COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Migalhas Edilícias >
  4. A relação entre patrimônio de afetação e resolução de contrato imobiliário

A relação entre patrimônio de afetação e resolução de contrato imobiliário

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Atualizado às 07:23

O tema da retenção de valores em contratos imobiliários, especialmente após a lei 13.786/2018, permanece em destaque, ainda que a referida legislação tenha pacificado em boa parte as soluções das ações judiciais que versam sobre o assunto.

Apesar da clareza dos comandos jurídicos da lei 13.786/2018, o Tribunal de Justiça de São Paulo vem gerando discussões ao flexibilizar cláusulas contratuais que tratam da retenção após a conclusão da construção do empreendimento com a devida averbação da construção na matrícula imobiliária.

O patrimônio de afetação, dentre vários impactos para determinado empreendimento; para os adquirentes das unidades imobiliárias; bem como para o incorporador/construtor, possui uma ligação umbilical com o percentual de retenção dos valores pagos em caso de resolução de contrato, conforme previsto no §5º1 do artigo 67-A da lei 4.951/1964, inovação trazida pela lei 13.786/2018.

O TJSP, em decisões recentes, sugere que a averbação da construção, por si só, seria suficiente para extinguir o patrimônio de afetação, anulando, assim, as cláusulas que preveem retenção de 50% dos valores pagos.

A exemplo, destacam-se os julgados abaixo sob relatoria dos Desembargadores Sergio Alfieri e Cláudio Godoy respectivamente em que tornam nula a cláusula de retenção de 50% quando finalizada a obra. Ressalta-se que ambos os precedentes foram julgados no ano de 2023.

(...). Rescisão por conveniência do adquirente. Contrato celebrado na vigência da lei 13.786/2018. Devolução das parcelas. Cabimento. Inteligência das Súmulas 1, 2 e 3/TJSP e 543/STJ. Retenção de 50% dos valores pagos ao fundamento de incorporação submetida ao regime do patrimônio de afetação (arts. 31-A e 31-F da lei 4.591/64). Inadmissibilidade. Conquanto instituído o regime do patrimônio de afetação, a obra já foi concluída, com a instituição de condomínio e atribuição das unidades aos adquirentes, segundo a afirmação do autor que foi confirmada pelas rés (art. 374, II, CPC). Abusividade de imposição dos efeitos do instituto ao adquirente após a conclusão da obra, sob pena de se perpetuar em seu desfavor garantia patrimonial em exclusivo interesse do incorporador. Retenção de 25% do montante pago (art. 67-A, II, da Lei nº 13.786/2018), aceita pela jurisprudência para cobrir as despesas administrativas suportadas pela vendedora. (...). RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESSA PARTE, PROVIDO, sem reflexo no ônus de sucumbência2.

Compromisso de compra e venda. Resolução por iniciativa da compradora, o que transitou em julgado. Percentual de retenção que de fato não se pode limitar a 20%, devendo-se majorar a 25%, pois firmado o contrato já sob a vigência do art. 67-A, II da lei 4.591/64, introduzido pela lei13.786/2018. Percentual de 50% do art. 67-A, § 5º da lei 4.591/64 que, porém, não se aplica ao caso. Empreendimento de fato sujeito ao regime de patrimônio de afetação, mas obra já concluída e entregues as unidades quando da resolução do contrato. Intepretação teleológica da norma. Percentual majorado de retenção que tem a finalidade de assegurar a consecução do empreendimento, e que não se justifica após a sua entrega, como no caso. Precedentes. Requisitos para a extinção formal do patrimônio de afetação do art. 31-E da lei 4.591/64 que não se confundem com a finalidade da multa mais alta estabelecida no art. 67-A, § 5º, do mesmo diploma. Sentença parcialmente revista. Recurso provido em parte.3

Seguindo a lógica utilizada para se proferir as decisões acima, o TJSP aparentemente desvirtua os requisitos previstos no artigo 31-E, I4, da lei 6.591/1964 e isso se dá, pois, pela simples interpretação gramatical, não basta somente o preenchimento de apenas um dos requisitos para a extinção do patrimônio de afetação, quais sejam: (i) averbação da construção na matrícula imobiliária; (ii) registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição do adquirente; (iii) extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento. Trata-se de preenchimento cumulativo. 

Pelo preenchimento cumulativo dos requisitos acima, para haver extinção completa do patrimônio de afetação, há de se quitar o financiamento tomado junto a instituição financeira para a construção do empreendimento, o que pode ocorrer somente em momento posterior a averbação da construção por conta da sistemática de repasse comum na operação do mercado imobiliário.

É justamente o que se vê como fundamento de outros julgados, sendo um deles de relatoria também do Desembargador Claudio Godoy, o mesmo que entende pela extinção de patrimônio de afetação com a simples averbação da construção na matrícula imobiliária, que se decide pelo preenchimento de todos os requisitos para se considerar extinto o patrimônio de afetação, com os destaques abaixo.

(...) Conclusão das obras que, por si só, não libera o bem de sua afetação. Necessidade de comprovação de liquidação das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento (...)5

Extinção da afetação, ademais, que não se dá tão somente pelo término e averbação da obra, instituído o condomínio, senão também pela satisfação das obrigações garantidas, incluído o crédito do financiador, e cancelamento do registro respectivo. Artigo 31-E, inciso I, da lei 4.591/64, com redação dada pela lei 10.931/04.6

Não menos importante, mas para além de toda engrenagem imobiliária, há de se ressaltar também a lógica contratual pautada no princípio basilar da boa-fé objetiva, essencial na interpretação de todos os contratos, sejam eles privados e até mesmo de consumo.

A boa-fé objetiva guarda consigo um principal parâmetro de comportamento a evitar traições e contradições entre as partes. É o que defende Flávio Tartuce a afirmar que as partes devem "atuar de modo a não trair a confiança do outro", de maneira a não frustrar justas expectativas7.""

É neste sentido de se evitar a quebra de confiança e frustrações de expectativas inicialmente criadas que a boa-fé está positivada em alguns artigos do código civil, tais como o 113, III8, 187 e 4229, servindo, então, como um norte para todas as relações contratuais, as quais as partes devem respeitar quase que religiosamente.

Dessa forma, para se uniformizar as decisões judiciais, é essencial uma análise ampla e completa a fim de evitar inseguranças e a criação de uma loteria jurídica, levando em consideração que o mercado imobiliário como peça vital na economia nacional.

Evidentemente que havendo a existência da onerosidade excessiva, tanto em contratos paritários, quanto nas relações de consumo, existe a possibilidade de revisão equitativa das condições contratuais iniciais e até mesmo a extinção, conforme manda o artigo 6º, V10 do Código de Defesa do Consumidor ao dispor sobre os direitos dos consumidores.

Para se configurar, com base no artigo 478 do Código Civil, onerosidade excessiva há de se preencher os requisitos contido no referido comando legislativo, a saber: (i) contrato de prestação continuada; (ii) acontecimento superveniente extraordinário; (iii) excessividade da prestação; (iv) extrema vantagem.

Sendo assim, há de se analisar com cuidado e atenção acerca da flexibilização do percentual de retenção em caso de resolução contratual motivada pelo comprador para se evitar a violação de preceitos imobiliários e contratuais, gerando, assim, um protecionismo exacerbado e descontrole contratual.

Não se deve perder de vista que, mesmo sendo, em regra, um contrato de adesão, muito pautado nos princípios do Código de Defesa do Consumidor, os adquirentes devem guardar consigo um comportamento probo e justo durante a execução da relação contratual e até mesmo com a extinção da relação.

Em conclusão, a jurisprudência do TJSP quanto à retenção de percentual em casos de resolução de contrato imobiliários demanda análise crítica, buscando conciliar os interesses das partes e garantir a segurança jurídica necessária no setor.

__________

1 Quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação, de que tratam os arts. 31-A a 31-F desta Lei, o incorporador restituirá os valores pagos pelo adquirente, deduzidos os valores descritos neste artigo e atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente, admitindo-­se, nessa hipótese, que a pena referida no inciso II do caput deste artigo seja estabelecida até o limite de 50% (cinquenta por cento) da quantia paga.

2 TJSP; Apelação n. 1009289-34.2022.8.26.0562; Des. Rel. Sergio Alfieri; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 23/02/2023

3 TJSP; Apelação n. 1024643-54.2021.8.26.0071; Des. Rel. Claudio Godoy; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 06/02/2023

4 Art. 31-E. O patrimônio de afetação extinguir-se-á pela:       

I - Averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento

5 TJSP; Agravo de Instrumento n. TJSP; Agravo de Instrumento n. 2287505-50.2019.8.26.0000; Des. Rel.: Ana Lucia Romanhole Martucci; Órgão Julgador: 33ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 25/09/2020.

6 TJSP; Agravo de Instrumento n. 052507-11.2017.8.26.0000; Rel. Des.:Claudio Godoy; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 27/11/2017

7 TARTUCE, Flávio. Boa-Fé Objetiva Processual - Reflexões quanto ao atual CPC e ao Projeto do Novo Código. JusBrasil, [S. l.], 2012. Disponível aqui.

8 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

II - Corresponder à boa-fé

9 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

10 Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

 V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;