolições ilegais.  Quarto recorte relevante: o prestígio aos métodos alternativos de solução de conflitos (especialmente a conciliação e a mediação), tão apropriados às questões de condomínio: um debate sobre tema de gestão, a programação ou a alteração de determinada obra no prédio não necessariamente exige a presença do Estado-Juiz; o parcelamento a um devedor ocasional (quem poderá se declarar imune a revés financeiro?) pode ser bem resolvido entre pares; a imposição de comportamentos razoáveis pode ser definida, podendo ser estipuladas as penas consensuais, sem a invocação do Judiciário. São soluções mais ágeis, melhores porque resultantes do consenso, evidentemente mais econômicas. Se pouco, essa opção legal pela solução ao invés do litígio (a tradução legal do dito popular: quer ter razão ou ser feliz?) tem conseguido inspirar tais práticas nos condomínios, motivando mais e mais adaptações das convenções nesse sentido. São várias as previsões bem-intencionadas da nova legislação, são muitos os aspectos que ainda desafiarão enormes discussões. Mas, o privilégio à celeridade processual é inequívoco e, certamente, os condomínios ganharam com o Código, permitida a entrega da Justiça a milhões de condôminos. Nesse universo, a esperança se realizou.
Fundamentos da análise econômica do direito Partindo do pressuposto de que o homem racional está em busca dos seus próprios interesses, de maximizar seus benefícios com o menor custo possível, e que, portanto, a economia é, como leciona Richard Posner, a ciência das escolhas racionais num mundo em que os recursos são limitados em relação aos desejos humanos1, a análise econômica do direito busca trazer um novo olhar sobre o atual sistema jurídico a fim de que as normas existentes e as relações a elas submetidas sejam analisadas e interpretadas de forma mais eficiente, a partir de critérios econômicos. Uma das definições de "eficiência" mais utilizadas na economia é a de Kaldor-Hicks, segundo a qual determinada ação/norma/política pública é eficiente se o benefício total por ela gerado for superior ao custo total2. A ideia é "aumentar o tamanho do bolo" (maximização da riqueza), sem que haja necessariamente uma compensação efetiva. As externalidades, por sua vez, são, de acordo com Vasco Rodrigues3, os custos ou benefícios gerados por determinada atividade que impactam terceiros e não estão relacionados com o sistema de preços. Se a atividade impõe custos, produz uma externalidade negativa; se impõe benefícios, a externalidade será considerada positiva. Para o autor, a função do direito é, na perspectiva econômica, "evitar que a existência de externalidades impeça a obtenção de resultados socialmente eficientes"4. As normas jurídicas ou políticas públicas devem incentivar atividades que gerem externalidades positivas e desestimular aquelas das quais decorram externalidades negativas. O chamado "imposto seletivo" que a reforma tributária busca implementar é um claro exemplo de norma criada para desincentivar a venda de produtos que fazem mal à saúde, como bebidas alcóolicas, cigarros ou produtos que causam danos ao meio ambiente. O economista Ronaldo Coase, considerado um dos fundadores da AED, ao desenvolver o famoso teorema que se tornou conhecido como "Teorema de Coase", defende que, embora muitas vezes a intervenção estatal seja necessária para evitar as externalidades negativas, em outras situações, tal intervenção pode, na verdade, impedir que sejam atingidos resultados eficientes5. Para ele, o resultado só é eficiente quando acarreta o menor custo possível6. Coase defende que, quando os custos de transação são zero, os resultados são eficientes, pois não haveria qualquer dificuldade no rearranjo dos direitos inicialmente estabelecidos legalmente. No entanto, o próprio Coase7 reconhece que a suposição de que os custos de transação nas operações mercantis são zero é irrealista, tendo em vista as diversas etapas envolvidas em tais operações, tais como custos de negociação, custos de informação, custos para elaboração do contrato, custos de garantia de cumprimento do contrato, dentre outros. Os elevados custos de transação podem muitas vezes impedir a negociação e, com isso, os casos são levados ao judiciário para serem resolvidos por um terceiro (juiz) que atua em nome do Estado. Coase8 ilustra a atuação equivocada do Estado nas resoluções de conflitos ao relatar casos judiciais diversos em que entende não ter havido uma solução eficiente, e defende que os juízes devem levar em consideração as consequências econômicas de suas decisões. Os equívocos praticados pelo judiciário ocorrem também na interpretação dos contratos, sendo que muitas vezes o conflito é resolvido judicialmente de forma diversa do que era inicialmente a intenção das partes quando da elaboração do instrumento. Soma-se a isto os elevados custos envolvidos em eventual judicialização das relações contratuais, como, por exemplo, os custos incidentes para a contratação de advogados, as custas judiciais, os custos para a produção de provas e pareceres, dentre outros. Assim, num mundo em que as transações e litígios são custosos, revela-se essencial que os contratos sejam redigidos de forma consciente e estratégica, de modo que as responsabilidades, os riscos e os custos sejam alocados de acordo com a vontade das partes no momento da contratação, bem como levando em consideração a realidade econômico-social do contexto no qual o contrato está sendo celebrado. Nesse sentido, a teoria do design contratual, desenvolvida pela doutrina norte-americana e ainda pouco explorada no Brasil, fornece mecanismos para que os operadores do direito saibam definir, caso a caso, a forma mais adequada de redação contratual a partir de parâmetros econômicos, a fim de que eventuais litígios sejam resolvidos da forma mais eficiente. A referida teoria divide os custos envolvidos na transação entre: front-end costs, que ocorrem antes da celebração do contrato e nele estão incluídos os custos para antecipar as futuras contingências e as consequências advindas de cada uma delas; e back-end costs, que se referem aos custos incidentes para uma eventual execução do contrato e inclui, por exemplo, os custos para provar a ocorrência ou não de determinado fato9.   Mais precisamente, front-end costs correspondem aos custos de transação e back-end costs correspondem aos custos de execução contratual10. A escolha quanto à alocação dos investimentos das partes na contratação (se no front-end ou back-end) deve ocorrer de forma estratégica, visando aumentar o valor da transação ou gerar incentivos para que as obrigações sejam cumpridas quando o cumprimento for eficiente11. Analluza Bravo Bolivar afirma que, na teoria do design contratual, o contrato é comparado a um software, pois, através do "perfil da redação e da linguagem utilizada no contrato - vaga ou precisa", regula as contingências, aloca os riscos e define o meio de resolução de eventuais conflitos12. É certo que, quanto mais clara e precisa estiver a redação do contrato, quanto mais situações estiverem reguladas contratualmente de acordo com a vontade inicial das partes, menos espaço haverá para a intervenção judicial; por outro lado, mais custos de transação incidirão nesta etapa inicial, tendo em vista as partes já deverão negociar as consequências decorrentes de contingências que podem, inclusive, nunca vir a se concretizar e desnecessariamente dificultar o fechamento do negócio, de modo que, mesmo no caso de situações previsíveis, há casos em que a sua regulação em contrato não se justifica. Já a utilização de uma redação mais vaga, imprecisa, deixa margem para que haja mais discricionariedade do juiz na interpretação do contrato, mas, ao mesmo tempo, transferem os custos para a parte final do negócio (execução do contrato), na medida em que as consequências decorrentes de eventuais litígios não foram previamente reguladas em comum acordo entre as partes e serão resolvidas a partir de parâmetros de interpretação estabelecidos pela lei ou, na sua ausência, pelo juiz. Para a teoria do design contratual, a escolha entre termos vagos ou precisos pelas partes se baseia na "expectativa de adimplemento esperado por elas"13. A ideia é que o contrato preveja tanto termos vagos quanto precisos, cabendo às partes, a partir da análise das circunstâncias, dos ganhos gerados pelos incentivos, dos custos de transação incidentes, da probabilidade de ocorrência de determinada contingência, definir quais hipóteses devem ser reguladas de forma mais precisa e quais devem ser reguladas de modo mais vago. A forma proposta pela teoria do design contratual para reduzir a discricionariedade do judiciário na interpretação de termos vagos previstos no contrato, como "melhores esforços", "despesas razoáveis", é a definição de parâmetros de interpretação na parte inicial da contratação através de termos precisos (front-end costs). Dessa forma, o presente artigo parte da premissa de que um contrato eficiente é aquele estruturado visando a prevenção de conflitos, mitigação de riscos, redução de custos e regulação de possíveis situações futuras, deixando bem definidos e claros os direitos, responsabilidades e riscos assumidos por cada parte e estipulando as consequências desejadas em cada situação, trazendo, assim, de comum acordo, soluções eficientes para ambas as partes sem a necessidade de intervenção judicial. Clique aqui e confira a coluna na íntegra.  __________ 1 POSNER,  Richard A. The Nature Of Economic Reasoning, chapter 1 from Economic Analysis of Law (4th ed. 1992). In: DAU-SCHIMIDT, Kenneth G; ULEN, Thomas Shahan (Orgs.). Law and Economics Anthology.  Cincinnati: Anderson Publishing Company, 1998, p.1-2. 2 Ibidem. p. 10. 3 RODRIGUES, Vasco. Análise Econômica do Direito: Uma introdução. Coimbra: Almedina, 2016. 2ª Ed, p. 39. 4 Ibidem. p. 40. 5 Ibidem. p. 43. 6 Ibidem. p. 44. 7 COASE, Ronald. The Problem of Social Cost. Journal of Law and Economics, Vol. 3 (Oct., 1960), p. 15. 8 Ibidem. p. 19 9 Robert E. Scott & George G. Triantis, Incomplete Contracts and the Theory of Contract Design, 56 CASE W. RES. L. REV. 187 (2005). p. 190. 10 SCOTT, Robert E. and TRIANTIS, George G. Antecipating Litigation in Contract Design, 115 Yale Law Journal 814 (2006), p. 823.  11 "Parties thus incur contracting costs to improve the efficiency of incentives in their relationship, particularly the incentive to perform when it is efficient to do so and the incentive to make efficient investments that enhance the value of their exchange" (SCOTT, Robert E. and TRIANTIS, George G. Antecipating Litigation in Contract Design, 115 Yale Law Journal 814 (2006), p. 823). 12 BOLIVAR, Analluza Bravo. A teoria do "design" contratual: sua aplicabilidade face às regras de interpretação do contrato no Brasil. In: Revista de Direito Empresarial: ReDE, São Paulo, V. 4, n. 18, p. 03. 13 Ibidem. p. 05.
O presente texto procura compatibilizar o disposto no parágrafo único do art. 618 do CC1 com o entendimento que vem sendo adotado na jurisprudência, sobretudo do STJ. Salvo melhor juízo e nos termos do que passa a comentar tal posicionamento jurisprudencial altera, para dizer mínimo, o conteúdo expresso da regra legal o que torna necessário a repristinação de tal regra. Senão vejamos. É que a referida Corte Superior possui julgados no sentido de que, mesmo após a publicação do atual Código de Civil, não haveria prazo especial para a prescrição da pretensão indenizatória decorrente de vícios ocultos nos contratos de empreitadas no ordenamento jurídico vigente e, por conta disso, dever-se-ia aplicar a regra geral do art. 205 do CC. Nesse sentido: "DIREITO CIVIL E DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS E COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. DEFEITOS APARENTES DA OBRA. PRETENSÃO DE REEXECUÇÃO DO CONTRATO E DE REDIBIÇÃO. PRAZO DECADENCIAL. APLICABILIDADE. PRETENSÃO INDENIZATÓRIA. SUJEIÇÃO À PRESCRIÇÃO. PRAZO DECENAL. ART. 205 DO CÓDIGO CIVIL. 1. Ação de obrigação de fazer cumulada com reparação de danos materiais e compensação de danos morais. (...) 6. Quando, porém, a pretensão do consumidor é de natureza indenizatória (isto é, de ser ressarcido pelo prejuízo decorrente dos vícios do imóvel) não há incidência de prazo decadencial. A ação, tipicamente condenatória, sujeita-se a prazo de prescrição. 7. À falta de prazo específico no CDC que regule a pretensão de indenização por inadimplemento contratual, deve incidir o prazo geral decenal previsto no art. 205 do CC/02, o qual corresponde ao prazo vintenário de que trata a súmula 194/STJ, aprovada ainda na vigência do CC de 1916 ('Prescreve em vinte anos a ação para obter, do construtor, indenização por defeitos na obra'). 8. Recurso especial conhecido e parcialmente provido" (STJ, REsp n. 1.721.694/SP, Terceira Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 3/9/2019, DJe. 5/9/2019). Ocorre que o entendimento exarado em diversos julgados que se calcaram no referido precedente, ao não se debruçarem nas particularidades do contrato de empreitada, acabam por ignorar a existência do prazo quinquenal de garantia da obra (art. 618 do CC), aplicando apenas o prazo prescricional decenal2 para ajuizamento da ação indenizatória contado da verificação do vício da obra. Em vista disto, e tal como mais abaixo será referido, a mais adequada intepretação das normas acima mencionadas deve se dar por intermédio da distinção entre o prazo pelo qual o empreiteiro poderia/deveria responder por eventuais vícios da obra (seja ele entendido como prazo decadencial ou garantia) e o prazo prescricional da ação indenizatória no âmbito dos contratos de empreitada.   Para compreender o que se pretende propor, imprescindível definir o que representa o prazo quinquenal previsto no referido dispositivo. Conforme ensina a melhor doutrina, referido prazo corresponde ao prazo decadencial (salvo melhor entendimento) pelo qual o empreiteiro responde por eventuais vícios após a aceitação da obra e que excetua a regra geral de cessação da responsabilidade do empreiteiro com o aceite da obra. Nesse sentido: "Ao lado das características apontadas, quais sejam, porte, durabilidade, finalidade, úteis para a construção do conceito, a possibilidade de risco para o ser humano destaca-se, por constituir a razão de ser da garantia legal. A relevância do motivo autoriza a projeção da responsabilidade do empreiteiro além elos limites temporais do contrato, virtualmente extinto, eis que entregue e aceita a obra, constituindo uma exceção à regulamentação comum (Serpa Lopes, Curso, p. 220). (...). Estabeleceu o CC aqui uma exceção à regra de que cessa, com a aceitação ela obra, a responsabilidade elo empreiteiro (Clovis Bevilaqua, CC, p. 352). É uma responsabilidade excepcional, que só se aplica às empreitadas mistas, para execução de obras consideráveis, terminadas e já recebidas; a responsabilidade no curso da obra é regulada pelo art. 611 (v. comentário). De acordo com a regra geral, após a aceitação da obra, o dono não mais pode agir contra o construtor, com fundamento na imperfeição do trabalho (Carvalho Santos, CC pp. 347-352). O que há de incomum é a projeção da responsabilidade além dos limites temporais do contrato (Serpa Lopes, Curso, pp. 220-221). (...) A responsabilidade quinquenal elo empreiteiro foi estabelecida para proteger o dono ela obra contra os vícios ele construção que só o tempo permite descobrir, excluindo, portanto, os aparentes" (TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA. Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, 2ª ed., Vol. II Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 361/362). *** "Sendo prazo extintivo de garantia, é decadencial, segundo a doutrina e jurisprudência amplamente dominantes. Destarte, esse prazo, por sua índole, não admite transação, mas, se não é dado às partes restringi-lo, podem distendê-lo, porque instituído em benefício do dono da obra (MEIRELLES, 1979, p. 255). (...) Desse modo, se durante os cinco anos não ocorrer nenhum vício, estará exonerado o construtor" (VENOSA, Sílvio de Salvo. Código civil interpretado. 3ª ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 822). *** "O prazo de cinco anos a que se refere o caput do supracitado artigo é de garantia legal do produto. O efeito jurídico dessa regra é a de criar uma responsabilidade presumida para o empreiteiro que, independentemente de culpa, assume o risco de que, durante o referido período de tempo, o dono da obra terá à sua disposição uma edificação sólida e segura. Ressalte-se que a lei faz referência expressa à irredutibilidade do prazo, deixando claro que se trata de norma cogente, sendo nula de pleno direito cláusula que preveja a diminuição do prazo de garantia da obra" (SCHREIBER, Anderson; TARTUCE, José Fernando Simão;  BEZERRA DE MELO, Marco Aurélio; DELGADO, Mário Luiz. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 1.1161. E-book). *** "Na jurisprudência, cristalizou-se a orientação de que estes cinco anos caracterizam (...) um prazo de garantia, de maneira que, aparecendo neste período uma ocorrência, esta é passível de ser imputada ao construtor/incorporador, independentemente de o comprador provar a culpa do 'contratado', Esta generalização pode ser afastada na hipótese de se provar que foi o mau uso da edificação, ou a falta de manutenção, que deu ensejo ao problema" (PUOLI, José Carlos Batista. Vícios Construtivos. In BORGES, Marcus Vinícius Motter (coord.). Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 1ª ed., 2021, p. 628/629). Ou seja, apesar de alguma imperfeição de redação, s.m.j., o art. 618 do CC positiva dois prazos distintos, a saber: i) o prazo decadencial quinquenal pelo qual subsiste após o aceite da obra a responsabilidade do empreiteiro e; ii) o prazo prescricional decenal para que, após o surgimento de um vício oculto, o dono da obra pleiteie sua respectiva indenização. Analisando o tema, Gustavo Tepedino; Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes, calcados nas lições de Clóvis Bevilaqua, defendem que: "A natureza do prazo de cinco anos (se prescrição ou decadência) é questão imbricada com a da responsabilidade. Clovis Bevilaqua formula a dúvida: 'O prazo de responsabilidade para o empreiteiro é o mesmo da ação do proprietário?' (CC, p. 352). Registrando a omissão do CC1916, o autor se inclina pela aplicação do direito comum, entendendo que a ação do proprietário terá o prazo geral, contado do momento em que se verificar a falta de solidez ou de segurança ela obra. Este também o entendimento de Carvalho Santos (CC, p. 348) e de Teresa Ancona Lopez (Comentários, p. 294). Há, portanto, dois prazos distintos e independentes: o de cinco anos, a contar da entrega da obra, para aparecimento do defeito, e o prescricional, para a ação do dono da obra (TJRJ, 24.05.2001, Ementário 16/2001, n. 10; TJRJ, 7ª C.C., Ap. Cív. 200000114054, Rel. Des. Carlos C. Lavigne de Lemos, julg. 6/2/2001)" (TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA. Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, 2ª ed., Vol. II Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 365/366). No mesmo sentido, Maria Helena Diniz e Nery Nery Jr. e Rosa Maria Nery, analisando entendimento jurisprudência da 3ª turma do col. STJ: "O construtor responde pelo prazo de garantia de cinco anos e o dono da obra tem o prazo decadencial de cento e oitenta dias para reclamar do problema surgido no prazo de garantia. Se o defeito aparecer quatro anos depois da entrega, o dono da obra terá cento e oitenta dias para reclamar da imperfeição por falta de solidez, inclusive do material, e segurança da obra,. visto que o vício se verificou no prazo de garantia de cinco anos, contado da entrega da obra" (DINIZ, Maria Helena. Código civil anotado. 17ª ed., São Paulo: Saraiva, 2014, p. 527). *** "Distinção entre a responsabilidade do construtor, com fundamento no CC/1916 1245, que podia ser demandada no prazo de 20 anos (STJ 194), desde que o conhecimento dos problemas relacionados à solidez e segurança da obra transparecessem nos cinco anos seguintes à sua entrega. O termo inicial do prazo prescricional é a data do conhecimento das falhas construtivas. Afastamento da pretensão de prescrição, diante do reconhecimento da possibilidade de o recorrido demandar a construtora recorrente com fundamento no CC 1056, comprovada a prática do ilícito contratual, consistente na má-execução da obra (Enunciado 181 da III Jornada de Direito Civil do STJ) (STJ, 3.ª T., REsp 903771-SE, rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 12.4.2011, v.u., DJU 27/4/2011)" (NERY JR., Nelson Nery; NERY, Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade. Código Civil Comentado. 1ª ed. em e-book baseada na 11ª ed. impressa. São Paulo: Revista dos Tribunais,  2024, p. 1.354). Aliás, este entendimento era inclusive adotado por Hely Lopes Meireles e Pontes de Miranda, citados diversas vezes nos julgados eleitos para a elaboração da súmula 194 do STJ3. Confira alguns trechos dos precedentes angulares do entendimento sumular4. Trecho do voto do min. Fontes de Alencar, relator do REsp. 1.473/RJ (89.0012020-4): "Este artigo estabelece prazo de cinco anos para a ocorrência da irregularidade na obra (solidez e segurança), sendo que o prazo para a propositura da ação é de vinte anos a contar do dia em que surgiu o defeito. Sobre o tema, assim professa HELY LOPES MEIRELES (Direito de Construir - Responsabilidade de Construção, p. 244), Desde que a falta de solidez ou de segurança da obra apresente-se dentro de cinco anos de seu recebimento, a ação contra o construtor e demais participantes do empreendimento subsiste pelo prazo prescricional comum de 20 anos, a contar do dia em que surgiu o defeito. De igual modo salienta PONTES DE MIRANDA (Tratado de Direito Privado, Vol. 44, p. 405), O art. 1.245 do CCnão estabeleceu prazo preclusivo para se acionar o empreiteiro (5ª Câmara Cível do Tribunal de Apelação do Distrito Federal, 04 de junho de 1940. A.J., 55, 50 s.). O empreiteiro é responsável, durante cinco anos, contados da entrega, pela solidez e segurança da obra, assim em razão dos materiais como do solo, exceto, no tocante a esse, se, não o achando firme, preveniu em tempo o dono da obra. A prescrição é a ordinária. Nessa mesma linha se filiam CARVALHO SANTOS, AGUIAR DIAS, EMANUEL SODRÉ, LAUDO DE CAMARGO, entre outros. Sem dúvida, manifestado o defeito da construção no qüinqüênio decadencial (art. 1.245, do CC), e isto ficou comprovado na decisão de 1ª instância (fl. 453), a ação reparatória, a partir daí, poderá ser proposta no prazo comum vintenário". Trecho do voto do min. Sálvio de Figueiredo, relator do REsp. 5.522-MG (90.0010263-4): "Há os que se colocam em posição diferente, por entenderem que a previsão contida no art. 1.245 do CC diz respeito à garantia pela construção. É de se aceitar esta última como a mais consentânea com o preceito desenvolvido pelo dispositivo acima. Ela leva a concluir que a responsabilidade do empreiteiro pela construção se fixa no momento em que qualquer vício oculto da obra venha manifestar-se exteriormente, dentro do prazo de cinco anos. O direito à ação fica, pois, condicionado ao surgimento do defeito dentro deste período. O evento danoso funciona, nesta condição, como fato gerador do direito à tutela jurisdicional. A partir da sua ocorrência, passa-se a contar o prazo prescricional. Não há, por conseguinte, que se falar em decadência. (...) Para a corrente majoritária, no entanto (M.I. Carvalho de Mendonça, Pontes de Miranda, Hely Lopes Meirelles, Washington de Barros Monteiro, Serpa Lopes e Aguiar Dias, dentre outros), o prazo do referido artigo seria apenas de garantia, dentro do qual deverá ocorrer o vício. Verificado esse, tem início o prazo prescricional ordinário, de vinte anos. A jurisprudência inclina-se nesse sentido. ('Revista Jurídica Mineira', 30/75).(...) Na mesma linha de entendimento, doutrina o saudoso e autorizado Hely Lopes Meireles, in 'Direito de Construir', RT, 1961, p. 319-320: O prazo quinqüenal é de garantia e não de prescrição, como erroneamente se tem dito em alguns julgados. Desde que a falta de solidez ou de segurança da obra se apresente dentro de cinco anos da conclusão dos trabalhos, a ação para efetivar a responsabilidade do construtor persiste pelo prazo comum de vinte anos, que é o da prescrição ordinária (CC, art. 177), a contar do dia em que surgiu o defeito dentro do quinquênio legal (STF RF 127/433 - TJ/SP 178/789 - 275/352). Recebida a obra, permanece ela como que em observação por cinco anos, sem admitir interrupção ou suspensão desse prazo, visto que não se trata de lapso prescricional, como já advertimos de início. Trata-se de prazo extintivo da garantia. Se durante este tempo a construção não apresentar vício ou defeito que afete a sua estabilidade ou comprometa a sua estrutura, fi cará o construtor exonerado de responsabilidade perante o proprietário e seus sucessores". Dessa forma, é indubitável a lógica da redação legal que procurou: i) excetuar a regra da cessação da responsabilidade do empreiteiro, na empreitada mista5, quando da entrega do aceite da obra; ii) estabelecer o prazo decadencial quinquenal de garantia legal, o qual corresponde ao prazo pelo qual o empreiteiro responde pelo surgimento de vícios na obra e; iii) estabelecer prazo diverso prescricional6 (apesar da redação "decai") para a propositura da demanda indenizatória contados da verificação do vício oculto. Aludida construção, inclusive, não é novidade no direito brasileiro. Em lógica semelhante, cita-se o regime das ações de responsabilidade dos administradores das sociedades. No regime jurídico das sociedades, o administrador da sociedade responde pelos atos cometidos durante o período de sua gestão (art. 158 da LSA). Na empreitada, por sua vez, o empreiteiro responde por seus atos durante o período  de execução da obra (art. 611 do CC). A aprovação das contas do administrador acarreta sua exoneração de responsabilidade (art. 134, §3º, da LSA). De modo semelhante, o aceite da obra exonera o empreiteiro de sua responsabilidade pelos vícios aparentes (art. 615 do CC). No que se refere ao prazo prescricional para o ajuizamento da ação indenizatória decorrente de dano, há uma diferença crucial entre os dois regimes, o que justifica a fixação de um prazo decadencial de garantia na empreitada. Explica-se. Na ação de responsabilidade dos administradores, aplica-se o prazo prescricional de 3 (três) anos desde a ocorrência do ato lesivo7. Trata-se, portanto, de aplicação da teoria da actio nata em sua vertente objetiva8, na qual o prazo prescricional começa a correr independentemente da ciência da sociedade9. No caso do empreiteiro, porém, o dono da obra dispõe de 10 anos (tema ainda debatido na doutrina) para ajuizar a ação dos direitos decorrentes de vício de solidez e segurança da obra10 desde a sua identificação dentro do prazo de garantia. Aqui, aplica-se a teoria da actio nata em sua vertente subjetiva, pois o prazo prescricional somente começa a contar quando o dono da obra toma ciência do vício11. Exatamente por ser um caso de actio nata subjetiva - no qual a prescrição se inicia apenas com a descoberta do defeito -, o legislador sabiamente determinou um prazo máximo dentro do qual o vício pode se manifestar e, consequentemente, dentro do qual o empreiteiro pode ser responsabilizado. Essa limitação temporal tem um propósito evidente: evitar que o empreiteiro responda indefinidamente ("ad aeternum") por vícios construtivos da obra. Afinal, caso contrário, a atividade econômica da construção civil se tornaria insustentável. Por essa razão, foi estabelecido um prazo específico de 5 anos após o aceite da obra, durante o qual o empreiteiro ainda pode ser responsabilizado por eventuais vícios que surjam nesse período (art. 618 do CC). Assim, embora o vício possa aparecer após a exoneração do empreiteiro, a lei impõe um limite temporal dentro do qual ele ainda pode ser responsabilizado. Trata-se de uma regra que equilibra a proteção do dono da obra (teoria da actio nata subjetiva) com a necessidade de segurança jurídica para o empreiteiro. A lógica é evidente: na empreitada, a garantia de 5 anos impede que o empreiteiro seja responsabilizado eternamente; já na administração societária, não há necessidade dessa limitação temporal, pois a ação contra o administrador prescreve independentemente de a sociedade "jamais" perceber o dano. Graficamente:   Administrador (Lei das S.A.) Empreiteiro (Código Civil) Responsabilidade durante o período de atuação O administrador da sociedade responde pelos atos cometidos durante o período de sua gestão (art. 158 da Lei das S.A.). O empreiteiro responde pelos atos praticados durante a execução da obra (art. 611 do Código Civil). Termo da Exoneração da Responsabilidade A aprovação das contas pela assembleia geral, em regra, exonera o administrador (art. 134, §3º, da Lei das S.A.). O aceite da obra pelo dono da obra, em regra, exonera o empreiteiro (art. 615 do CC). Prazo de garantia legal (decadencial) Não há - teoria da actio nata em sua vertente objetiva, não é necessário, uma vez que o decurso da prescrição da ação independe da ciência do lesado. 5 anos após a entrega da obra - teoria da actio nata em sua vertente subjetiva que atraí a necessidade de uma limitação temporal para que ocorra o surgimento do vício (art. 618 do CC). Prazo para ajuizar a ação (prescricional) 3 anos a partir da ocorrência do dano à sociedade (art. 287, II, "b", 2 da Lei das S.A.).   10 anos, segundo parte da doutrina e jurisprudência, a partir da ciência do vício pelo dono da obra (art. 205 do CC). Conclusão O dano causado pelo administrador deve ser identificado dentro do prescricional de 3 anos da ocorrência do dano, caso contrário, o direito de ação estará prescrito. O vício na obra deve ser identificado dentro do prazo de garantia de 5 anos. Se identificado dentro desse prazo, a ação deve ser ajuizada dentro do prazo prescricional de 10 anos da ciência do surgimento do vício. Resumidamente, o prazo de garantia define até quando o problema pode ser identificado, enquanto o prazo prescricional define até quando a ação pode ser proposta após essa identificação. O objetivo da lei, nos dois casos, é evitar que essas responsabilidades se prolonguem indefinidamente, mas sem impedir que a parte lesada possa buscar reparação caso o problema surja dentro do período de garantia. Nessa linha, inclusive, compartilha desta "leitura" da regra Alexandre Junqueira Gomide que, com acerto, questiona: "Mas se não é o caso de redibição do contrato, seja porque os requisitos para tanto não estão previstos, seja porque a opção do lesado é o reparo e a manutenção do contrato, qual o prazo prescricional para a propositura da ação indenizatória? Não obstante certa hesitação da jurisprudência (em especial dos tribunais estaduais), o Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento que, a partir da constatação do vício, o prazo prescricional para a propositura da ação indenizatória (e não redibição contratual, reitere-se) é decenal. (...). Ocorre que o prazo decenal, estabelecido genericamente para a pretensão referente à indenização dos vícios construtivos, talvez deva ser repensado pela doutrina, assim como o 'prazo quinquenal de garantia' normalmente referido pela jurisprudência10 e localizado no artigo 618, do Código Civil. Tal como já asseverado por Nelson Rosenvald e Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, o fato de o contrato de compra e venda poder ser considerado de longa duração não significa que o fornecedor está obrigado a uma garantia ad eternum.  Há que se pensar que toda edificação é formada por diversos sistemas e materiais construtivos distintos. A fundação de uma edificação deve ser projetada para que resista por muitos e muitos anos e, portanto, o prazo de vida útil deve ser extenso. Contudo, a pintura da fachada normalmente tem prazo de vida útil de até três anos e, após tal interregno, há perda da garantia do sistema e a edificação deve ser repintada. Como se nota, na construção civil há sistemas que são feitos para perdurarem no tempo por longo prazo, enquanto a pintura, o rejunte dos pisos, as lâmpadas, dentre outros elementos ou componentes possuem prazo de vida útil inferiores. Não é possível, portanto, atribuir genericamente o prazo de cinco anos como a 'garantia' da construção, seja porque esse prazo é insuficiente para garantir a estabilidade da fundação que, por exemplo, possui prazo de vida útil superior a trinta anos, seja porque o prazo é extenso demais para garantir componentes e sistemas mais simples. (...) A manutenção predial, por exemplo, é indispensável a qualquer construção e engloba um plexo de cuidados técnicos aptos a preservar o bom desempenho de uma edificação. Sem que a manutenção predial seja realizada, não há como se atingir a vida útil e o desempenho dos sistemas, elementos e componentes construtivos. Assim, 'a manutenção não pode ser feita de modo improvisado e casual. Ela deve ser entendida como um serviço técnico, cuja responsabilidade exige capacitação apurada'. (...) O objetivo do presente artigo é apontar que nas ações indenizatórias envolvendo vícios construtivos, não deve o intérprete se valer de soluções genéricas e simples. O Código Civil, em nosso ver, não é suficiente para estabelecer as regras necessárias envolvendo os prazos para tais ações e é papel da doutrina o melhor desenvolvimento da matéria. Como defende José Carlos Puoli, os prazos estabelecidos no Código Civil deveriam ser alterados. Enquanto a matéria não é suficientemente tratada pelo legislador, é necessário que o juiz, nas ações envolvendo vícios construtivos, atente-se para saber se (i) o sistema sobre o qual se reclama está (ou não) dentro do prazo de vida útil; (ii) se o usuário (adquirente ou condomínio) observou as determinações relacionadas à manutenção predial. Na hipótese de ambas as respostas serem afirmativas, a responsabilidade civil do construtor estará mais evidenciada, facilitando a prova pericial normalmente produzida nesse tipo de demanda" (GOMIDE, Alexandre Junqueira. Os prazos e as pretensões nas ações de vícios construtivos).14 Aparentemente, contudo, a Corte Superior que, em tempos vindouros proferiu julgados nos quais de maneira completa e louvável se debruçava sobre o tema, agora, infelizmente, parece olvidou-se das suas próprias lições. Em exemplo claro, recente julgado de relatoria do min. Ricardo Villas Bôas Cueva, ao mesmo tempo que rememora a tese fixada no entendimento sumular de 194 do STJ, contradiz a própria citação e ignora a função do prazo de garantia (hoje preconizado no art. 618 do CC). Confira: "RECURSO ESPECIAL. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CONSTRUTORA. PRESCRIÇÃO. SOLIDEZ E SEGURANÇA. PRAZO QUINQUENAL DE GARANTIA. DANOS. NÃO APRESENTAÇÃO. SÚMULA Nº 194/STJ. DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL. CIÊNCIA DO DANO. POSSIBILIDADE. NÃO EXERCÍCIO. PRAZO VINTENÁRIO. PRESCRIÇÃO. RECONHECIMENTO. (...) 2. O artigo 1.245 do Código Civil de 1916 prevê um prazo de garantia de 5 (cinco) anos. Caso o vício oculto, capaz de comprometer a solidez e segurança da obra, manifeste-se dentre desse prazo, o proprietário da obra tem 20 (vinte) anos, prazo ordinário para o exercício das pretensões de direito material pessoais, contado do aparecimento do defeito, para o ajuizamento da ação para reparação de danos. Súmula 194/STJ. 3. Ao dono da obra é permitido demandar o construtor por vícios relacionados com a solidez e à segurança da construção no prazo de 20 (vinte) anos (art. 1.056 do CC de 1916), contados desde o conhecimento do vício ou desde quando possível o conhecimento do defeito, sendo desimportante que tenha ocorrido ou não nos primeiros 5 (cinco) anos da entrega da obra. Precedente. 4. No caso concreto, conhecido o vício construtivo desde 1987, deve ser declarada prescrita a pretensão ajuizada em 2010, mesmo interrompida por medida cautelar de produção antecipada de provas proposta em 2008. 5. Na hipótese, o prazo vintenário deve ser aplicado em sua integralidade, haja vista que na entrada em vigor do novo Código Civil, já havia transcorrido mais de 10 (dez) anos (art. 2.028 CC/02). 6. Recurso especial provido" (STJ, REsp. n. 1.711.581/PR, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 19/06/2018, 3ª turma, DJe. 25/6/2018). De qualquer maneira, o pensamento exarado por Gomide alhures escancara verdadeira vanguarda, isto porque, quiçá se consiga ainda fazer valer mero exercício lógico acerca da impossibilidade do empreiteiro responder indefinidamente, ou, em tempo maior do que o positivado pelo ordenamento, pelos vícios surgidos na obra, quem dirá fazer com que a atividade jurisdicional passe a ser embasada em normas e estudos técnicos quando da definição dos prazos que a cada material construtiva deva se estabelecer prazo de vida útil. Explica-se. No referido artigo, Gomide chega a propor a utilização dos prazos de vida úteis específicos de cada materiais estabelecidos pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), a fim de lastrear os prazos de responsabilidade dos empreiteiros: "Mais recentemente, a NBR 17170 de 2022 estabeleceu prazos recomendados de garantia que, segundo a norma, deve ser [...] o tempo em que o fornecedor é responsável perante o consumidor por corrigir falhas nos produtos por ele fornecidos e originados no processo de sua concepção e produção, desde que seja realizada a manutenção devida, os produtos sejam corretamente utilizados e observadas as demais condições prevista no manual de uso, operação e manutenção deste produto. Como exposto acima, é verdade que as referidas normas técnicas, embora relevantes no âmbito da construção civil, nem sempre são levadas em consideração pelo intérprete do direito brasileiro. Apesar do artigo 39, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor determinar que é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços colocar no mercado qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas da ABNT, não obriga o consumidor a atender às disposições das referidas normas" (GOMIDE, Alexandre Junqueira. Os prazos e as pretensões nas ações de vícios construtivos).15 Nesse mesmo sentido, inclusive, são as lições de José Puoli, o qual, tecendo comentários acerca dos vícios construtivos, também critica evidente responsabilização ad aeternum que o judiciário tem imposto ao construtor ao revés da legislação12 e propõe que: "Salvo melhor juízo, isto tem de ser revisto, de maneira que, com uma mais atenta aplicação das normas, em especial, quanto a vícios aparentes, se possa ter critério mais justo, e curto (no tempo), para acolhimento de pleitos relativos a vícios construtivos, o que se faz de fundamental importância para resgatar a segurança jurídica necessária nas relações que envolvem a edificação de bens imóveis, bem como para evitar que os preços do 'mercado' continuem a embutir os custos decorrentes do mais longo tempo de assistência técnica imposta pela interpretação acima mencionada. (...). Por se tratar de tema em que as questões técnicas são de enorme relevância, cumpre uma vez mais fazer referência a uma das normas técnicas acima já citadas, qual seja, a NBR 15.575. Referida norma, como consta no 'site' da Associação Brasileira de Normas Técnicas, trata do 'desempenho de edificações habitacionais' e, entre outros relevantes conceitos, apresenta o de vida útil de projeto que, nas palavras de Ricardo Campelo, corresponde a 'um conceito destinado à etapa de projeto, momento em que deve ser redefinida a estimativa teórica do tempo pelo qual a edificação deverá apresentar o desempenho mínimo... desde que observado o correto comportamento dos usuários quanto ao uso e manutenção'. (...). E cabe salientar que este tipo de distinção, de prazos, propicia haja uma mais justa análise dos temas acima abordados, eis que se passa a ter um referencial fundado em norma técnica que, de um lado, impede confundir garantia e/ou responsabilidade, com vida útil de projeto dos elementos construtivos e, de outro, faz com que se possa mitigar a problemática generalização acima referida, eis que se a ocorrência tiver aparecido depois do esgotamento do tempo de 'vida útil de projeto', previsto especificamente para um elemento construtivo, não se poderá imputar ao construtor responsabilidade. Nota-se, tal como já mencionado neste texto, que, mesmo depois de ultrapassando o prazo de garantia, ainda se poderá postular 'tutela' alegando vício construtivo, mas, esgotada a garantia, além de ser necessária a prova da culpa do construtor, ainda se terá de ter atenção para ver se não foi ultrapassado o prazo de vida útil de projeto do item construtivo específico. E, retomando a ideia de garantia, cumpre salientar que a NBR 15.575 também traz lista com indicação de prazos 'recomendados', sendo que estes prazos de garantia específicos também variam conforme o item construtivo e são, para vários elementos, menores que cinco anos. Deste modo, a norma técnica em análise também faz com que se tenha referencial preciso para afastar a ideia de uma amplíssima concepção de solidez e segurança, eis que, ao menos quanto aos elementos construtivos cuja garantia for (no bojo da norma técnica) de prazo inferior a cinco anos, passa a haver uma barreira técnica a impedir que se queira encarar tal elemento construtivo como referenciado à solidez e segurança de uma edificação. E, não havendo relação direta com solidez e segurança, passam a ser aplicáveis as normas que regulamentam os vícios redibitórios, das quais constam prazos legais menos extensos do que aquele do artigo 618 do Código Civil" (PUOLI, José Carlos Batista. Vícios Construtivos. In BORGES, Marcus Vinícius Motter (coord.). Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 1ª ed., 2021, p. 637/639). Assim, com uma leitura a contrário senso de que as normas técnicas em comento devem ser levadas em consideração quando da análise do prazo de responsabilização do empreiteiro13, é adequado que o judiciário já se atente para os prazos específicos de vida útil dos materiais construtivos. De todo modo, até que haja uma maior adesão pelo judiciário do quanto narrado, imperioso reconhecer que, o tão ignorado prazo legal quinquenal decadencial de responsabilidade pelos eventuais vícios ocultos da empreitada e já previsto no artigo 618 do CC deve, por todo o exposto, deve voltar a ser considerado nos julgamentos. Conclusões Portanto, independentemente da evolução do entendimento jurisprudencial, ou, até mesmo, de eventuais inovações legislativas, fundamental seja retomada a literalidade do que consta como prazo de garantia previsto no caput do art. 618 do CC, a fim de se aplicar razoável termo para a responsabilidade do empreiteiro dos vícios de obra surgidos após o aceite da obra e, com isso, evitar uma quase eterna responsabilidade para o construtor o que se faz necessário para trazer maior justiça no âmbito das decisões de ações indenizatórias surgidas nesse âmbito e nas quais se aplica a teoria da actio nata em sua vertente subjetiva. Ademais, tal conclusão não só decorre dos fundamentos econômicos e fáticos expostos, como também é de rigor em face da lógica intrínseca da própria teoria da actio nata em seu âmbito subjetivo, a qual, como dito, é aplicada aos vícios construtivos ocultos. _______ 1 CC: "Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo. Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito". 2 Cf. STJ, EREsp n. 1.280.825/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Segunda Seção, j. 27/06/2018, DJe. 02/08/2018. 3 Súmula 194 do STJ: "Prescreve em vinte anos a ação para obter, do construtor, indenização por defeitos da obra". 4 Note apenas que o citado artigo 1.245 do CC/16 é o correspondente do atual art. 618 do CC/02. Ipsis litteris: "Art. 1.245. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo, exceto, quanto a este, se, não achando firme, preveniu em tempo o dono da obra". 5 Como ensina Orlando Gomes, empreitadas mistas são aquelas em que, além de elaborar a obra, "o empreiteiro forneceu os materiais" e, por conta disso, "por conta do empreiteiro correm os riscos, até a entrega da obra" (GOMES, Orlando. Contratos. 26ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 366/370). 6 No presente caso, também pouco importa se considere o prazo de 180 (cento e oitenta) dias, trienal ou decenal, uma vez que, quando do surgimento do vício, não mais respondia o empreiteiro pela obra. 7 LSA: "Art. 287. Prescreve: (...) II - em 3 (três) anos (...) b) a ação contra os fundadores, acionistas, administradores, liquidantes, fiscais ou sociedade de comando, para deles haver reparação civil por atos culposos ou dolosos, no caso de violação da lei, do estatuto ou da convenção de grupo, contado o prazo: (...) 2 - para os acionistas, administradores, fiscais e sociedades de comando, da data da publicação da ata que aprovar o balanço referente ao exercício em que a violação tenha ocorrido". 8 A teoria da actio nata, desenvolvida por Savigny, é extensamente usada pela doutrina moderna para definir o termo inicial dos prazos prescricionais. Isto é, só se pode falar em prescrição a partir do momento em que uma pretensão surge, ou seja, "é necessário, então, uma actio nata". Ao criar a teoria, preconizou o professor alemão que seria somente preciso "uma violação do direito que determine a ação do titular" para que o prazo prescricional se iniciasse (SIMÃO, José Fernando. Prescrição e decadência: início dos prazos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 204/205). Referida leitura do termo inicial da prescrição corresponde à vertente objetiva da teoria da actio nata. Contudo, com o aprimorar da doutrina e da jurisprudência, percebeu-se que tal tratamento acarretava injustiças, muitas vezes, impunidade, já que nem sempre aquele que tem em seu favor um direito de ação nascendo tem consciência da lesão que sofreu. Por conta disso, desenvolveu-se também a chamada teoria da actio nata em sua vertente subjetiva, v.g., quando o termo inicial da prescrição surge, não com a violação de um direito, mas, com a devida ciência do lesado do dano sofrido. Nesse sentido: "Apesar do trecho final transcrito, constata-se que a lei, a jurisprudência e a própria doutrina têm levado em conta esse conhecimento para os fins de fixação do termo a quo da prescrição, construindo uma teoria da actio nata com viés subjetivo. Nessa esteira, José Fernando Simão expõe que, 'contudo, parte da doutrina pondera que não basta surgir a ação (actio nata), mas é necessário o conhecimento do fato. Trata-se de situação excepcional, pela qual o início do prazo, de acordo com a exigência legal, só se dá quando a parte tenha conhecimento do ato ou fato do qual decorre o seu direito de exigir. Não basta, assim, que o ato ou fato violador do direito exista para que surja para ela o exercício da ação. Já aqui mais 'liberal', exige a lei o conhecimento pelo titular para que, só assim, se possa falar em ação e também em prescrição desta. (...)'." (TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. 8ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 302, E-book). 9 Nesse sentido: "STJ adota como regra para o cômputo da prescrição a teoria da actio nata em sua vertente objetiva, considerando a data da efetiva violação ao direito como marco inicial para a contagem" (STJ, AgInt no REsp: 1.494.347*SP, Rel. Min. João Otávio De Noronha, Data de j. 10/09/2024, Quarta Turma, DJe 12/09/2024). 10 Como ensina José Simão, trata-se de ações em que "o comitente teria um prazo para exigir a reparação, tutela em questão tem natureza claramente condenatória" (SIMÃO, José Fernando. Prescrição e decadência: início dos prazos. São Paulo: Atlas, 2013, p. 267) e não para as ações de pretensões constitutivas, como exemplo a ação de rescisão do contrato. 11 Nesse sentido: "O artigo 1.245 do Código Civil de 1916 prevê um prazo de garantia de 5 (cinco) anos. Caso o vício oculto, capaz de comprometer a solidez e segurança da obra, manifeste-se dentre desse prazo, o proprietário da obra tem 20 (vinte) anos, prazo ordinário para o exercício das pretensões de direito material pessoais, contado do aparecimento do defeito, para o ajuizamento da ação para reparação de danos. Súmula 194/STJ" (STJ, REsp: 1.711.581/PR, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 19/06/2018, Terceira Turma, DJe 25/06/2018). 12 Sobre a questão, Puoli aponta que: "A despeito disto, os prazos para que se possa exercer o direito postular a correção do problema, ou a indenização por conta do vício construtivo, não se esgotam naqueles marcos. Com efeito, a análise jurisprudencial tem sido bastante objetiva ao mencionar que se prolonga, para além do período de garantia, o lapso de tempo em que o direito poderá ser objeto de exercício 'material' ou, se necessário, de ajuizamento de demanda judicial. Tal interpretação decorre da circunstância de uma edificação ser tipo de bem que, no dia a dia da vida, se apresenta como de elevada capacidade para se manter 'rígido' ao longo de 'largo' espaço de tempo. Se no geral este raciocínio é razoável, importante desde logo referir que o uso discriminado desta ideia tem ocasionado perigosa distorção que, s.m.j., precisa ser corrigida. É dizer, não pode ser eternizado, nem tampouco desarrazoadamente grande, o período dentro do qual um construtor/incorporador irá responder pela construção realizada. É que, se assim acontece, eleva-se a insegurança, estimulam-se os conflitos e, ainda, é acarretado relevante aumento no custo de produção, com efeitos deletérios não apenas para construtores/incorporadores, mas também para contratantes e consumidores de 'produtos imobiliários', que acabam tendo de conviver com preços elevados no mercado" (PUOLI, José Carlos Batista. Vícios Construtivos. In BORGES, Marcus Vinícius Motter (coord.). Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 1ª ed., 2021, p. 635/636). 13 Nesse sentido, novamente, Puoli: "Noutros termos, a já mencionada tendência de ampliação do conceito de solidez e segurança passou a ter, desde a edição da NBR 15.575 e s.m.j., a necessidade de se vincular ao que a 'norma técnica', agora de forma detalhada, passou a indicar como atual estágio de desenvolvimento tecnológico dos materiais e procedimentos empregados numa edificação, dando, s.m.j., efetivo respaldo para este regime de análise dos vícios construtivos. Também corrobora esta necessidade, o que consta do artigo 39, VIII, do CDC, que preceitua ser prática abusiva 'colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas específicas não existirem, pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela Associação Brasileira de Normas Técnicas...'; texto legal esse que, numa leitura a contrário senso, significa que o ordenamento jurídico brasileiro dá sim um importante grau de 'enforcement' para as normas da ABNT." (PUOLI, José Carlos Batista. Vícios Construtivos. In BORGES, Marcus Vinícius Motter (coord.). Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 1ª ed., 2021, p. 639). 14 Disponível aqui. 15 Disponível aqui.
Como autores deste artigo, nossa pretensão é consolidar o resultado da prática nestes oito anos de edição do provimento 65 de 20171, com a visão de dentro e de fora do balcão da serventia extrajudicial, que nos ajudaram a criar método assertivo de condução do processo2 de usucapião extrajudicial. Ao longo das experiências vivenciadas e compartilhadas, identificamos sete pontos que mais influenciam o insucesso do processo extrajudicial de usucapião. Abordaremos, neste trabalho, um a um. Mas antes, é preciso contextualizar que a usucapião extrajudicial3 tem se consolidado como uma via eficaz para a regularização de imóveis, permitindo a aquisição originária da propriedade sem a necessidade de recorrer ao Poder Judiciário. Prevista no art. 216-A da lei de registros públicos (lei 6.015/1973)4, introduzido pelo CPC de 2015, e atualmente regulamentada no art. 398 e seguintes do provimento CNJ 149/23 ( CNN-CNJ-EXTRA - Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça)5, o processo tem se mostrado mais célere e menos oneroso do que a via judicial. O processo de usucapião extrajudicial responde ao anseio popular, refletido no fenômeno da Justiça Multiportas6, que se caracteriza pelo crescente movimento nacional de extrajudicialização7 dos processos. Esse movimento é fomentado pelas tendências contemporâneas de simplificação e eficiência na aquisição e regularização da propriedade imobiliária, sem olvidar da segurança jurídica inerente ao  sistema notarial e registral. Apesar das vantagens processuais, a instrução inadequada do pedido pode levar ao indeferimento e frustrar expectativas, revelando a necessidade de uma abordagem técnica rigorosa por parte dos operadores do direito. É neste cenário que contribuímos com nosso trabalho, que apresenta e explica os sete pontos que mais influenciam o insucesso do processo extrajudicial de usucapião.  Clique aqui e confira a coluna na íntegra.  1 Cujos artigos foram transpostos para o CNN-CNJ-EXTRA (Provimento CNJ 149/2023), a partir do art. 398. 2 O CNJ passou a reconhecer que se trata de um processo e não mero procedimento com a publicação do Provimento 149, na adjudicação compulsória extrajudicial, do qual o autor Bernardo Chezzi participou da fundamentação e colaboração como relator do tema no Conselho Consultivo do Agente Regulador da Corregedoria Nacional. Através de parecer de pouco mais de 100 páginas, provou-se se tratar de processo administrativo específico, com aplicação subsidiária, no que couber, do CPC. 3  Embora a forma etimologicamente correta e consagrada pelos dicionários seja "a usucapião", por derivar do latim usucapio, usucapionis (substantivo feminino), a variante "o usucapião" também é amplamente utilizada, especialmente na prática jurídica, o que ganhou força com "o processo de usucapião", sobretudo o processo extrajudicial. Trata-se, portanto, de um caso de flutuação de gênero admitida pela língua em razão do uso consagrado, sendo ambas as formas aceitas, ainda que a forma feminina seja preferida na norma culta 4 BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Art. 216-A (Incluído pela Lei nº 13.105, de 2015). 5 BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Provimento nº 149, de 04 de setembro de 2023. Institui o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça para o Extrajudicial. Arts. 398 a 410. 6 Didier trata da justiça multiportas (ou "multi-door courthouse") como um modelo de administração da justiça que reconhece múltiplas vias de resolução de conflitos, e não apenas o processo judicial tradicional, incluindo mediação, conciliação, arbitragem e soluções administrativas (como Reurb, usucapião e adjudicação compulsória, retificação de área, etc). O conceito amplia a noção de acesso à justiça, entendendo-o como acesso à solução adequada para o conflito, e não necessariamente ao processo judicial. DIDIER JR., Fredie; FERNANDEZ, Leandro. O sistema brasileiro de justiça multiportas como um sistema auto-organizado: interação, integração e seus institutos catalisadores. Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, n. 88, p. 203-236, abr./jun. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 16/4/25. 7 O termo extrajudicialização é mais técnico e adequado do que desjudicialização, pois destaca a criação ou fortalecimento de vias alternativas ao Judiciário, e não a sua negação; enfatiza o desenvolvimento de mecanismos extrajudiciais, como os cartórios, as soluções administrativas, a arbitragem, entre outros; está em sintonia com o modelo cooperativo e plural da justiça multiportas, em que o Judiciário continua exercendo papel relevante (inclusive de supervisão, quando necessário); e, também, a extrajudicialização não exclui a judicialização, mas amplia as opções do cidadão de forma mais eficiente e célere, contribuindo para a efetividade do acesso à justiça (art. 3º, §2º do CPC/2015). A respeito do tema, Márcio Faria explica que a extrajudicialização tem dupla interpretação doutrinária: parte entende que é sinônimo de desjudicialização; outra parte, entende que extrajudicialização é um gênero, do qual fazem parte a descentralização, a desjudicalização e a desjuridicialização. FARIA, Márcio. Desjudicialização e Sistema Multiportas são o tema de Entender Direito. Entrevista concedida ao programa Entender Direito, STJ, 23 ago. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 16/4/25.?
quinta-feira, 17 de abril de 2025

Os 45 anos da lei 6766/1979: Passado e futuro

A lei 6.7661/79, que dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano, é um marco normativo de extrema relevância no âmbito do Direito Civil e Urbanístico brasileiro, estabelecendo um regime jurídico que busca conciliar o desenvolvimento urbano das cidades com a preservação de interesses coletivos, sustentabilidade ambiental e garantia de infraestrutura básica para a população. Até sua edição, em 19/12/79, a legislação aplicável para loteamento e venda de terrenos era o decreto-lei 58/67.  No contexto inicial da lei 6.766/1979, o foco principal era coibir loteamentos irregulares, estabelecendo requisitos mínimos para a urbanização, como a necessidade de infraestrutura básica e o respeito às normas ambientais. Do ponto de vista da inovação, a lei introduziu um conjunto de exigências técnicas que visavam superar a lógica predatória do desenvolvimento urbano, típica da história brasileira.  Apesar desse avanço normativo, a aplicação da lei encontrou desafios, especialmente devido à falta de estrutura técnica e financeira dos municípios para fiscalizar e regular o crescimento das cidades. Como consequência, muitas áreas urbanas se expandiram sem planejamento adequado, gerando bolsões de precariedade habitacional e segregação socioespacial, além da construção de comunidades em áreas ambientalmente sensíveis, deixando parte da população brasileira amplamente vulnerável frente às mudanças climáticas. Ao longo dos últimos 45 anos, a legislação brasileira referente ao parcelamento do solo urbano sofreu diversas alterações significativas para se adaptar ao crescimento urbano, à preservação ambiental e às demandas sociais. Além disso, a realidade urbana do Brasil não parou de se transformar, exigindo constantes revisões e adaptações nas políticas urbanas para lidar com problemas contemporâneos como mobilidade urbana, sustentabilidade e habitação social. A seguir, são destacadas as principais mudanças legislativas nesse período.  Lei 6.766/79, um diploma em transformação Por meio das modificações introduzidas pela lei 9.785/1999, estabeleceu-se a obrigatoriedade de uma infraestrutura básica nos loteamentos, compreendendo sistemas para o escoamento das águas pluviais, redes de esgoto, abastecimento de água potável e fornecimento de energia elétrica. Essa exigência passou a condicionar a aprovação de novos loteamentos à garantia de condições mínimas de habitabilidade, em perfeita sintonia com o princípio constitucional da função social da propriedade, além de revelar uma preocupação latente com a qualidade de vida nas áreas urbanas e o processo de urbanização das cidades, ao buscar evitar que novos parcelamentos de solo resultem em áreas de exclusão por falta de serviços essenciais. Outrossim, a previsão de regras específicas para ZHIS - zonas habitacionais de interesse social, que exigem infraestrutura mínima mesmo em áreas destinadas à população de baixa renda, demonstra uma preocupação com a inclusão social e com a redução das desigualdades urbanas. Ainda, a lei 9.785/1999 fortaleceu a competência dos municípios ao modificar os dispositivos da lei 6.766 que exigiam a doação de 35% de terras para áreas públicas como condição para a aprovação de projetos. Com a alteração, passou a ser atribuição  dos municípios a regulamentação dessa exigência de acordo com os índices urbanísticos locais. Sabe-se que a CF/88 introduziu o princípio da função social da propriedade, reforçando a necessidade de vincular o uso do solo aos interesses coletivos e ao bem-estar social. Essa nova perspectiva constitucional influenciou mudanças posteriores na legislação urbanística, culminando no Estatuto da Cidade (lei 10.257/012), que trouxe instrumentos para a gestão territorial, como o direito de preempção, a outorga onerosa do direito de construir e o estudo de impacto de vizinhança. São inovações que fortaleceram a governança urbana, permitindo que o poder público exercesse maior controle sobre o uso do solo e promovesse políticas mais inclusivas de urbanização. Em 2017, com a promulgação da lei 13.465, foram instituídas as figuras jurídicas do Condomínio de Lotes e do Loteamento de Acesso Controlado. Essa iniciativa representou um avanço significativo na legislação, alinhando-se com práticas que há muito eram observadas no mercado imobiliário. A lei 13.786/18, conhecida como "Lei dos Distratos", delineou normas para a rescisão de contratos de compromisso de compra e venda de lotes devido ao inadimplemento por parte do adquirente. Além disso, a lei estabelece diretrizes claras para as obrigações relacionadas ao quadro-resumo dos contratos, trazendo clareza e segurança ao processo. Já a lei 14.118/21 apresentou o conceito do loteador/empreendedor, formalizando a figura do loteador, que já existia no mercado imobiliário há anos, mas carecia de reconhecimento legal. Com essa inclusão, a legislação agora oferece maior segurança jurídica para consumidores, loteadores e o poder público, permitindo, inclusive, a averbação do contrato de parceria na matrícula do imóvel. A lei 14.382/22 introduziu modificações relativamente discretas nos prazos de algumas certidões exigidas para a aprovação de loteamentos. Ademais, aprimorou a apresentação de documentos em hipóteses como a de a loteadora ser uma companhia aberta, conforme delineado no § 6º do art. 18 da lei 6.766/79.3   A lei 14.620/23 trouxe uma importante inovação ao criar o patrimônio de afetação para loteamentos, medida que visa proteger os adquirentes de lotes em situações de insolvência do empreendedor. Essa inovação contribuiu significativamente para aumentar a segurança jurídica no mercado imobiliário, reduzindo riscos para os compradores e garantindo que os recursos destinados ao desenvolvimento urbano sejam administrados de forma transparente. Entretanto, uma crítica levantada é que a introdução do patrimônio de afetação para loteamentos poderia ter sido acompanhada pelo benefício do RET - Regime Especial Tributário previsto no art. 1º da lei 10.931/1994. Além disso, a nova legislação reforçou exigências ambientais, estipulando restrições ao parcelamento em áreas de risco e integrando políticas habitacionais com diretrizes de sustentabilidade4. Ainda, esta lei retro trouxe outra importante alteração - a introdução do § 3º, ao art. 22º da lei 6.766/1979, que dispõe:  Somente a partir da emissão do Termo de Verificação e Execução de Obras (TVEO), o Município promoverá a individualização dos lotes no cadastro imobiliário municipal em nome do adquirente ou compromissário comprador no caso dos lotes comercializados e, em nome do proprietário da gleba, no caso dos lotes não comercializados.  A alteração sugerida pela lei 14.620/23 implica que a cobrança individualizada do IPTU sobre os lotes  seja iniciada somente após a finalização e entrega das obras de infraestrutura do loteamento. Isso garante que os proprietários não sejam onerados por serviços e melhorias que ainda não foram efetivamente implementados. Contudo, na prática, observa-se que muitos municípios continuam a adotar mecanismos de arrecadação que não refletem essa lógica, tendo que ser contidos por decisões judiciais, como a abaixo, nos autos do agravo de instrumento 2073945-49.2024.8.26.0000, pelo TJ/SP: [.] A despeito de os lotes já terem sua matrícula individualizada (fls. 64/143 dos autos de origem), não há notícia de que o TVEO mencionado acima tenha sido emitido. À falta desse documento, conclui-se não ser possível a individualização dos lotes no cadastro imobiliário municipal, pressuposto do lançamento de IPTU sobre cada unidade do loteamento, como se verifica das informações prestadas pela Administração, que vinculam um valor de IPTU a um número de cadastro (fls. 144/303 ibidem). Essa exigência de TVEO para a individualização dos lotes não impacta o regramento dos sujeitos passivos do IPTU, não havendo antinomia entre a Lei sobre o Parcelamento do Solo Urbano e o CTN. O art. 22, § 3º, da Lei 6.766/79 apenas dispõe sobre o momento em que os lotes podem ser individualizados, podendo a Municipalidade continuar cobrando do loteador IPTU sobre a totalidade do imóvel (TJSP - Agravo de Instrumento: 2073945-49.2024.8.26.0000 Ribeirão Preto, Relator: Silvana Malandrino Mollo, Data de Julgamento: 30/04/2024, 14ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 30/04/2024). (negritei) Infelizmente, as administrações municipais, em sua busca por receita, frequentemente recorrem à cobrança de IPTU imediatamente após o registro do loteamento, mesmo que as obras de infraestrutura não tenham sido concluídas. Nesse sentido, Durazzo5:  A ganância tributária de alguns Municípios não se contém [...]. Basta a apresentação do projeto de parcelamento da gleba com aprovação pela Prefeitura, para que ocorra o cadastramento e lançamento do IPTU, prática que pode trazer de volta os desastrosos fatos consumados, de triste memória, quando havia mais loteamentos irregulares do que regularizados, gerando problemas fundiários até hoje não resolvidos. Em suma, as mudanças na lei de parcelamento do solo urbano refletem o esforço contínuo de adaptar a legislação às transformações sociais e urbanas do país. Apesar dos avanços na regulamentação do uso do solo e na proteção de interesses coletivos, desafios estruturais persistem, exigindo maior articulação entre o poder público, a sociedade civil e o setor privado. Retomando a provocação que fizemos no título do texto, que leva a uma reflexão sobre o futuro do parcelamento do solo urbano, retomamos o conceito de urbanismo realista de Amadei6. Na perspectiva do autor, o urbanismo realista se insere na ideia de que é fundamental considerar continuamente as verdadeiras necessidades da população afetada pelas decisões políticas e jurídicas relacionadas às questões urbanas.  Um dos pontos centrais dessa discussão é o impacto financeiro e estrutural que a aprovação de um projeto de loteamento representa para o loteador. Conforme destacado, a execução de obras essenciais, como saneamento básico, pavimentação, drenagem e fornecimento de energia elétrica, envolve custos elevados. Esses investimentos, embora fundamentais para garantir a qualidade de vida dos futuros moradores e a sustentabilidade do empreendimento, muitas vezes são vistos como um entrave para a viabilidade econômica dos projetos. Aqui, o urbanismo realista propõe um equilíbrio: por um lado, é necessário garantir que os loteadores cumpram suas obrigações legais e urbanísticas; por outro, é fundamental que o poder público atue de forma colaborativa, que possa reduzir a carga financeira sobre os empreendedores, sem comprometer a qualidade do projeto. Com essas premissas, o urbanismo realista suscita reflexões sobre a função social da propriedade e do solo urbano. O loteador, no contexto do parcelamento do solo urbano, assume um papel de extrema relevância no desenvolvimento das cidades, atuando, em muitos casos, como um agente indutor de infraestrutura e serviços que, em tese, seriam de responsabilidade do poder público municipal. Dessa forma, o loteador assume um papel complementar ao do município, viabilizando a ocupação de áreas que, sem sua atuação, permaneceriam desprovidas de condições mínimas de habitabilidade.  Desafios pendentes: Sugestões de outras alterações a serem implementadas na lei 6.766/79 Em que pese às diversas alterações já estabelecidas no texto da lei 6.766/1979, a complexidade do tema e sua importância para o desenvolvimento social seguem impondo desafios que ainda precisam ser equacionados. Sob esse prisma e à luz dos princípios constitucionais, dentre os quais o da função social da propriedade, seguem algumas sugestões que a tornariam um instrumento ainda mais eficiente. 1 - O art. 26, V, da lei 6.766/79 prevê:  Art. 26. Os compromissos de compra e venda, as cessões ou promessas de cessão poderão ser feitos por escritura pública ou por instrumento particular, de acordo com o modelo depositado na forma do inciso VI do art. 18 e conterão, pelo menos, as seguintes indicações: (....) V - taxa de juros incidentes sobre o débito em aberto e sobre as prestações vencidas e não pagas, bem como a cláusula penal, nunca excedente a 10% (dez por cento) do débito e só exigível nos casos de intervenção judicial ou de mora superior a 3 (três) meses; Ao examinar o inciso V, do art. 26, conclui-se que, após um período de três meses de inadimplência, a multa moratória pode atingir até 10% (dez por cento) do valor do débito. Porém, o dispositivo estabelece que a multa no percentual indicado somente poderá ser exigida após 3 (três) meses de mora. Antes desse prazo, a legislação não especifica diretrizes claras. O objetivo presente não é suscitar o debate acerca da legalidade da aplicação da multa de 10% anteriormente mencionada, já que na prática essa percentual não é cobrado do consumidor, mesmo estando previsto na lei específica. De modo geral, o mercado opta por aplicar a multa prevista no art. 52, § 1º, do CDC, a qual é limitada a 2% do valor do débito: Art. 52. No fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá, entre outros requisitos, informá-lo prévia e adequadamente sobre: § 1º As multas de mora decorrentes do inadimplemento de obrigações no seu termo não poderão ser superiores a dois por cento do valor da prestação. O que parece ser relevante destacar é que diante da omissão da lei 6.766/1979 acerca do critério para cálculo da multa por descumprimento contratual antes do período de três meses, corre-se o risco de assistir-se ao surgimento de decisões díspares, colocando em risco a coerência do sistema.  Assim, pugna-se por alteração legal que torne imperativo aplicar a regra geral do CDC, garantindo assim a uniformidade e a justiça nas relações de consumo, com a alteração do artigo legal retrocitado. Nesse sentido, confira-se julgado do TJ/SP que entendeu ser válida a aplicação de multa de 2%, prevista no CDC, para qualquer prestação inadimplida, independentemente da penalidade estabelecida pela lei 6.766/79, a saber: AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO. Compromisso de compra e venda de imóvel. Relação de consumo. Desnecessidade de produção de prova pericial. Condições de atualização monetária e de incidência de juros legais expressamente previstos. Direito à informação do consumidor respeitado. Ausência de abusividade na adoção do índice IGPM. Juros fixados em percentual razoável. Cláusulas contratuais válidas e que devem ser cumpridas. Anatocismo não configurado. Cláusula 5.1 do contrato prevê que a multa moratória de 2% e não 10%. Não abusividade. Art. 52, §1º, do CDC. A multa de 10% (após 3 meses de mora) é permitida pela Lei de Parcelamento do Solo Urbano (art. 26, V). Ausente prova de cobrança de comissão de permanência ou taxa de emissão de boleto. Irrelevante eventual desvalorização do imóvel adquirido. O contrato prevê expressamente, em negrito e grifado, que os lotes não poderão ser desdobrados. Redes de água e esgoto foram concluídas no início de 2015, de modo que eventual atraso da construtora na entrega, caso existente, não gerou desvalorização dos bens imóveis. Sentença mantida. Honorários advocatícios majorados. Recurso não provido, com observação (Apelação Cível nº 1002783-60.2020.8.26.0320, Relatora: Fernanda Gomes Camacho, Órgão Julgador: 5ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, 22/03/21). 2 - Art. 34 da lei 6.766/79 - § 2º - Necessidade de levar o imóvel a leilão caso exista benfeitoria O art. 34, § 2º da lei 6.766/79, impõe a obrigação de praceamento do lote no prazo de 60 (sessenta) dias contado da constituição em mora, quando nele existir construção7, facultando seja o leilão realizado de forma judicial ou, nos termos da lei 9.514/1997, extrajudicial. Importante lembrar que as regras do praceamento judicial diferem daquelas previstas na lei 9.514/97, tanto em questão da avaliação quanto nos lances mínimos a serem adotados nas hastas, remetendo ao CPC. Por sua vez, para o leilão extrajudicial a lei 9.514/1997 exige que os contratos contenham cláusulas detalhadas que definam de maneira clara como o processo de praceamento deve ocorrer, sob pena de nulidade, requisitos normalmente não contemplados pelos contratos atualmente em vigor.  À parte as diferenças, a pergunta pertinente parece ser outra. Ora, se não existe um processo judicial em andamento - porque o rito de cobrança previsto na lei 6.766/1979 é extrajudicial -, é eficaz a alternativa do praceamento judicial, especialmente em um contexto onde o sistema Judiciário já enfrenta sobrecarga? Não!!  Sendo assim, sugere-se que o dispositivo legal receba alteração a fim de excluir a possibilidade de leilão judicial, para que todas as exigências do procedimento extrajudicial sejam atendidas desde o início.  Paralelamente, a questão do critério da avaliação do imóvel e da atualização da dívida também é essencial no rito da lei 9.514/1997, porque deve ser eleito pelas partes à época da celebração do contrato, nos termos do art. 24 da lei 9.514/1997, sob pena de nulidade. Tal valor deverá ser comparado com o valor venal do imóvel para fins de recolhimento de ITBI quando da consolidação de propriedade, aplicando-se o valor superior.  Indo além, caso o lote tenha recebido benfeitorias - e aqui uma observação técnica, a expressão correta deveria ter sido 'acessão'-, o valor do imóvel previsto em contrato estaria defasado porque tais acessões/benfeitorias não existiam à época a assinatura do contrato, demandando, por exemplo, durante a constituição em mora, (i) média entre avaliações realizadas por terceiros ou (ii) aplicação de índice de atualização do valor de avaliação, o que poderia ser facilmente anulado por qualquer motivo, já que não existe procedimento legal estabelecido para isso. Dessa forma, esse é outro ponto específico da lei 6.766/1979 a demandar a atenção do legislador.   As situações práticas mencionadas anteriormente representam apenas algumas das inúmeras questões que necessitam de uma regulamentação mais clara para garantir a eficácia da lei e prevenir nulidades no futuro. Conclusão Concluindo, portanto, a evolução da lei 6.766/79 foi progressiva, mas as questões aqui expostas revelam que ainda há uma grande jornada a ser trilhada. Que não falte inspiração, transpiração e muito trabalho aos Poderes Executivo e Legislativo, para promover adequações nas políticas públicas e na legislação, e ao Poder Judiciário, para proferir decisões mais justas, em prol de uma sociedade dinâmica, que carece de moradia digna, de urbanização eficaz, de legislações e normatizações que permitam licenciamentos urbanísticos e ambientais mais ágeis, com menor burocracia, sem prejuízo da tão sonhada segurança jurídica. Que tais propósitos possam nortear os legisladores, gestores e desenvolvedores, impulsionando a valorização humana e funcional das cidades. __________ 1 BRASIL. Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Dispõe sobre o parcelamento do solo urbano e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 20 dez. 1979. 2 BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 11 jul. 2001. 3 § 6º, art. 18, Lei 6.766/79: Na hipótese de o loteador ser companhia aberta, as certidões referidas na alínea c do inciso III e nas alíneas a, b e d do inciso IV do caput deste artigo poderão ser substituídas por exibição das informações trimestrais e demonstrações financeiras anuais constantes do sítio eletrônico da Comissão de Valores Mobiliários. 4 LEITE, Gisele. Manual prático do parcelamento do solo. Leme, SP: B.H. editora, 2024. 5 NADEU, Kelly Durazzo. Fato gerador e base de cálculo de IPTU nos loteamentos. In: CYRINO, Rodrigo Reis e outros (org.). Direito Notarial e Registral: temas contemporâneos. Curitiba: Ithala, 2022. p. 246-247. 6 AMADEI, Vicente de Abreu. Urbanismo realista. Campinas: Milennium, 2006.  7 Art. 34 da Lei 6.766/1979. Em qualquer caso de rescisão por inadimplemento do adquirente, as benfeitorias necessárias ou úteis por ele levadas a efeito no imóvel deverão ser indenizadas, sendo de nenhum efeito qualquer disposição contratual em contrário. § 1º Não serão indenizadas as benfeitorias feitas em desconformidade com o contrato ou com a lei. 2º No prazo de 60 (sessenta) dias, contado da constituição em mora, fica o loteador, na hipótese do caput deste artigo, obrigado a alienar o imóvel mediante leilão judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997.
Nos últimos anos, muitas foram as novidades legislativas que provocaram mudanças na incorporação imobiliária. De forma acertada, algumas promoveram o reconhecimento do que já existia na prática, mas que carecia de regulamentação - como a expressa previsão do condomínio de lotes, pela lei 13.465/17, e da incorporação de casas, pela lei 14.382/22. Esse último diploma, conhecido por "Lei do Serp", também trouxe avanços significativos no progresso tecnológico do sistema registral, tratando, dentre diversas questões, do Serp - Sistema Eletrônico dos Registros Públicos. Além disso, (tentou) estabelecer a uniformização de entendimentos regionais com o objetivo de atribuir maior segurança e previsibilidade à aplicação das regras registrais. Nesse terceiro grupo - o da uniformização de entendimentos regionais -, destaca-se a alteração promovida pela lei 14.382/22, ao incluir o §15 no art. 32 da lei 4.591/1964, nos seguintes termos: Art. 32. O incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terrenos e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação composto pelos seguintes documentos: [...] § 15. O registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre as frações ideais constitui ato registral único. (grifo nosso). O dispositivo pretendeu esclarecer uma velha discussão de quem vem primeiro: o ovo ou a galinha. Ops! A incorporação ou a instituição do condomínio. O extenso debate tem como ponto de partida a própria conceituação da incorporação imobiliária. Ao observar o disposto nos arts. 28 a 30 da lei 4.591/1964, extrai-se que os elementos constitutivos da definição da incorporação imobiliária são: (i) a natureza empresarial de coordenação e execução de empreendimentos imobiliários; (ii) a finalidade de alienação de bem imóvel futuro; e (iii) o objeto, que consiste nas unidades imobiliárias futuras representadas por frações ideais do terreno em regime condominial. Sobre o tema, ensina Melhim Chalhub: O texto legal fornece elementos para a caracterização da atividade de incorporação, permitindo conceituá-la como a atividade de coordenação e consecução de empreendimento imobiliário, compreendendo a alienação de unidades imobiliárias em construção e sua entrega aos adquirentes, depois de concluídas, com averbação do habite-se no registro de imóveis competente, em correspondência às frações ideais do terreno, quando a incorporação imobiliária tiver por objeto a implantação de condomínio especial por unidade autônoma. Traço característico dessa atividade é a "venda antecipada de apartamentos de um edifício a construir", que, do ponto de vista econômico e financeiro, constitui o meio pelo qual o incorporador promove a captação dos recursos necessários à consecução da incorporação; a captação de recursos, observam Orlando Gomes e Maria Helena Diniz, é a operação que "consiste em obter o capital necessário à construção do edifício, mediante venda, por antecipação, dos apartamentos de se constituir". (Grifo nosso). Vale ressaltar, como já mencionado por esta autora nos artigos "Loteamento e condomínio de lotes para fins tributários" e "Loteamento é incorporação? Parece, mas não é. Tem RET? Depende", que a definição da atividade da incorporação, dada pelos termos da lei 4.591/1964, ganhou novos contornos com as mudanças legislativas, de modo que o elemento do regime condominial já não se faz presente em todas as modalidades de incorporação, como ocorre no caso da incorporação de casas. Assim, para atualizar essa afirmação, pode-se dizer que, se a modalidade da incorporação a ser exercida revela a venda de futuras unidades autônomas em regime condominial, significa que a incorporação imobiliária pressupõe a existência do condomínio edilício. Sendo assim, indaga-se: como compor esses elementos no fólio real? A resposta abraça três atos: Registro da incorporação imobiliária - art. 32 da lei 4.591/1964 - autoriza o início dessa atividade empresarial e permite a alienação da futura unidade.  Instituição do condomínio - o art. 1.332 do CC e art. 7º da lei 4.591/1964 - a instituição do condomínio se dá por ato entre vivos ou por testamento, registrada no Cartório de Registro de Imóveis, transformando a propriedade comum em um condomínio edilício, definindo as partes que são propriedade exclusiva e as áreas comuns dos condôminos. Averbação do habite-se - art. 44 da lei 4.591/1964 e o art. 167, inciso II, 4), da lei 6.015/1973 - averbação do auto de conclusão da obra (seja o habite-se, termo de conclusão de obras ou outra designação conforme a prática local) que leva a notícia da construção à matrícula, vinculando-a às frações ideais discriminadas, consolidando, assim, o prenúncio da acessão das obras ao terreno já descrito no memorial de incorporação. E, qual seria esse bem objeto da negociação na incorporação imobiliária? Considerando que no momento da oferta ainda não há edificações, mas há o terreno, faz-se necessário capturar o art. 79 do CC - "são bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente" - para compreender que o imóvel ofertado na incorporação corresponde a uma parte do solo (fração ideal do terreno), existente desde o respectivo registro da atividade, acrescida da futura edificação a ser incorporada por meio da execução das obras prometidas pelo incorporador. Clique aqui para ler a íntegra da coluna.
Introdução As intervenções em áreas urbanas centrais levaram à deterioração urbana, impulsionando uma nova abordagem para as diretrizes urbanísticas locais. A evolução da compreensão dos espaços urbanos, seja pelo avanço tecnológico, pela intensificação das atividades ou pelo crescimento populacional, resultou em novos planejamentos e gestões, acompanhados de restrições urbanísticas e civis. Essas restrições buscam organizar o espaço urbano e melhorar a qualidade de vida dos moradores. O aspecto urbanístico é de competência municipal, enquanto o civil é responsabilidade exclusiva da União. Nesse contexto, as leis orgânicas municipais estabelecem normas para edificações, zoneamento e parcelamento do solo. Frequentemente associadas a empreendimentos imobiliários, tais restrições nem sempre estão regulamentadas, permitindo que empreendedores imponham restrições particulares. Com o tempo, as normas urbanísticas precisam se adaptar às novas realidades. Este artigo explora as características das restrições existentes, os requisitos para sua validade e a necessidade de adequações conforme as mudanças urbanas. Restrições urbanísticas legais As restrições urbanísticas legais são definidas pelos entes federativos para regular o parcelamento, uso e ocupação do solo urbano. Principalmente, cabem aos municípios o ordenamento territorial, a execução da política urbana e a garantia da função social da propriedade, conforme os arts. 30, VIII, e 182, caput e § 2º, da CF/88. Essas restrições, de ordem pública, determinam limites de áreas, tamanhos, coeficientes de aproveitamento e usos permitidos. Exemplos incluem normas de parcelamento e zoneamento urbano, que restringem atividades comerciais em áreas residenciais, impõem recuos mínimos, alturas máximas para edificações e exigências para aprovação de condomínios de lotes. Além disso, há restrições previstas no Código Civil, como desapropriação (art. 1.228, § 3º), direito de vizinhança (arts. 1.277 e 1.313), tombamento, servidões, passagem forçada e limitações ambientais (Código Florestal - lei 12.641/12, lei estadual de mananciais). O estatuto da terra (lei 4.504/64) também regula a propriedade rural. As restrições urbanísticas legais são imposições realizadas para satisfazer o princípio urbano de cuidar da maior parte da população e preservar o interesse da coletividade sobre o predomínio da menor parte populacional. Restrições urbanísticas convencionais As restrições urbanísticas convencionais são um tema debatido e ainda controverso no direito urbanístico. Segundo Hely Lopes Meireles (1975, p. 480), "essas restrições convencionais são supletivas das normas legais e atuam nos seus claros enquanto o legislador não estabelece normas urbanísticas que irão tomar o seu lugar". Geralmente aplicadas em loteamentos, essas restrições permitem que empreendedores imponham diretrizes urbanísticas supletivas à legislação vigente, conforme o art. 26, VII, da lei 6.766/79. No entanto, para serem válidas, devem constar no contrato padrão de promessa de compra e venda, conforme os arts. 18 e 26 da mesma lei. A validade das restrições convencionais exige sua formalização em contrato, aprovação pelo ente municipal e averbação no Cartório de Registro de Imóveis, garantindo publicidade e respeito ao Princípio da Concentração dos Atos na Matrícula. Ainda assim, é essencial verificar se tais restrições não contrariam a legislação urbanística vigente ou se apenas refletem interesses particulares em detrimento do coletivo. Outro aspecto relevante é a temporalidade dessas restrições, pois a dinâmica urbana impõe mudanças constantes. A adequação às novas realidades fáticas, à legislação municipal e aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal deve ser analisada para evitar a perpetuação de regras obsoletas. Diante disso, as restrições convencionais devem ser interpretadas com cautela, garantindo que cumpram sua função sem desrespeitar a legislação ou os interesses coletivos. Jurisprudência das restrições urbanísticas Os tribunais, especialmente o TJ/SP, têm consolidado o entendimento de que as restrições convencionais de loteamento não podem se sobrepor à legislação municipal, que prevalece mesmo quando o ato restritivo é reconhecido como válido. Esse posicionamento é evidenciado nos julgados 0028555-18.2010.8.26.0506, 2172228-15.2021.8.26.0000 e 1046169-07.2019.8.26.0602. O STJ também reforça que as restrições convencionais são apenas supletivas às normas legais e, portanto, não podem prevalecer sobre as leis urbanísticas municipais, que são normas de ordem pública. O Plano Urbanístico, de interesse geral e dinâmico, não pode ser limitado por restrições particulares que impeçam a adequação do ordenamento urbano às realidades locais. Esse entendimento foi firmado no recurso especial 289.093/SP, entre outros. Ao longo do tempo, o STJ tem consolidado essa linha de raciocínio em precedentes como o REsp 226.858/RJ, REsp 289.093/SP e REsp 1.774.818/SP. O TJ/SC também possui entendimento firmado sobre a questão, conforme o julgado 5047048-55.2022.8.24.0000. Apesar dessas decisões, não há um entendimento unificado sobre o tema nos tribunais brasileiros. Há divergências entre julgados que defendem: (i) a prevalência das restrições convencionais mais rígidas em relação à legislação vigente; (ii) a supremacia da lei sobre tais restrições; e (iii) a necessidade de requisitos específicos para a validade das restrições convencionais, entre outros posicionamentos. Conclusão As restrições urbanísticas são e continuarão sendo essenciais para a política urbana. No entanto, é fundamental garantir a legalidade das restrições urbanísticas convencionais impostas por particulares. Embora essas restrições possam suprir lacunas nas legislações municipais, sua aplicação deve ser razoável, sem visar apenas interesses particulares ou econômicos. Além disso, é imprescindível o cumprimento dos requisitos mínimos exigidos, incluindo a formalização no ato de aprovação do empreendimento, nos contratos de promessa de compra e venda, no registro no Cartório de Imóveis, nas matrículas dos imóveis e em demais documentos necessários para sua publicidade. Diante das constantes transformações sociais, é essencial avaliar a eficácia prática dessas restrições, que podem perder validade com a entrada em vigor de novas leis suplementares. Por fim, o tema demanda maior aprofundamento e a consolidação de um entendimento pacificado nos tribunais, dada sua relevância para o ordenamento urbano e o desenvolvimento social. ____________ 1 AMADEI, Vicente Celeste; AMADEI, Vicente de Abreu. Como lotear uma gleba: o parcelamento do solo urbano e seus aspectos essenciais - loteamento e desmembramento. 3. Ed. São Paulo. Millennium, 2012. 2 BORDALO, Rodrigo. Direito urbanístico. 2ª ed. Rio de Janeiro: Método, 2022. 3 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. 4 BRASIL. Decreto-lei 271, de 28 de fevereiro de 1967. 5 BRASIL. Decreto-lei 3.079, de 15 de setembro de 1938. 6 BRASIL. Decreto-lei 58, de 10 de dezembro de 1937. 7 BRASIL. Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979. 8 BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. 9 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 10 CHEZZI, Bernardo Amorim. Condomínio de Lotes: Aspectos Civis, Registrais e Urbanísticos. 2.ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022. 11 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2009. 12 FERNANDES JÚNIOR, João Gilberto Belvel. O bairro através do direito e da economia: um modelo analítico para restrições convencionais de loteamento urbano. In: Revista de Direito Imobiliário, vol. 92. p. 139-158. São Paulo: Ed. RT, jan/jun. 2022. 13 MEIRELLES, Hely Lopes. As restrições urbanísticas de loteamento e as leis urbanísticas supervenientes. In: Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, Ed. Fórum, nº 120 abr/jun, 1975. 14 MORANDI, Giceli Cristiani. As restrições urbanísticas convencionais e sua averbação na matrícula imobiliária como forma de publicidade e segurança jurídica. In: Revista de Direito Imobiliário, vol. 82. p. 295-312. São Paulo: Ed. RT, jan/jun. 2017. 15 NASCIMENTO, Fábio Severiano do. As Restrições Convencionais e as Leis Urbanísticas no Loteamento. In: Revista de Direito da Cidade, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, 2012. 16 NIEBUHR, Pedro. Parcelamento do solo urbano. In: Curso de Direito Imobiliário / Marcus Vinícius Motter Borges, coordenador. - 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. 17 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. 18 SOUZA, Demetrius Coelho. O direito de construir e limitações de ordem administrativa. In: Estudos em Direito Imobiliário e Direito Urbanístico / Gabriel Carmona Baptista e Renata Calheiros Zarelli, coordenadores. v. 4. Londrina: Thoth, 2023. 19 TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015. 20 VARGAS, Heliana Comin; CASTILHO, Ana Luisa Howard de. Intervenções em centros urbanos: objetivos, estratégias e resultados. 3. ed. Barueri. Manole, 2015.
A dignidade do ser humano passa pelo reconhecimento da propriedade imobiliária. Ter um patrimônio para ser chamado de seu significa conquista a partir dos próprios esforços, assim como moradia para si mesmo ou para a família, além da possibilidade de realizar negócios e auferir renda. O mesmo imóvel poderá, ainda, servir como herança. Assim, é inegável a importância da propriedade imobiliária, e consequentemente, dos instrumentos à disposição para se obter o título de proprietário de determinado bem imóvel. Nesse contexto, destaca-se aqui como objeto de estudo o procedimento extrajudicial de usucapião inaugurado no nosso sistema jurídico através da lei 13.105/15 - Código de Processo Civil, que completando agora 10 anos de vigência vem se mostrando como excelente ferramenta, produzindo reflexos positivos a toda a sociedade. Assim, apesar de já internalizado no ordenamento jurídico, pretende-se contribuir para dar ainda mais luz a esse instrumento jurídico. Do texto constitucional já podemos extrair a importância da propriedade, pois no Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I - Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, e precisamente no art. 5º, caput, (BRASIL, 1988) temos que: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] Ou seja, a propriedade é garantia fundamental, consequentemente, tem-se a importância dos instrumentos jurídicos à disposição para obtenção e proteção da propriedade. Neste trabalho, a proposta é o destaque ao procedimento extrajudicial de usucapião, haja vista sua praticidade e celeridade em contraposição ao processo judicial, sendo um procedimento extremamente vantajoso por vários aspectos, desde o acesso ao tabelião para troca de informações e sugestões, até a concretização do procedimento. Certamente foi um ganho enorme para a sociedade ter a abertura dessa porta de acesso para o reconhecimento da propriedade, seja rural ou urbana. Sobrecarregado com o volume de processos das mais variadas espécies, o Poder Judiciário não detém condições de entregar resposta rápida à pretensão, sendo que a cada exigência de documento e peticionamento o processo retorna à fila de conclusão, que não é pequena, levando assim, anos para a efetiva tutela jurisdicional. Ao contrário, perante o tabelião de notas, e numa segunda fase junto ao Oficial de Registro de Imóveis, é muito mais fácil e prático o acesso, apesar das exigências documentais e procedimentais a serem respeitadas que, é claro, igualmente demandam tempo, mas, é um tempo muito menor se comparado ao processo judicial, apesar dos esforços dos integrantes do Poder Judiciário. Claro que não há perfeição, podendo existir algum ponto ou outro que necessite de ajuste, como por exemplo, maior transparência no trâmite do procedimento extrajudicial, ou seja, informações sobre o seu andamento e posição na lista de trabalhos do respectivo cartório. Algumas diligências simples como essas poderiam garantir que cada procedimento observasse a ordem de protocolos, que não fosse dada preferência àqueles mais fáceis de resolver em detrimento dos casos mais complexos. Importante ainda, em razão da precariedade das aquisições e transferências imobiliárias, o procedimento extrajudicial de usucapião ganha relevo como instrumento de concretização da dignidade da pessoa humana sob o viés da propriedade. Direito fundamental à propriedade Historicamente o direito à propriedade acompanha a evolução da humanidade, passando de caráter absoluto e intocável para atualmente revestir-se de função social, conforme estabelecido no art. 5º, inciso XXIII e art. 170, inciso III, da CF/88. Afirmam Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (PAULO; ALEXANDRINO, 2017, p. 146): A propriedade privada era considerada um dos mais importantes direitos fundamentais na época do Liberalismo Clássico. Era o direito de propriedade, então, visto como um direito absoluto - consubstanciado nos poderes de usar, fruir, dispor da coisa (jus utendi, jus fruendi e jus abutendi), bem como reivindicá-la de quem indevidamente a possuísse - e oponível a todas as demais pessoas que de alguma forma não respeitassem o domínio do proprietário.No âmbito do nosso Direito Constitucional positivo, não mais é cabível essa concepção da propriedade como um direito absoluto. Deveras, nossa Constituição consagra o Brasil como um Estado Democrático Social de Direito, o que implica afirmar que também a propriedade deve atender a uma função social. Essa exigência está explicitada logo no inciso XXIII do art. 5º, e reiterada no inciso III do art. 170 (que estabelece os princípios fundamentais de nossa ordem econômica). Percebemos assim, uma evolução de concepção da função e da importância da propriedade, deixando de ser algo destinado somente ao atendimento do interesse individual para se tornar parte da colaboração para o bem-estar da sociedade como um todo, principalmente no que se relaciona com o direito à moradia. Ora, para haver moradia, presume-se a edificação sobre um terreno que deve pertencer a alguém, estando, assim, moradia e propriedade imobiliária umbilicalmente ligadas. Oportunizar a concretização do direito à moradia sem igualmente assegurar o direito à propriedade seria conceder apenas metade do direito. Além da edificação que servirá de lar para a pessoa ou família, a segurança, tranquilidade e bem-estar do ser humano passa por ter em mãos a propriedade do imóvel, garantia de que aquele bem não lhe será retirado, ou no mínimo, de que terá os meios para defesa do que é seu. Segundo Sílvio de Salvo Venosa (VENOSA, 2011, p. 167): Sem dúvida, embora a propriedade móvel continue a ter sua relevância, a questão da propriedade imóvel, a moradia e o uso adequado da terra passam a ser a grande, senão a maior questão do século XX, agravada nesse início de século XXI pelo crescimento populacional e empobrecimento geral das nações. Este novo século terá sem dúvida, como desafio, situar devidamente a utilização social da propriedade.A concepção de propriedade continua a ser elemento essencial para determinar a estrutura econômica e social dos Estados. A previsão do jurista se confirma na medida em que o direito fundamental à propriedade continua sendo essencial, com ainda mais relevo no momento atual de mudanças climáticas, haja vista eventos da natureza que atingem por primeiro e mais gravemente aqueles que residem em locais de risco, justamente por não possuírem uma propriedade em lugar seguro e adequado para fixar moradia, muito menos é claro, a regularidade documental do imóvel. Conforme matéria divulgada pela ANOREG/BR - Associação dos Notários e Registradores do Brasil - (CUNHA, 2019): 30 milhões dos imóveis no Brasil, não possuem escritura ou documento elaborado em cartório que comprove a titularidade do imóvel, segundo informações do Ministério de Desenvolvimento Regional. [...] E complementando, a ANOREG/SP - Associação dos Notários e Registradores do Estado de São Paulo (2023), igualmente tratando sobre o assunto, publicou o seguinte texto de referência: Mas o que leva a esse alto número de imóveis irregulares no Brasil? Bem, as razões são diversas e até mesmo históricas. A ausência de políticas públicas ao longo dos anos, a desinformação por parte da população e ilegalidades na comercialização são alguns dos catalizadores desse problema.A falta de regularização dos imóveis traz inúmeras consequências, principalmente econômicas, aos municípios e até mesmo à União, que deixam de arrecadar impostos como: IPTU - Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbano, ITBI - Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis e IR - Imposto de Renda. Em relação às empresas e pessoas físicas, esse problema afeta na transmissão da propriedade, impedindo ou dificultando os atos de compra e venda, doação ou até mesmo impossibilitando oferecer o imóvel em garantia para um empréstimo ou financiamento.Em São Paulo, principal metrópole da América do Sul, o cenário se repete. Segundo dados da Secretaria Municipal de Habitação, há cerca de 750 mil imóveis em situação irregular na cidade. É exatamente esse o cenário atual, o direito fundamental à propriedade, apesar de firmemente previsto na Constituição Federal, é ainda pouco usufruído pela população que convive com a irregularidade nas ocupações de terrenos, formando um círculo vicioso de prejuízos. Em ADIn 5.783, de relatoria da ministra Rosa Weber, o STF detidamente abordou esse direito fundamental, trazendo aspectos culturais e coletivos ao julgar a inconstitucionalidade de dispositivo de lei do Estado da Bahia. O julgado, em resumo, é assim ementado: Impugnado o art. 3º, § 2º, da lei 12.910/13 do Estado da Bahia, que impõe prazo à regularização fundiária das terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades de fundo e fecho de pasto mediante a concessão de uso [...] Violação dos arts. 1º, III, 5º, XXII, 215, § 1º, 216, I e § 1º, da Constituição. O direito fundamental à propriedade (art. 5º, XXII), compreendido à luz do direito fundamental à cultura e do direito humano à propriedade e à posse coletivas, traduz moldura normativa que abriga a proteção das formas tradicionais de pertencimento. (ADIn 5.783, STF, rel. min. Rosa Weber, j. 6/9/23, P, DJE de 14/11/23). O que podemos concluir é que o direito fundamental à propriedade é consagrado na Lei Suprema do ordenamento jurídico que é a Constituição Federal, reafirmado pelo Poder Judiciário e normas infraconstitucionais. Contudo, para o efetivo acesso a ele, temos alguns entraves, dentre os quais a morosidade e os custos parecem ser os maiores obstáculos, pois é caro e demorado realizar o procedimento - que envolve inclusive a coleta de documentos - para se ter o registro nos termos do art. 1.245 do Código Civil, lei 10.406/02 (BRASIL, 2002). Deveria o Estado (lato sensu) buscar fomentar a regularidade imobiliária, buscando associar moradia e propriedade, objetivando a dignidade da pessoa humana regada pela segurança jurídica. Talvez o lançamento de programas sociais em períodos específicos do ano para fomentar que as pessoas busquem o registro imobiliário com algum desconto no pagamento de valores seria uma forma válida. Um programa em tais moldes exigiria a união de esforços entre Oficiais de Registro de Imóveis, tabelionatos de notas e prefeituras municipais, e precisaria contar também, com a participação dos Estados e da União. Os reflexos positivos compensam o trabalho, pois concretizado o direito fundamental à propriedade, aqui imobiliária, a pessoa terá mais segurança, poderá obter um financiamento para edificar, realizar um novo negócio com o imóvel, transferir com maior valor, doar, transmitir aos herdeiros etc., além do que, os cofres públicos irão receber os tributos incidentes sobre o imóvel, como o tributo municipal IPTU. Do direito fundamental positivado à realidade do cidadão brasileiro há claramente uma distância que precisa ser encurtada, razão da importância do instrumento que possibilita a aquisição e regularidade da propriedade imobiliária de forma extrajudicial. Confira a íntegra da coluna.