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Migalhas Edilícias

Abordagens do direito imobiliário.

Alexandre Junqueira Gomide e André Abelha
No dia 28 de junho de 2022, entrou em vigor a lei 14.382, que consolidou e detalhou o Sistema Eletrônico de Registros Públicos ("Lei do SERP"), declaradamente voltada aos objetivos de modernizar e simplificar os procedimentos registrais relativos aos atos e negócios jurídicos previstos na lei 6.015/73, bem como as incorporações imobiliárias disciplinadas na lei 4.591/64. Em meio a várias novidades e alterações produzidas nas duas normas citadas, dedica-se o presente artigo a tratar sobre o controverso regime condominial especial fundado na alínea "i" e nos §§1°-A e 15 do art. 32 da Lei de Condomínios e Incorporações Imobiliárias1. Todavia, antes de penetrar na matéria proposta, cumpre trazer a lume um famoso enigma de lógica, de autoria desconhecida (ou, ao menos, de muito difícil identificação), que servirá de fio condutor ao raciocínio a ser desenvolvido neste trabalho. Pois bem. Se 6 homens levam 6 dias para cavar 6 buracos, quanto tempo apenas 1 deles precisará para fazer meio buraco? As pessoas surpreendidas pela questão, em geral, recorrem, instintivamente, a dois expedientes para tentar chegar à resposta correta: alguns imaginam que possa existir algo de errado na construção linguística da pergunta, enquanto outros se apegam a cálculos aritméticos pelo sistema de regra de três. Entretanto, a resposta é muito mais simples, direta, prescinde de qualquer conta matemática e está bem à frente dos olhos: o homem executaria a tarefa em poucos segundos, uma vez que não existe "meio buraco". Qualquer cavidade realizada, mediante um sutil toque da pá contra a superfície de um solo, já constitui um buraco. Embora aspectos como profundidade, largura e formato possam variar, em toda fissura traçada sobre o chão está presente uma unidade completa de buraco. Com o advento da Lei do SERP, os §§1°-A e 15 do art. 32 da lei 4.591/64 passaram a dispor que o registro do memorial de incorporação sujeita as frações de terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, mediante ato registral único. À vista desse incremento legislativo, dois tipos de reações eclodiram no ordenamento brasileiro. De um lado, sustenta-se que o legislador criou nova modalidade condominial, de duração transitória, cujo registro não afasta a necessidade de se efetuar uma segunda inscrição, para definitiva constituição do condomínio edilício após o término da construção e expedição do habite-se pelo Município. Essa posição conservadora encontra arrimo no Tomo II das Normas de Serviço de Cartórios Extrajudiciais da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo (antes de sua alteração pelo Provimento CGJ nº 07/2023)2, com fundamentos na impossibilidade de se atribuir matrículas autônomas a unidades sem existência física consumada e no receio de impactos negativos nos casos em que não aconteça a conclusão integral das obras. Filiam-se à corrente Moacyr Petrocelli de Ávila Ribeiro3, além de Carlos Eduardo Elias de Oliveira e Flávio Tartuce (que, para reforçar a diferença frente ao direito real sobre prédios de unidades prontas e acabadas, batizaram a figura com o nome de condomínio protoedilício)4. Na via oposta, Melhim Namem Chalhub e Daniella Rosa afirmam que "a Lei 14.382/2022 não criou nenhuma nova modalidade de condomínio, apenas se refere à qualificação da propriedade condominial já anteriormente caracterizada no art. 29 da lei 4.591/1964"5. Esclarecem ainda que a bipartição entre um condomínio temporário e outro definitivo vai de encontro às finalidades de simplificação e redução de custos invocadas no art. 1° da Lei do SERP6. Como base normativa a esse segundo entendimento, citam-se dispositivos da Parte Extrajudicial do Código da Corregedoria Geral de Justiça do Rio de Janeiro, que, mesmo antes da Lei do SERP, autorizam os registradores a abrirem, de ofício, matrículas individualizadas para unidades ainda não construídas desde o registro do memorial de incorporação do empreendimento em curso, aproveitando as mesmas inscrições, a posteriori, quando da averbação de habite-se e da certidão de conclusão das obras7. Com as mais devidas e respeitosas vênias aos adeptos da primeira compreensão, as formulações para se desdobrar o fenômeno condominial em duas estruturas jurídicas e ainda lhe atribuir nome específico para fins de demarcação conceitual remetem aos esforços daqueles que tentam decifrar o desafio do "meio buraco" mediante sistemas matemáticos, regras de três ou subterfúgios linguísticos. Também aqui, verifica-se certa inclinação, por instinto, a se buscar soluções complicadas para uma questão cuja resposta se revela elementar. Ora, tal como não existe metade de um buraco, a Lei do SERP não instituiu dois tipos de condomínios nas incorporações imobiliárias, de modo que o regime condominial especial a que alude o §1º-A do art. 32 da lei 4.591/64 representa a constituição antecipada do mesmo condomínio edilício, que se deflagra sob a forma de frações ideais de terreno e, mediante incidência natural do princípio da acessão, assume o aspecto permanente de prédio com unidades fisicamente construídas. Em interessante artigo publicado nesta sede, Carlos Eduardo Elias de Oliveira e Flávio Tartuce indicam pontos que consideram divergentes entre o por eles denominado condomínio protoedilício e a figura condominial edilícia clássica, quais sejam, respectivamente: (i) a dispensa e a exigência de edificação física; (ii) representações por comissão de representantes e por síndico; (iii) criação mediante registro da incorporação e de ato institutivo específico no Cartório de Registro de Imóveis; (iv) objetivos de proteger titulares de futuras unidades contra intercorrências no andamento das obras e de regulamentar a interação entre condôminos no contexto de um prédio já em atividades cotidianas; (v) extinções por desistência do incorporador e somente na hipótese de ruína sem reconstrução8. Obedecida a ordem de apresentação dos argumentos, procede-se à sua desconstrução, a começar pelo pressuposto da existência física da edificação pronta e acabada. Primeiramente, urge sinalizar que o caput do art. 8º da Lei nº 4.591/64 reconhece, desde a sua redação original, condomínio edilício "em terreno onde não houver edificação". Nada obstante, com a edição da Lei nº 13.465/2017, ao Código Civil fora acrescido o art. 1.358-A, que chancela legislativamente o condomínio de lotes, aplicando-se-lhe, no que couber, as disposições de condomínio edilício dos arts. 1.331 a 1.358 do diploma cível. De acordo com conceito extraído dos §§ 2º e 4º do art. 2º da Lei nº 6.766/79 (parcelamento do solo urbano), lotes são "espaços destinados a edificação", i.e., áreas que não contêm nenhuma construção ou, quando muito, apenas infraestrutura básica e obras inacabadas. Tal definição igualmente ilustra o vazio total ou parcial presente nas frações ideais e acessões sobre as quais recai o regime condominial especial do art. 32, §1º-A, da Lei nº 4.591/64. Isto posto, se o legislador inequivocamente dotou o condomínio de lotes de natureza edilícia (art. 1.358-A, §2º, I, do CC), a manifesta similitude impõe que se atribua o mesmo perfil jurídico ao instituto decorrente da Lei do SERP. Afinal, conforme ensina André Abelha: "a única diferença em relação a um prédio de apartamentos é que todas as unidades imobiliárias são lotes. Como poderiam ser apartamentos, ou lojas, ou casas, ou misto, e nada disso alteraria a natureza jurídica desse direito real"9. Logo, se o agrupamento de lotes tem caráter edilício, o mesmo se aplica às frações ideais de terreno e acessões enunciadas no art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64. Por sua vez, os contrastes exibidos nos itens (ii), (iii) e (iv) acima ilustram meras filigranas formalistas e não têm o condão de determinar que um dos condomínios tenha caráter edilício e o outro não. Basta observar que, com diferenças de estrutura jurídica flagrantemente mais acentuadas, a multipropriedade10 e o condomínio urbano simples11 não deixaram de ser classificados como espécies do gênero edilício. Já a separação dos momentos de instituição depõe contra os propósitos da Lei do SERP - pois aumenta a burocracia registral, ao invés de diminuí-la - e, ao fim e ao cabo, desemboca em registros realizados no mesmo fólio, qual seja o Cartório de Registro de Imóveis competente. No que tange aos objetivos citados por Carlos Eduardo Elias de Oliveira e Flávio Tartuce, embora desiguais, eles não se mostram mutuamente excludentes, pois o mesmo instituto jurídico, considerado de modo unitário, pode, em uma primeira fase, salvaguardar direitos de promitentes adquirentes e, no estágio da conclusão das obras em diante, permanentemente disciplinar os interesses coletivos e individuais dos condôminos. São situações que se somam, e não se repelem. Com relação às hipóteses do item (v), não é propriamente a desistência do incorporador, tampouco a ruína da edificação, que causam, de per si, a extinção dos condomínios em estudo. O direito real finda quando, em adição a esses fatos: (a) o conjunto de promitentes adquirentes, mediante deliberação em assembleia, resolve não dar continuidade à construção interrompida e liquidar eventual patrimônio de afetação instituído para garantir o empreendimento; ou (b) os condôminos decidem, também por votação assemblear, não reconstruir o prédio e promover alienação do terreno, distribuindo os recursos financeiros auferidos de acordo com a divisão do solo em frações ideais. Nota-se, portanto, que o término efetivo de ambas as figuras condominiais repousa na decisão da comunidade de titulares pela sua liquidação, tendo-se assim mais um componente a evidenciar que o art. 32, §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64 retrata, na verdade, uma situação unitariamente integrada ao condomínio edilício consagrado nos arts. 1.331 a 1.358 do Código Civil. Refutadas as premissas suscitadas para balizar a tese de que a Lei do SERP teria criado um condomínio preliminar de natureza e existência distintas às do empreendimento plenamente edificado, cumpre demonstrar que, no momento do registro do ato de incorporação, o acervo de frações ideais e acessões contemplado no art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64 já dispõe de todos os elementos essenciais necessários à caracterização do condomínio edilício que virá a se materializar quando da integral conclusão das obras em curso na incorporação imobiliária12. É o que se passa a fazer, ponto a ponto, considerando o total de oito elementos fundamentais à constituição dos condomínios edilícios, que se subdividem em três categorias (estruturais, formais e distintivos13). A) Elementos Estruturais A.1) Conjugação de partes de domínio exclusivo com áreas de propriedade comum No §1º do art. 1.331 do CC, o legislador lança mão da expressão "partes suscetíveis de utilização independente", citando apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas. Em seguida, no §2º, faz referências ao solo, estrutura predial, telhado, rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e eletricidade, bem como às demais partes de utilização comum no edifício. Trata-se de dois elencos exemplificativos (numerus apertus14) e, portanto, abertos para admitir livremente quaisquer outros componentes, inclusive frações ideais e acessões destinadas ao futuro uso privativo de seus titulares e em comunhão destes com os demais promitentes adquirentes da edificação em obras15. Afinal, inexiste determinação, no texto legal, de que as partes da edificação devam corresponder a construções prontas, acabadas e com habite-se expedido. A.2) Existência de frações ideais sobre o solo e as áreas comuns O próprio objeto material contido no condomínio do art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64, considerado de per si, já atende a este pressuposto, pois se trata de direito real que recai sobre frações ideais do terreno e respectivas acessões. No tocante à sua ligação com os módulos individuais de cada titular, dispõe o art. 29, caput, da Lei nº 4.591/64 que a incorporação envolve "frações ideais de terreno vinculadas a unidades autônomas em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial". A norma, sem modificação textual pela Lei do SERP, sempre deixou clara a existência do condomínio edilício mesmo quando não concretizadas as obras, mas já iniciada a incorporação mediante registro do memorial. A.3) Rateio de despesas ordinárias e extraordinárias relativas às áreas comuns É equivocada a visão de que o dever de pagar contribuições relativas ao condomínio edilício só existe quando se tem uma edificação fisicamente pronta e acabada16. Ora, contribuir, no contexto predial, significa arcar, na proporção das frações ideais titularizadas, com despesas de todas as ordens relativas às partes de uso comum do conjunto imobiliário em regime condominial. É claro que, na realidade de um terreno vazio, não se haverá de cogitar, por exemplo, a partilha de custos com funcionários para trabalharem em uma portaria que sequer existe. Contudo, aquisições de materiais e de mão de obra necessários à construção do prédio, a despeito de gerenciadas pela incorporadora, formam um custo total de obras que é distribuído para pagamento por cada promitente comprador das futuras unidades (atuais titulares de frações ideais) dentro das cláusulas de contratos de promessa de compra/venda na planta. Novamente, ainda que por um modus operandi peculiar, verifica-se, já no condomínio formado com o registro do memorial de incorporação, um rateio de despesas comuns do empreendimento entre os coproprietários, à razão das frações ideais sob propriedade de cada um deles. Assim como no prédio finalizado com emissão do habite-se, aplica-se, desde as origens de sua construção, a obrigação insculpida no art. 1.334, I, do CC, justamente para evitar que, já no momento do parto, o condomínio edilício recém-criado encampe enriquecimento sem causa, em afronta ao art. 884 do CC17. B) Elementos Formais B.1) Ato Constitutivo De acordo com o art. 1.332 do CC, o condomínio edilício é instituído por ato entre vivos ou testamento, de que devem constar: (i) discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas umas das outras e das partes comuns; (ii) determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, com relação ao terreno e às partes comuns; e (iii) o fim a que as unidades se destinam. Nesta senda, urge anotar que a Lei do SERP adicionou uma nova alínea "i" ao caput do art. 32 da Lei nº 4.591/64, introduzindo o seguinte requisito à estrutura documental do memorial de incorporação: "instrumento de divisão do terreno em frações ideais autônomas que contenham a sua discriminação e a descrição, a caracterização e a destinação das futuras unidades e partes comuns que a elas acederão". Com esse incremento, o memorial passou a comportar exatamente o mesmo conteúdo mínimo exigido do legislador à validade do ato constitutivo do condomínio edilício totalmente erigido. Desta feita, em prestígio à praticidade almejada pelo SERP, conclui-se que o ato da incorporação já carrega, dentro de si, aptidão para constituir o condomínio edilício, mediante registro único, consoante preconiza o novel §15 do art. 32 da Lei nº 4.591/6418. B.2) Registro no Cartório de Registro de Imóveis Trata-se da solenidade por excelência exigida à instituição de direitos reais sobre bens imóveis no ordenamento jurídico brasileiro (art. 1.227 do CC). Consoante o art. 1.332, caput, do CC, o nascimento do condomínio edilício depende do registro de seu ato constitutivo no Cartório de Registro de Imóveis, condição esta que também é imposta, pelo art. 32, caput e §1º-A, da Lei nº 4.591/64, para criação do regime condominial especial enunciado a partir da Lei do SERP. A igualdade é absoluta, reforçando, mais uma vez, que os dispositivos se referem a um mesmo e unitário condomínio edilício. B.3) Convenção Condominial No tocante a esse instrumento obrigatório para todos os condomínios do tipo edilício19, o art. 9º da Lei nº 4.591/64 o descreve como ato normativo que deve ser elaborado, indistintamente, pelos integrantes de unidades autônomas em edificações a serem construídas, em construção ou já construídas. Além de reconhecer a qualificação das frações ideais e acessões como unidades independentes, o dispositivo esclarece que, mesmo ausentes módulos prontos e acabados, a obrigação de produzir uma convenção já se faz exigível, demonstrando que o condomínio edilício, a se perpetuar com o fim das obras, existe sobre a terra nua ou parcialmente edificada. C) Elementos Distintivos C.1) Caráter permanente do estado de indivisão da coisa Para análise correta deste requisito, é necessário esclarecer a delimitação de seu objeto. A permanência a que se alude aqui não diz respeito à indissolubilidade da estrutura física do prédio, mas sim ao estado de indivisão jurídica do imóvel20. É inegável que a situação condominial sobre frações ideais e acessões possui um perfil transitório, chegando a termo em algum momento, quer por finalização da construção integral do prédio, quer porque os promitentes adquirentes, em condomínio, destituíram o incorporador e optaram por liquidar o empreendimento ao invés de substituir o destituído ou assumir, diretamente, os custos e a gestão necessários à continuidade das obras. Mas, durante todo o período em que a figura insculpida no art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64 subsistir, o estado de indivisão sobre as frações ideais conjugadas de áreas privativas e de uso comum será indissolúvel. Nenhum promitente comprador poderá demandar, em juízo, a cisão de sua quota parte em relação às dos demais adquirentes de quinhões do terreno a ser edificado. Na verdade, a transitoriedade se deve ao fato de o regime condominial especial consagrado pela Lei do SERP consistir em um estágio interno à estrutura jurídica do condomínio edilício, e não a instituto independente e dissociado do prédio pronto e acabado. C.2) Inaplicabilidade de direito de preferência Determina o §1º do art. 1.331 do CC que as partes de utilização independente do condomínio edilício poderão ser alienadas e gravadas livremente pelos seus proprietários. Como o §3º da mesma norma define que as frações ideais sobre o solo e as áreas comuns da edificação são inseparáveis de tais unidades privativas, a liberdade alcança, na totalidade, a estrutura dos condomínios edificados. No mesmo diapasão, o §1º-A do art. 32 da Lei nº 4.591/64 investe o incorporador e os futuros adquirentes da faculdade de dispor ou onerar as suas frações ideais, a despeito de prévia anuência dos demais condôminos. A se interpretar as permissões incondicionadas como dispensas à obrigação de conceder prelação aos demais consortes antes de alienar a unidade a terceiro, constata-se outra igualdade, já que, em ambos os cenários, não há direito de preferência assegurado na relação condominial, característica marcante da modalidade edilícia. Entretanto, questiona-se o acerto técnico dessa leitura. Mais correta parece a visão segundo a qual a ausência da prerrogativa decorre de um silêncio eloquente do legislador brasileiro, pois sempre que considerou a preempção cabível ele o declarou expressamente21.  Isto posto, tanto os arts. 1.331 a 1.358 do CC, quanto a Lei nº 4.591/64 (com as modificações inseridas pela Lei do SERP), foram omissos em relação a um eventual dever de conferir prioridade a outros condôminos no ato de disposição da unidade construída ou da fração ideal de terreno ainda não edificada. À guisa desse comparativo pormenorizado, salta aos olhos que todos os elementos essenciais de um condomínio edilício se aplicam, embora com algumas particularidades, mas sem exceção, ao regime condominial especial anunciado pelo art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64. Evidencia-se, assim, que as normas introduzidas pela Lei do SERP não criaram uma nova espécie jurídica, porém marcam a antecipação dos efeitos constitutivos do condomínio edilício que adquirirá sua forma física definitiva quando concluídas as obras contratadas em sede de incorporação22. Ademais, a interpretação sistemática de dois dispositivos da Lei nº 4.591/64, com as alterações que lhes foram implementadas pela Lei do SERP, fortifica a tese de que a ratio do legislador foi mesmo a de adiantar a constituição do condomínio edilício ao registro do instrumento de incorporação no fólio real. Ao mesmo tempo em que a Lei do SERP suprimiu do texto do art. 44 o trecho "para efeito de individualização e discriminação das unidades", passou a prever, na alínea "i" do caput do art. 32, que o discrímen e a caracterização dos módulos imobiliários deverão ocorrer em documento integrante do memorial da incorporação. Deslocada a definição física das áreas privativas e comuns conjugadas - ainda que representada na forma de projeções aritméticas sobre a terra nua - para o ato incorporador, modificou-se a natureza jurídica do habite-se, cuja averbação passa a gozar de caráter complementar e confirmatório de um direito real de copropriedade previamente existente e instituído. É essa a posição amparada, dentre outros23-24, por Melhim Namem Chalhub e Daniella Rosa, in verbis: [...], pois a edificação retratada na certidão de habite-se nada mais é do que a descrição da configuração física definitiva das acessões incorporadas ao solo e por isso o registrador se limita a averbar a construção sem alterar o regime jurídico em que foi implantada, que anteriormente já havia sido qualificado como condomínio especial/edilício pelo registro da incorporação25. Por derradeiro, repita-se que a deflagração do condomínio edilício desde o registro do ato incorporador contendo a especificação das frações ideais é consequência inerente da aplicação da regra geral das acessões em relação às propriedades imobiliárias26, fundada no preceito romano superficies solo cedit. Desta feita, os titulares das partes correspondentes a um terreno vazio, além de atuais donos do solo, tornar-se-ão, por automático efeito da lei (arts. 1.253 e 1.255, caput, do CC), proprietários de todas as construções que forem concretizadas nas referidas áreas desocupadas. Ante todo o exposto, pela dicção do art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64, em interpretação sistemática com os demais dispositivos do mesmo diploma e dos arts. 1.331 a 1.358 do CC, insta concluir que: (i) o registro do memorial de incorporação no Cartório de Registro de Imóveis representa uma antecipação dos efeitos constitutivos do condomínio edilício; e (ii) tal constituição do direito real será ratificada e complementada pela averbação do habite-se, expedido após a finalização das obras de construção, cuja função será somente a de atestar a transformação física de propriedades preexistentes (frações ideais de terreno vazio convertidas em unidades autônomas prontas e acabadas). Sublinhe-se que as constatações acima recaem apenas sobre os condomínios edilícios instituídos por meio do negócio jurídico de incorporação imobiliária, conforme Título II da Lei nº 4.591/64 (arts. 28 a 68). Malgrado sejam raridade no mercado atual, os arranjos condominiais edilícios estabelecidos de outras formas (e.g., partilha de imóvel em unidades autônomas por disposição testamentária ou acordo entre herdeiros em sede de inventário, construção financiada diretamente pelos proprietários de um terreno sem contratação de incorporador), dada a ausência de memorial de incorporação, continuam a depender da elaboração do ato institutivo específico do art. 1.332 do CC e seu registro no fólio real. A Lei do SERP, portanto, não revogou, nem inutilizou o referido dispositivo da lei geral civil. Sem embargos, cumpre advertir que a antecipação do momento de constituição do condomínio edilício sob regime de incorporação imobiliária, promovido pela Lei do SERP, não precisa gozar de eficácia plena e absoluta, podendo o legislador ressalvar a produção de alguns efeitos para empreendimentos na fase final, quando consumada a plena construção e expedido o habite-se. De um lado, defende-se que, desde o registro do memorial, seja reconhecida a existência de um condomínio edilício para mitigar a responsabilidade econômica dos promitentes adquirentes no contexto de uma hipoteca instituída pelo incorporador como garantia à obtenção de financiamento para viabilizar a construção do próprio prédio em comento, acionando a proteção assegurada pelo art. 1.488 do CC27. Na outra ponta, caso venha a ser promulgado o PL nº 3.461/2019 e reconhecida a atribuição de personalidade jurídica à comunidade de titulares de unidades nos condomínios edilícios, haja vista que a perenidade é conditio sine qua non à configuração de uma pessoa jurídica de direito privado no ordenamento brasileiro, tal efeito só deve ocorrer depois de pronto e acabado o edifício, haja vista a inconteste transitoriedade que caracteriza o regime condominial instituído na forma do art. 32, "i", §§1º-A a 15, da Lei nº 4.591/6428. O regime condominial especial suscitado pela Lei do SERP, portanto, não representa uma figura inédita e autônoma criada pelo legislador brasileiro, em duplicidade ao condomínio que se forma quando da conclusão das obras. O arranjo condominial é uno e indiviso, desde quando composto tão somente por frações ideais vazias de construções, pelo que a nova norma apenas antecipa a constituição do direito real para o momento inicial do negócio de incorporação imobiliária. Dito isto, observa-se que o registro do memorial incorporador no Cartório de Registro de Imóveis produz resultado igual ao do primeiro toque da pá sobre a superfície do solo. Afinal de contas, embora ainda se tenha acabamento a realizar, tanto o buraco, quanto o condomínio edilício já existem. Inteiros, e não pela metade. __________ 1 Art. 32. O incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terrenos e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação composto pelos seguintes documentos:  i) instrumento de divisão do terreno em frações ideais autônomas que contenham a sua discriminação e a descrição, a caracterização e a destinação das futuras unidades e partes comuns que a elas acederão; § 1º-A. O registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, investe o incorporador e os futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição ou oneração e independe de anuência dos demais condôminos. § 15. O registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre as frações ideais constitui ato registral único.  2 221. Antes de averbada a construção e registrada a instituição do condomínio, será irregular a abertura de matrículas para o registro de atos relativos a futuras unidades autônomas. 3 "Este regime condominial especial, congênito ao registro da incorporação, não dispensa - e nem poderia - o registro da instituição e especificação do condomínio edilício que continua sendo necessário como medida essencial para descortinar a transposição de um regime jurídico condominial para o outro" (RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila. O regime jurídico-registral da incorporação imobiliária à luz da lei 14.382/22. Atualizado em 18.08.2022. Disponível aqui). 4 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; TARTUCE, Flávio. Condomínio protoedilício e condomínio edilício: distinções à luz da lei 14.382/22 (Lei do SERP). Publicado em 23.01.2023. Disponível aqui. 5 CHALHUB, Melhim Namem; ROSA, Daniella. A instituição do condomínio edilício pelo registro da incorporação. Publicado em 27.01.2023. Disponível aqui. 6 Ibidem. 7 Art. 661. No procedimento de registro de incorporação, é facultado o desdobramento de ofício da matrícula em tantas quantas forem as unidades autônomas integrantes do empreendimento, conforme os artigos 674 e 464, parágrafo único, deste Código de Normas. § 1º. Com o registro da incorporação imobiliária, a qualquer tempo é facultado ao incorporador requerer a abertura de tantas matrículas quantas sejam as unidades decorrentes do registro da incorporação realizada, entendida aí a descrição da futura unidade autônoma. 8 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; TARTUCE, Flávio, loc.cit. 9 ABELHA, André. A nova lei 13.465/2017 (Parte I): o condomínio de lotes e o reconhecimento de um filho bastardo. Publicado em 09 ago. 2017. Disponível aqui. 10 TEPEDINO, Gustavo. Multipropriedade imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993, p.109-110. 11 ALLEVATO, Guilherme Cinti. "Novos condomínios" e a multipropriedade imobiliária: da comunhão do solo à partilha da unidade no tempo. In: GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da; NEVES, Thiago Ferreira Cardoso. 20 anos do Código Civil: relações privadas no início do século XXI. Indaiatuba, SP: Ed. Foco, 2022, p.402. 12 Nesse mister, lecionam Melhim Namem Chalhub e Daniella Rosa: "Sabendo-se, por elementar, que a natureza jurídica não é determinada pela configuração física do imóvel, mas, sim, pelos elementos de caracterização estabelecidos em lei, basta considerar o conteúdo normativo do art. 32, "i", §1º-A, da Lei 4.591/1964 e do art. 1.332 do Código Civil para se constatar que condomínio especial e condomínio edilício são expressões idênticas, designam a mesma espécie de propriedade". (CHALHUB, Melhim Namem; ROSA, Daniella, loc.cit.). 13 Os elementos estruturais dizem respeito aos componentes que permitem identificar a situação jurídica de direito real qualificada como condomínio edilício. Os elementos formais congregam o conjunto de documentos e de procedimentos necessários à efetivação do arquétipo jurídico apurado na categoria estrutural. Por fim, os elementos distintivos consistem nos fatores que diferenciam a modalidade edilícia do condomínio do tipo geral ou voluntário (arts. 1.314 a 1.330 do CC). 14 Ao comentar sobre os §§1º e 2º do art. 1.331 do CC, Gustavo Tepedino, Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Pablo Renteria esclarecem que os dois parágrafos exemplificam, respectivamente, as unidades autônomas e as partes comuns da edificação (TEPEDINO, Gustavo et al. Fundamentos do direito civil: direitos reais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.398-399. 15 Essa constatação encontra apoio na lição de Caio Mário da Silva Pereira, in verbis: "A cada condômino é assegurada uma fração ideal da coisa, e não uma parcela material desta. Cada cota ou fração não significa que a cada um dos comproprietários se reconhece a plenitude dominial sobre um fragmento físico do bem, mas que todos os comunheiros têm direitos qualitativamente iguais sobre a totalidade dele, limitados contudo na proporção quantitativa em que concorre com os outros comproprietários na titularidade sobre o conjunto" (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais. 27ª ed. rev., atual. e ampl. por C.E. do Rêgo Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p.190-191). 16 Opinião esta manifestada em OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; TARTUCE, Flávio, loc.cit. 17 Expondo o alto grau de repúdio aos atrasos ou falta de contribuição financeira de alguns integrantes do condomínio edilício, Caio Mário da Silva Pereira advertia que a mora do condômino traz grande sacrifício para os demais, que tinham que cobrir o déficit orçamentário por ele provocado. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 11ª ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p.56). 18 A mesma conclusão é encontrada em CHALHUB, Melhim Namem; ROSA, Daniella, loc.cit. 19 GOMES, Orlando. Direitos reais. 21ª ed. rev. e atualizada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.247. 20 Em contraste ao condomínio geral/voluntário, cuja divisão pode ser requerida por qualquer consorte, a todo tempo, salvo se pactuado entre os condôminos, um prazo de incindibilidade de até cinco anos, embora permitidas prorrogações - art. 1.320 do CC. 21 Exemplos para endossar essa constatação não faltam: arts. 504 e 1.322 do CC (condomínio geral ou voluntário), arts. 27 a 33 da Lei nº 8.245/91 (Lei de Locações Urbanas), art. 92, §3º, da Lei nº 4.504/64 (Estatuto da Terra), arts. 25 a 27 da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), art. 1.081, §1º, do CC (aumento de capital social nas sociedades limitadas). 22 Anote-se que, para Frederico Henrique Viegas de Lima, presentes somente os elementos estruturais da conjugação de partes exclusivas com áreas comuns (A.1) e as frações ideais sobre o solo e espaços comunheiros (A.2), já se tem um condomínio edilício na sua completa acepção (LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Condomínio em edificações. São Paulo: Saraiva, 2010, p.119). 23 "[...] a averbação da construção é apenas ato informativo acerca da conclusão das obras do empreendimento e não se confunde com a instituição de condomínio edilício". (BORGES, Marcus Vinicius Motter. Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p.481). 24 "Concluída a edificação e expedido o habite-se, haverá mera averbação do fato na matrícula do condomínio já anteriormente instituído". (LOUREIRO, Francisco Eduardo et al. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 17ª ed. rev. e atual. Barueri-SP: Manole, 2023). 25 CHALHUB, Melhim Namem; ROSA, Daniella, loc.cit. 26 "Assim é porque a lei não excepciona o princípio da acessão em relação à construção realizada sobre terreno fracionado para realização de incorporação imobiliária, daí porque também no caso da incorporação imobiliária a edificação se incorpora ao solo com o mesmo regime jurídico do condomínio especial já dotado dos elementos de caracterização estabelecidos pelo art. 1.332 do Código Civil". (Ibidem). 27 Art. 1.488. Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito. 28 A filiação à tese da possibilidade de se admitir, de lege ferenda, a instituição de uma pessoa jurídica de direito privado para desempenhar atividades de administração dos interesses coletivos da comunidade de titulares de unidades autônomas não significa dizer que se deva implementar dito projeto de personalização a todas as espécies de condomínios edilícios, indistintamente. O condomínio urbano simples (arts. 61 a 63 da Lei nº 13.465/2017) é incompatível com a concepção de pessoa jurídica, em vista da sua singeleza organizacional e procedimental. Igual desencontro se verifica no condomínio da construção (art. 31-F, §1º, da Lei nº 4.591/64), porém em virtude da sua duração temporária, mesmo motivo que afasta o regime condominial especial do art. 32, "i", §§1º-A e 15, da Lei nº 4.591/64 da adoção de um modelo personalizado. Nada obstante, isso não retira de nenhum dos três arquétipos citados a qualidade de condomínios edilícios.
A alienação fiduciária, principal garantia à obtenção do financiamento imobiliário, é tema extremamente sensível ao mercado da construção civil. Em razão disso, tornou-se muito relevante o julgamento do Tema Repetitivo 1095 do Superior Tribunal de Justiça, cuja questão submetida era a "definição da tese alusiva à prevalência, ou não, do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de resolução do contrato de compra e venda de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária em garantia". Considerando a redação do art. 53, do Código de Defesa do Consumidor, duas correntes jurisprudenciais se formaram nos tribunais estaduais e federais. A primeira entendia pela possibilidade de aplicação do artigo 53, do Código de Defesa do Consumidor, para permitir "o direito potestativo do consumidor de promover ação para o fim de rescindir o contrato"1, mesmo nos casos envolvendo a alienação fiduciária. Por outro lado, outra corrente2 defendia que em contratos firmados com pacto adjeto de alienação fiduciária devidamente registrada na matrícula do imóvel, não haveria aplicação do art. 53, do CDC e a extinção contratual deveria seguir o procedimento especial da lei 9.514/1997, assim como já observado em alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça3. Dada a controvérsia jurisprudencial e a expressiva quantidade de casos análogos, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça deliberou por submeter o REsp 1.891.498/SP ao rito dos recursos especiais repetitivos. O julgamento ocorreu em outubro de 2022 e o acórdão foi publicado em dezembro do mesmo ano. O acórdão proferido pelo relator Min. Marco Aurélio Buzzi reconhece a relevância da alienação fiduciária ao mercado imobiliário brasileiro4 e assevera inexistir divergência entre o art. 53 do CDC e os ditames da lei 9.514/1997: Esse procedimento especial não colide com os princípios trazidos no art. 53 do CDC, porquanto, além de se tratar de Lei posterior e específica na regulamentação da matéria, o § 4º, do art. 27, da lei 9.514/97, expressamente prevê, repita-se, a transferência ao devedor dos valores que, advindos do leilão do bem imóvel, vierem a exceder (sobejar) o montante da dívida, não havendo se falar, portanto, em perda de todas as prestações adimplidas em favor do credor fiduciário. Nesse sentido, a tese firmada assentou: Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na lei 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor. A princípio, o empresariado da construção civil e as instituições de concessão de crédito imobiliário podem ter comemorado a tese firmada, porque reforça o entendimento de que, mesmo havendo relação de consumo, a hipótese de inadimplemento contratual não impede que o credor fiduciário possa excutir a garantia mediante o procedimento estabelecido nos artigos 26 e 27, da lei 9.514/1997. A respeito desse ponto, a decisão é acertada. Contudo, a leitura do acórdão de relatoria do Min. Buzzi e a tese firmada fazem-nos refletir. Em primeiro lugar, entendemos que a tese poderia ter melhor redação. O acórdão aduz que nos contratos de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária, "a resolução do pacto" deve observar as disposições da lei 9.514/1997. Tal assertiva merece algumas críticas. É preciso destacar, em primeiro lugar, que na hipótese de compra e venda imobiliária com alienação fiduciária, inexiste contrato bilateral a ser resolvido pelas partes. Nesse tipo de operação, o alienante confere quitação do pagamento do preço de aquisição do imóvel. Contudo, imediatamente após o adimplemento da compra e venda, com a entrega da posse ao devedor fiduciante, o credor fiduciário passa a cobrar as parcelas do contrato unilateral de mútuo, que é garantido pela alienação fiduciária5. Assim, seria mais adequado que a tese firmada apontasse que no contrato de compra e venda de imóvel com pacto adjeto de alienação fiduciária, a execução da garantia deve observar a forma prevista na lei 9.514/1997 e que o fato de eventualmente do resultado dos leilões não sobejar crédito a ser restituído ao devedor fiduciante (art. 27, § 5º da lei 9.514/1997) não implica qualquer ofensa ao Código de Defesa do Consumidor, sobretudo em razão da especialidade da lei 9.514/1997 e das características da alienação fiduciária. Mas a questão da possível melhor redação da tese firmada não é o motivo de nossa maior preocupação. Outras questões trazem maior aflição. O acórdão estabeleceu que o Tema 1095 não deve ser aplicado quando: a) inexistir registro do contrato ou; b) inexistir inadimplemento do devedor fiduciante ou; c) o devedor fiduciante não tiver sido constituído em mora, nos termos do art. 26, § 1º da lei 9.514/1997. Assim, segundo o julgado, inexistindo registro do contrato, inadimplemento do devedor e adequada constituição em mora "a solução do contrato não seguirá pelo ditame especial da lei 9.514/1997, podendo se dar pelo ditame da legislação civilista (artigos 472, 473, 474, 475 e seguintes) ou pela legislação consumerista (artigo 53), se aplicável, dependendo das características das partes por ocasião da contratação". Com relação à ausência de registro do contrato, o acórdão simplesmente segue o artigo 23 da lei 9.514/1997, que determina que a propriedade fiduciária se constitui mediante registro. O texto legal é impositivo e claro. Além disso, a jurisprudência do STJ também adota tal entendimento6. São as outras situações referidas no julgado que causam inquietação. Segundo o julgado, para aplicação da lei 9.514/1997, há necessidade de o devedor fiduciante estar inadimplente. Tal assertiva pode levar à incorreta interpretação de que o adquirente adimplente que pretende a extinção do vínculo contratual da compra e venda com alienação fiduciária pode simplesmente propor ação de resolução do contrato para devolver a coisa e obter o reembolso (ainda que parcial) do preço pago. É preciso reiterar que a prestação da compra e venda, em razão do pagamento integral do preço, está exaurida no negócio jurídico garantido pelo pacto da alienação fiduciária7. Além disso, não há que se falar em resolução da compra e venda quando ausente culpa atribuível à vendedora, sobretudo em razão da irretratabilidade contratual nesse tipo de operação. Se há descumprimento no pagamento das prestações, a excussão da garantia da alienação fiduciária pode ser iniciada e, consequentemente, os procedimentos dos artigos 26 e 27, da lei 9.514/1997. Todavia, na hipótese de o devedor fiduciante não ter mais condições financeiras para adimplir o contrato de mútuo (pagamento das prestações a vencer), ou seja, caso comprove impossibilidade no cumprimento da obrigação, com espírito colaborativo e boa-fé, pode comunicar ao credor-fiduciário que, embora esteja adimplente, tornar-se-á inadimplente nos próximos dias ou semanas. Nessa hipótese, pode-se considerar o inadimplemento antecipado da obrigação, dado o reconhecimento do próprio devedor que irá inadimplir8. Nesse diapasão, está configurado o inadimplemento absoluto do devedor fiduciante, sendo, inclusive, em nossa opinião, dispensável a notificação para purgação da mora. Ato contínuo, considerando a impossibilidade no cumprimento da obrigação de pagar no contrato de mútuo e o inadimplemento absoluto do devedor fiduciante, a execução da garantia pode ser iniciada e ter seguimento com a realização dos leilões determinados na lei 9.514/1997. Essa questão, inclusive, já havia sido tratada no leading case do REsp 1.867.209/SP9, de relatoria do Min. Paulo de Tarso Sanseverino, no qual determinou-se que O pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia por desinteresse do adquirente, mesmo que ainda não tenha havido mora no pagamento das prestações, configura quebra antecipada do contrato ("antecipatory breach"), decorrendo daí a possibilidade de aplicação do disposto nos 26 e 27 da lei 9.514/97 para a satisfação da dívida garantida fiduciariamente e devolução do que sobejar ao adquirente. É preocupante verificar que o acórdão de relatoria do Min. Buzzi (que fixou a tese do tema 1095) reconhece e menciona o julgado acima explicitado, assim como a solução adotada. Contudo, ao invés de reforçar que a forma de extinção do contrato de compra e venda de bem imóvel com alienação fiduciária segue os ditames da Lei 9.514/1997 (independentemente da hipótese de adimplência ou inadimplência do contrato de mútuo) apontou que inexistindo inadimplência do devedor fiduciante, não há como prevalecer a lei especial. Justificou-se que essa questão "não se encontra suficientemente madura no que tange à discussão pelas Turmas, inexistindo, até o momento, debate qualificado no colegiado da Quarta Turma, tampouco quantidade significativa de julgados no âmbito da Terceira Turma". Contudo, o próprio voto-vogal da Min. Nancy Andrighi (no mesmo julgamento) parece reconhecer a possibilidade do inadimplemento antecipado e a prevalência da lei 9.514/199710. Como se nota, o julgado, embora tenha firmado tese, deixou em aberto o regime jurídico a ser aplicado na hipótese de extinção contratual para a hipótese do adquirente adimplente. Essa porta aberta, em nossa opinião, é um tanto quanto perigosa. Uma vez registrado o contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária, o regime jurídico para a execução da garantia deve seguir a lei 9.541/1997. O fato de o devedor fiduciante estar adimplente no pagamento das parcelas do contrato de mútuo simplesmente não afasta a aplicação da lei especial. A considerar que a prestação da compra e venda já foi exaurida e que o devedor fiduciante é o proprietário resolúvel, não havendo mais interesse no imóvel adquirido, pode, por exemplo, firmar a cessão dos direitos aquisitivos do imóvel com terceiros (instrumento que deverá ter a anuência expressa do credor fiduciário). Por outro lado, não havendo terceiros interessados e insistindo o devedor fiduciante na impossibilidade do cumprimento da obrigação de pagar, estará configurado o vencimento antecipado da obrigação, cabendo a aplicação dos já referidos artigos 26 e 27, da lei 9.514/1997. Assim, o acórdão que resultou na tese firmada pode permitir a incorreta interpretação de que o adquirente adimplente em contrato com alienação fiduciária tem a possibilidade de propor ação de resolução do contrato de compra e venda, de modo a afastar a incidência da Lei especial. Anote-se, nesse sentido, julgado recentemente proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo11. Na origem, trata-se de ação intentada pelo devedor fiduciante adimplente nas prestações do contrato de mútuo. A demanda tinha por objetivo a resolução do contrato de compra e venda e a devolução parcial dos valores pagos pelo adquirente. A sentença declarou a resolução do contrato e obrigou a incorporadora a restituir 75% (setenta e cinco) por cento dos valores pagos pelo autor. No recurso de apelação, após sustentar que a alienação fiduciária impossibilitava a resolução do contrato de compra e venda, muito menos restituição de partes dos valores pagos, entendeu-se por afastar a lei 9.514/1997 porque, no caso em análise, o adquirente estaria adimplente e, após citar o Tema nº 1095, determinou-se a resolução do contrato de compra e venda, confirmando a condenação para devolução de parte dos valores pagos. Como se nota, se de fato entender-se que ao devedor fiduciante adimplente não se aplica a lei 9.514/1997, diversos adquirentes poderão propor ação de resolução contratual, o que é absolutamente contrário ao sistema da alienação fiduciária. Além disso, outra questão preocupante diz respeito ao entendimento da aplicação da lei 9.514/1997 somente para os casos em que o devedor fiduciante já tenha sido constituído em mora. Em pesquisa jurisprudencial, localizamos julgados que, em razão da ausência de constituição em mora do devedor fiduciante, admitiram a resolução contratual, afastando-se a aplicação da lei 9.514/1997. A exemplo disso, recente julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo12 afastou o Tema 1095 porque "[...] inobstante a compradora esteja inadimplente desde setembro de 2021 (extratos de fls. 154/157), afirmação não negada pela autora, não houve constituição em mora até a propositura da ação [...]". Caso se entenda que a ausência de constituição em mora do devedor afasta a aplicação da lei 9.514/1997, diversos devedores fiduciantes inadimplentes preferirão manter-se longe de seus endereços para não serem intimados e, enquanto isso, supostamente poderiam propor ação de resolução do contrato para obter liminar para a suspensão das cobranças e, ao final, serem ressarcidos de parte do valor pago. Nessa situação, quem age contrariamente à boa-fé obtém melhor vantagem? O Direito Civil não pode premiar a má-fé. Mas há esperanças. Em outra demanda de resolução contratual proposta por adquirente, foi aduzido que embora estivesse inadimplente, não houve regular constituição em mora e, portanto, deveria ser afastado o Tema 1095. Ao apreciar o agravo de instrumento que indeferiu a concessão de tutela de urgência, o Des. Francisco Loureiro, do Tribunal de Justiça de São Paulo, ressaltou a necessidade de aplicação do Tema 1095, ainda que o devedor fiduciante não tenha sido constituído em mora13. O julgado ressalta que muito embora o devedor fiduciante tenha aduzido ausência de constituição em mora, no caso do pagamento de parcelas em contrato de mútuo, a mora tem natureza ex re, consoante o art. 397, do Código Civil. Sendo a prestação líquida e certa, o não pagamento da obrigação no prazo configura a mora automática14, embora o devedor não tenha sido intimado para purgá-la. Assim, como bem apontado no acórdão "[...] a configuração da mora não exige a consolidação da propriedade, como sugere a devedora fiduciante, que reconhece o próprio inadimplemento (e consequentemente a mora)". Essa solução também possui o arrimo de Demétrio Giannakos15. Conclusão  A definição do Tema nº 1095 era muito aguardada, não apenas em razão da importância da alienação fiduciária, mas sobretudo em relação aos impactos da tese que seria firmada. De maneira adequada, o STJ determinou a prevalência da lei 9.514/1997 perante o CDC e reconheceu a licitude da execução da garantia, mesmo em relações de consumo. Contudo, o afastamento da lei para as situações de ausência de inadimplência e mora constituída do devedor fiduciante voltam a tornar o céu cinzento. A imprevisibilidade e a ausência de segurança jurídica impactam o desenvolvimento do mercado imobiliário. As incertezas envolvendo a principal garantia para concessão do crédito imobiliário podem abalar, negativamente, não apenas as empresas que desenvolvem os empreendimentos, mas, sobretudo, aqueles que precisam de financiamento para aquisição da casa própria. Como procuramos demonstrar, o Tema 1095, ao mesmo tempo em que representou relevante avanço, ainda deixa espaço para incertezas. É hora de o Superior Tribunal de Justiça conferir a necessária segurança jurídica, prestigiando a principal propulsora do mercado imobiliário e da concessão dos financiamentos habitacionais. Ao final, dedico este artigo ao Min. Paulo de Tarso Sanseverino, falecido recentemente. Tive o privilégio de dividir a sala de aula com esse brilhante jurista em algumas oportunidades, além de privar de sua companhia em outras ocasiões. Pude aprender muito com seus escritos e acórdãos, além de ter conhecido uma pessoa simples, humilde e extremamente dedicada à família e ao trabalho. __________ 1 TJSP; Apelação Cível 1031264-75.2019.8.26.0576; Relator: Hugo Crepaldi; 25ª Câmara de Direito Privado; data do julgamento: 31/08/2021; data de registro: 31/08/2021. 2 Nesse sentido, vide: TJSP; Apelação Cível 1017078-41.2020.8.26.0405; Relator: Paulo Alcides; 6ª Câmara de Direito Privado; data do julgamento: 01/06/2021; data de registro: 01/06/2021. 3 "[...] O Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que, diante da incidência do art. 27, § 4º, da lei 9.514/1997, que disciplina de forma específica a aquisição de imóvel mediante garantia de alienação fiduciária, não se cogita da aplicação do art. 53 do Código de Defesa do Consumidor, em caso de rescisão do contrato por iniciativa do comprador, ainda que ausente o inadimplemento. (AgInt no AREsp 1.689.082/SP, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 16/11/2020, DJe de 20/11/2020.) 4 Destaco, ainda, trecho do voto vogal da Min. Nancy Andrighi, que asseverou que "[...] o regime específico da alienação fiduciária de bens imóveis permite a recomposição do capital investido de forma célere e eficaz, atribuindo maior segurança ao crédito concedido e minimizando o problema da habitação no país". 5 A esse respeito, ensinam Melhim Namem Chalhub e Umberto Bara Bresolin: "De maneira bastante diversa, nos contratos de venda e compra de imóveis com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia, no momento em que o devedor fiduciante (que tomou crédito para pagar o preço de aquisição) manifesta interesse no rompimento do negócio, a venda e compra já se exauriu, o preço do bem já foi quitado com os recursos antecipados pelo credor, a propriedade já foi adquirida pelo comprador e ato contínuo transmitida a propriedade fiduciária ao credor em garantia de pagamento do financiamento. Ao credor fiduciário cabe apenas receber e ao devedor fiduciante cabe apenas pagar o valor antecipado acrescido dos juros pactuados. Efetivado o pagamento, a garantia se extingue, a propriedade fiduciária se resolve e a propriedade plena reverte ao patrimônio do (então) fiduciante. Inadimplida a obrigação de pagar, a propriedade fiduciária é incorporada ao patrimônio do (então) fiduciário, mediante consolidação, devendo ele ofertar o imóvel em público leilão para obter a satisfação do crédito em dinheiro, com o produto do leilão". (CHALHUB, Melhim Namem; BRESOLIN, Umberto Bara. A resolução por inadimplemento antecipado do preço e o contrato de venda e compra de imóvel com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia. Migalhas. Publicado em 24/02/2021, coluna Migalhas Edilícias. Disponível aqui. Acesso em: 04 abr. 2023). 6 Pela necessidade do registro do contrato para a constituição da alienação fiduciária, vide REsp 1.987.389/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 30/08/2022, DJe de 01/09/2022. 7 Nas palavras de Melhim Namem Chalhub "Já em relação aos contratos de financiamento, ou qualquer outra forma de contrato de concessão de crédito (contrato principal), com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia (contrato acessório), o inadimplemento da obrigação do devedor fiduciante importa em extinção do contrato (principal) de crédito mediante execução (e não resolução), da qual resulta a extinção do contrato acessório de alienação fiduciária [...]". (CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 517). 8 A respeito do inadimplemento antecipado da obrigação, vide TERRA, Aline de Miranda Valverde. Inadimplemento anterior ao termo. Rio de Janeiro: Renovar, 2009 e, mais recentemente, TERRA, Aline de Miranda Valverde. Quando há o inadimplemento antecipado da obrigação? AGIRE nº 59. Disponível aqui. Acesso em 04 abr. 2023. 9 REsp 1.867.209/SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 08/09/2020, DJe de 30/09/2020. 10 Nos termos do voto-vogal "[...] se somente o não pagamento, pelo adquirente, dos valores contratados é capaz de justificar a aplicação do referido procedimento ou se ele também deve ser observado na situação em que o adquirente postula a revisão do contrato por impossibilidade superveniente, por configurar quebra antecipada do contrato ("antecipatory breach") [...] 39. Nessa linha de ideias, o pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia, por desinteresse do adquirente na sua manutenção, qualifica-se como quebra antecipada do contrato ("antecipatory breach"), tendo em vista que revela a intenção do adquirente (devedor) de não pagar as prestações ajustadas. 40. Destarte, o inadimplemento contratual, para fins de aplicação dos arts. 26 e 27 da lei 9.514/1997 não se restringe à ausência de pagamento no tempo lugar e modo contratados, mas abrange também o comportamento contrário do devedor ao cumprimento da avença (quebra antecipada do contrato), manifestado por meio do pedido de resolução do contrato por impossibilidade superveniente de arcar com os valores contratados". 11 TJSP; Apelação Cível 1000446-79.2022.8.26.0142, Relator: José Carlos Ferreira Alves, 2ª Câmara de Direito Privado, data de julgamento: 09/03/2023. 12 Ação de rescisão contratual cc. devolução de valores. (Compromisso) contrato de compra e venda de bem imóvel. Escritura de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária registrada no CRI. Tutela de urgência deferida parcialmente para suspender as cobranças das prestações vincendas e para que a ré se abstenha de incluir o nome da autora nos órgãos de proteção ao crédito. Presença dos requisitos legais. Não aplicação do tema do recurso repetitivo representativo da controvérsia n. 1095 do E. STJ. Ausência de constituição em mora. Recurso desprovido. (TJSP; Agravo de Instrumento 2115008-25.2022.8.26.0000; Relator: Cauduro Padin; 13ª Câmara de Direito Privado; data do julgamento: 17/03/2023; data de registro: 17/03/2023). 13 TJSP; Agravo de Instrumento 2036410-23.2023.8.26.0000, Relator: Francisco Loureiro, 1ª Câmara de Direito Privado, julgamento em 21/03/2023. Mais recentemente e no mesmo sentido, vide TJSP, Apelação Cível 1000418-80.2021.8.26.0099, Relator: Francisco Loureiro, 1ª Câmara de Direito Privado, julgamento em 08/03/2023. 14 Nesse sentido, vide NANNI, Giovanni Ettore (coord.). Comentários ao Código Civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023. p. 520. 15 GIANNAKOS, Demétrio. O tema 1095 do STJ e o debate sobre a "constituição em mora". Migalhas. Publicado em 06/04/2023, coluna Migalhas Edilícias. Disponível aqui. Acesso em: 16 maio 2023.
O mercado imobiliário é um dos propulsores da nossa economia. Em 2022, o PIB da construção civil fechou com crescimento de 9,7%, a maior alta nos últimos 11 anos1. Para trazer maior segurança jurídica aos negócios imobiliários, diversas formas de garantias são utilizadas. Uma das mais comuns, é a alienação fiduciária. Para Alexandre Laizo Clápis, "o negócio fiduciário é aquele em que uma pessoa transmite para a outra a propriedade de uma coisa ou de um direito com finalidade de garantia, para um fim específico estabelecido pelas partes, pelo qual a segunda se obriga a restituir quando cumprida determinada obrigação ou implementada a condição resolutiva inerente ao negócio jurídico"2. Na compra e venda de imóveis, por anos, existiu uma dúvida que atormentava os operados do direito: no caso de resolução do contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária, por culpa do adquirente, seria aplicável o Código de Defesa do Consumidor ou a Lei da Alienação Fiduciária? Já adiantando ao leitor: dependerá do cumprimento de alguns requisitos. Vejamos. Recentemente, o STJ, ao julgar o REsp n. 1891498 / SP, de relatoria do Ministro Marco Buzzi, em caráter de recurso repetitivo, firmou a seguinte tese: "Em contrato de compra e venda de imóvel com garantia de alienação fiduciária devidamente registrado em cartório, a resolução do pacto, na hipótese de inadimplemento do devedor, devidamente constituído em mora, deverá observar a forma prevista na Lei nº 9.514/97, por se tratar de legislação específica, afastando-se, por conseguinte, a aplicação do Código de Defesa do Consumidor". A partir da tese fixada, grande parte da comunidade jurídica voltada à temática enalteceu a decisão proferida, sob o argumento de a aplicação ou não do CDC, finalmente, seria pacificada nos Tribunais. Todavia, recentemente, verificou-se a existência de dúvidas na sua aplicação a alguns casos julgados no que tange à constituição em mora do devedor. Seria ela a do caput do art. 26 da lei 9.514/97 ou do parágrafo primeiro do mesmo diploma? O intuito do presente ensaio é, portanto, responder essa pergunta. Em seu voto, o Ministro Marco Buzzi, elenca três requisitos fundamentais para que a tese seja aplicável: i) o registro do contrato (no registro de imóveis) com cláusula de alienação fiduciária; ii) o inadimplemento por parte do devedor fiduciário; e iii) a adequada constituição em mora. Dito de forma diversa, caso um dos três requisitos não esteja presente, a solução do contrato não seguirá os ditames da lei 9.514/97, mas sim pelos ditames do Código Civil (artigos 472, 473, 474, 475 e seguintes) ou pela legislação consumerista (art. 53). O presente ensaio debruçará suas atenções, mais precisamente, sobre o terceiro requisito, qual seja, a constituição em mora e a forma como ocorrerá. Para isso, importante trazer ao leitor uma clara distinção: para a consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, é devida a intimação para que o devedor fiduciante possa purgar a mora, no prazo de 15 (quinze) dias, nos termos do art. 26 da lei 9.514/97, sob pena de barrar o caminho para o leilão extrajudicial do imóvel. Eduardo Chulam assim disserta: "O fiduciante é assim intimado para pagamento tanto das prestações vencidas com vincendas até o pagamento, no prazo de quinze dias (além da carência contratual), podendo, caso queira, purgar a mora diretamente perante o Oficial de Registro de Imóveis". "A consequência do pagamento será o convalescimento da alienação fiduciária"3. Por outro lado, a constituição da mora em si, parece ter natureza diversa, qual seja, ex re, conforme será demonstrado no presente ensaio. Ou seja, os casos são distintos e, portanto, não se confundem. Em recente caso julgado pela 1ª Câmara de Direito Privado do Estado de São Paulo, o Desembargador Relator Francisco Loureiro dispões o seguinte: "Sucede que não houve intimação para o devedor fiduciante purgar a mora, nos moldes do art. 26 da lei 9.514/97. Logo, não há consolidação da propriedade nas mãos do credor fiduciário, o que abriria caminho para o leilão extrajudicial do imóvel"4. No caso julgado pela Corte paulistana, ficou claro o requisito necessário para a consolidação da propriedade, porém, não foi tratada pelos magistrados de que forma a constituição da mora em si teria ocorrido. Porém, em outro caso também analisado pelo TJ/SP, agora pela 13ª Câmara de Direito Privado, a conclusão final dos magistrados foi diversa, no sentido de que haveria a necessidade a constituição em mora do devedor fiduciário: "Contudo, em que pese o atraso do pagamento de parcelas pelos autores seja incontroverso, não houve constituição em mora, o que, de acordo com o entendimento consolidado pelo Superior Tribunal de Justiça, enseja a resolução do contrato de acordo com o disposto no Código de Defesa do Consumidor"5. É preciso distinguir situações diversas. Parece claro que, para que a propriedade do imóvel seja consolidada ao credor fiduciário, é requisito formal a intimação do devedor para purgar a mora, nos termos do art. 26, §1º e §7º da lei 9.514/97. Todavia, para que o devedor fiduciante seja constituído em mora, bastaria o inadimplemento, conforme previsto no caput do mesmo diploma legal. Em outras palavras, nos contratos garantidos por alienação fiduciária, a mora se configura automaticamente quando vencido o prazo para pagamento. Ou seja, seria um típico caso de mora ex re. Esse é o ponto fulcral do presente ensaio e que parece estar causando divergência jurisprudencial. Para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, a mora ex re diz respeito ao não cumprimento das obrigações com termo de vencimento certo (dia 23 de junho, por exemplo) e definido. Nesses casos, o devedor é constituído de pleno direito em mora6, sem a necessidade de prévia notificação. Esse debate, inclusive, já foi travado no próprio STJ anos atrás. Em 1993, o STJ, em REsp n. 37.535/RS, já definia reconhecia a natureza da mora nos casos de alienação fiduciária como ex re7. Recentemente, o TJ/RS, em decisão proferida Décima Segunda Câmara Cível, confirmou a dispensa da notificação para a simples constituição em mora8, com aplicação do art. 397 do CC. Parece claro que, a partir do presente ensaio, existem distinções entre a constituição em mora prevista no caput do art. 26 da referida lei e a necessidade de intimação do devedor fiduciário prevista no parágrafo primeiro do mesmo diploma. No caso do caput, haveria aplicação do art. 397 do CC, conforme disposto pelo TJ/RS, enquanto o caso previsto no parágrafo primeiro teria como objetivo a possibilidade de quitação do débito por parte do devedor ou a consolidação da propriedade em nome do credor. O tema é instigante e, certamente, ensejará defensores de posicionamentos diversos. Sendo assim, caberá à doutrina fazer a sua parte e, consequentemente, caberá ao STJ, muito provavelmente, manifestar-se sobre o tema em momento oportuno, com a finalidade da trazer maior segurança jurídica. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 27/03/2023. 2 CLÁPIS, Alexandre Laizo. Reflexões sobre a natureza jurídica da propriedade fiduciária imobiliária. In: Revista Ibradim de Direito Imobiliário, v. 1 (nov. 2018). São Paulo: Ibradim, 2018, p. 27-28. 3 CHULAM, Eduardo. Alienação fiduciária de bens imóveis. São Paulo: Almedina, 2019, p. 118. 4 RESOLUÇÃO DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA COM PACTO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. Tema 1095 do STJ. Ação ajuizada pelo comprador, alegando impossibilidade superveniente de pagamento do preço. Garantia real da propriedade fiduciária devidamente constituída pelo registro imobiliário. Inexistência, porém, de notificação para conversão da mora em inadimplemento absoluto e consolidação da propriedade resolúvel nas mãos da credora fiduciária, na forma do art. 26 da L. 9514/98. Impossibilidade de resolução do contrato, que perdeu a sua natureza bilateral. Comprador se tornou devedor fiduciante do saldo parcelado do preço. Garantia real deve ser executada na forma prevista na L. 9514/97, com leilão extrajudicial do imóvel. Impossibilidade de aproveitamento da presente ação de resolução para excussão da garantia, uma vez que não houve até o momento consolidação da propriedade em nome da credora fiduciária. Inteligência da aplicação do Tema 1095 do STJ somente aos casos em que a mora já foi convertida em inadimplemento absoluto e a propriedade se encontra consolidada nas mãos do credor fiduciário, podendo ser levado a leilão extrajudicial. Ação de resolução improcedente. Recurso provido.   (TJSP;  Apelação Cível 1000418-80.2021.8.26.0099; Relator (a): Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado; Foro de Bragança Paulista - 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 08/03/2023; Data de Registro: 08/03/2023) 5 APELAÇÃO - RESCISÃO CONTRATUAL - COMPRA E VENDA - ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA - TEMA 1.095 DO STJ - NÃO INCIDÊNCIA -DESISTÊNCIA DO COMPRADOR. - Instrumento particular de compra e venda de imóvel com alienação fiduciária em garantia - Desistência do adquirente - Pretensão das vendedoras de que a resolução do contrato se dê por execução extrajudicial, nos termos da Lei nº 9.514/97 - Impossibilidade - Tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Tema 1.095 no sentido de que a Lei nº 9.514/97 somente afasta a aplicação do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de contrato registrado em cartório e adquirente inadimplente, devidamente constituído em mora - No caso dos autos os compradores não foram constituídos em mora - Determinação de devolução de 90% sobre os valores pagos, autorizado o desconto de eventuais débitos de consumo, IPTU e taxas condominiais em consonância com os precedentes do STJ: - Não se tratando de hipótese que impõe a execução extrajudicial do contrato e a aplicação da Lei nº 9.514/97, conforme decidido pelo STJ no julgamento do Tema nº 1.095, a resolução da avença com a retenção de 10% dos valores pagos pelo comprador mostra-se suficiente para a compensação do vendedor - Precedentes do STJ - Incabível a cobrança de taxa de ocupação, uma vez que não houve consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário. RECURSO DE APELAÇÃO NÃO PROVIDO E ANÁLISE DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO PREJUDICADA.  (TJSP;  Embargos de Declaração Cível 1015084-98.2019.8.26.0344; Relator (a): Nelson Jorge Júnior; Órgão Julgador: 13ª Câmara de Direito Privado; Foro de Marília - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 03/03/2023; Data de Registro: 03/03/2023). 6 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume II: obrigações. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 275. 7 ALIENAÇÃO FIDUCIARIA. BUSCA E APREENSÃO. CONSTITUIÇÃO EM MORA. NAS DIVIDAS GARANTIDAS POR ALIENAÇÃO FIDUCIARIA, A MORA CONSTITUI-SE 'EX RE', SEGUNDO O DISPOSTO NO PAR. 2. DO ART. 2. DO DECRETO-LEI N. 911/69, COM A NOTIFICAÇÃO SERVINDO APENAS A SUA COMPROVAÇÃO, NÃO SENDO DE EXIGIR-SE, PARA ESSE EFEITO, MAIS DO QUE A REFERENCIA AO CONTRATO INADIMPLIDO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (REsp n. 37.535/RS, relator Ministro Paulo Costa Leite, Terceira Turma, julgado em 30/9/1993, DJ de 25/10/1993, p. 22492.) 8 AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO COM ALIENAÇÃO DE IMÓVEL EM GARANTIA. AJUIZAMENTO DA DEMANDA EXECUTIVA. POSSIBILIDADE. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. IMPENHORABILIDADE DO IMÓVEL. PEQUENA PROPRIEDADE RURAL. INOCORRÊNCIA. O credor fiduciário poderá buscar a concretização do seu crédito por meio da via judicial ou extrajudicial, cabendo a ele a opção neste sentido, não restando configurada qualquer nulidade da demanda executiva. Inteligência do art. 19, da lei 9.514/17. Igualmente, nenhuma nulidade há na penhora do imóvel oferecido em garantia fiduciária, o que inclusive é assegurado pelo disposto no art. 835, XII, do CPC, nem tampouco pela expropriação deste por meio de leilões judiciais ao invés de extrajudicial, à medida que optou o credor pela via judicial. Não há falar em descaracterização da mora em razão de não terem sido intimados para purgar a mora, nos termos da Lei 9.514/97, uma vez que esta se prestaria tão somente para evitar a consolidação da propriedade dada em garantia fiduciária em nome do credor. No caso, o credor optou por ingressar em juízo, com demanda executiva, para exercer o direito ao seu crédito. Em se tratando de cédula de crédito bancário (título extrajudicial nos termos do art. 784, III, do CPC), obrigação de pagamento de quantia liquida, com termo certo e determinado, com vencimento previamente definido, opera-se a mora ex re, nos termos do art. 397, do CCB, o que dispensa qualquer notificação do devedor. Inocorrente a descaracterização da mora e nulidade dos atos executivos. Impenhorabilidade do imóvel que não se verifica, uma vez que não caracterizado como pequena propriedade rural, o que afasta a proteção disposta no art. 833, VIII, do CPC. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. UNANIME.(Agravo de Instrumento, Nº 70085598381, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Luiz Pozza, Julgado em: 30-09-2022).
Foi publicado neste informativo, no dia 24/3/2023, o artigo intitulado "Extratos eletrônicos, microssistemas e o Poder Judiciário", de autoria do Prof. Ricardo Campos. O articulista é um dos juristas apontados em portaria do Corregedor Nacional de Justiça, o Ministro Luis Felipe Salomão, para compor comissão cujo objetivo é auxiliar a Corregedoria a regulamentar a lei 14.382/2022, que introduziu o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos - SERP, e as alterações por ela feitas na Lei de Registros Públicos, a lei 6.015/1973. Como um dos autores do texto original da Medida Provisória 1.085/2021, que originou a lei 14.382/2022, tenho procurado contribuir com o debate público que permeia sua implantação. Ademais, alertar a comunidade jurídica sempre que me deparo com visões especialmente divergentes ou deturpadoras dos embasamentos dogmático e funcional que motivaram a introdução do SERP. Essas deturpações são, cada vez mais, minoritárias; quando (res)surgem, normalmente evidenciam interesses puramente financeiros ou corporativos, que não merecem acolhida. Ao digitalizarmos, padronizarmos e centralizarmos o acesso aos Registros Públicos, a despeito do óbvio ganho social, houve certamente perdedores. Entre os registradores, há os que perderam receita direta. A redação atual do art. 130 da lei 6.015 determina que os registros em Títulos e Documentos se realizarão "no domicílio das partes contratantes e, quando residam estas em circunscrições territoriais diversas, far-se-á o registro em todas elas". Por minha sugestão, a lei 14.382/2022 modificou esse artigo para que o registro se dê apenas no domicílio de um dos outorgantes ou garantidores, eliminando a duplicidade de atos registrais idênticos, inútil num contexto de centralização digital e, a rebote, reduzindo o custo transacional dos cidadãos com emolumentos registrais. Não por acaso, a alteração proposta sofreu resistência e foi a única submetida a vacatio legis, de mais de 18 meses, entrando em vigor apenas em 1º de janeiro de 2024. A escolha do domicílio do outorgante como o único competente é natural. Havendo direitos reais que gravem os bens de uma pessoa, que os outorgou, a publicidade registral e as buscas por registros de base pessoal se concentrarão no respectivo domicílio. É o mesmo que ocorre com as distribuições judiciais, que se cadastram e buscam nos domicílios dos réus, jamais dos autores. Convidado a dar aulas em uma pós-graduação lato sensu, um registrador da Grande São Paulo tem classificado a Lei do SERP como algo "pior que o Genocídio Ianomâmi", segundo relatos, e feito sobre mim comentários desabonadores. Compreende-se perfeitamente a indignação visceral, quando o interesse público impõe a um agente delegado a perda da competência para o registro de todos os contratos de um dos maiores bancos do país, sediado em sua comarca. O que não se deve admitir, todavia, é que interesses privados venham a fantasiar-se de virtuosa e republicana defesa doutrinária, ademais em ambiente acadêmico ou institucional. Aderindo à linha argumentativa lastreada em comparações exóticas, o artigo do Prof. Ricardo Campos infere que a expansão do uso de extratos registrais, a partir da Lei do SERP, seria um movimento alegadamente semelhante à degradação jurídica experimentada com a ascensão do nazismo. Sem citar-me nominalmente, o autor reage à minha manifestação na audiência pública realizada, em fevereiro, na sede do CNJ, em Brasília, ocasião em que defendi a nova lei e a ampliação na utilização dos chamados extratos, resumos eletrônicos que substituem o contrato integral no envio aos cartórios, simplificando o processo de registro. Em suas palavras, referindo-se textualmente ao exemplo da Alemanha entreguerras, "figuras jurídicas podem perverter e levar à [sic] mutações jurídicas indesejáveis sem a necessidade de uma mudança legislativa no núcleo duro dos direitos". A perversão da Lei do SERP e do uso de extratos estaria no enfraquecimento da escritura pública, da prerrogativa dos registradores em qualificar integralmente os títulos e do poder de polícia exercido pelo Judiciário. Entre os tabeliães, parece haver uma minoria incomodada com os avanços tecnológicos nos registros públicos, cuja maior facilidade de acesso poderia tornar irrelevante a escritura pública ou, de outro modo, causar prejuízo à atividade notarial. Nada mais falso que esse pensamento. De um lado, é verdade que a função do notário nas compras e vendas puras e simples, nos contratos de garantia e demais contratações padronizadas, em um mundo interligado e digital, tende a perder relevância. Essa perda não é motivada pela introdução do SERP e dos extratos registrais, mas simplesmente pelo avanço tecnológico. A inteligência artificial e os meios de identificação digitais, em maior medida; a tokenização ou os smart contracts, em menor medida, tendem a reduzir a necessidade de intervenção de um agente dotado de fé pública na formalização de negócios jurídicos de massa. A tentativa de sabotagem do SERP, ainda que bem-sucedida, jamais mudaria esse cenário. Por outro lado, ainda que a forma da intervenção notarial sofra mudanças, a função da fé pública não será superada - na recente evolução do sistema jurídico brasileiro, os notários ganharam em qualidade: tornaram-se relevantíssimos no Direito Processual Civil, por exemplo, em matéria de prova; tornaram-se protagonistas da usucapião extrajudicial e, finalmente, na lei 14.382/22 foram prestigiados como agentes essenciais à adjudicação compulsória de imóvel. A constatação e transmutação jurídica dos fatos da vida pelos tabeliães, atividade intelectual, deverá suplantar os atos de intervenção puramente formal, em escrituras simples e reconhecimentos de firma. Talvez o abandono gradual desses atos formais e de trabalho repetitivo resulte, no futuro, em menor necessidade numérica de tabeliães e escreventes - mas haverá, em contrapartida, necessidade de tabeliães mais qualificados e, por consequência, mais valorizados. Para introduzir seu pensamento, o Prof. Ricardo Campos afirma que os extratos surgem, no Brasil, "de um imperativo da necessidade de automatização de processos em larga escala envolvendo bens imóveis dentro do sistema registral ligado ao sistema financeiro". Os extratos imobiliários levariam então à coexistência de dois sistemas: um geral e formalista, do título integral e da escritura pública; e um microssistema simplificado, com uso do extrato e do instrumento particular com força de escritura pública, restrito às instituições - majoritariamente financeiras - participantes do SFH e do SFI. Eis o primeiro grande equívoco do eminente articulista. O art. 38 da lei 9.514/1997, que introduziu a alienação fiduciária de imóveis, dispensa a escritura pública para a formalização de todos os contratos dessa modalidade de garantia real, ainda que não envolvam o SFH ou o SFI, e mesmo entre pessoas físicas. A interpretação majoritária do mesmo artigo tem permitido, inclusive, a dispensa da escritura pública nas alienações de imóvel com pacto adjeto de alienação fiduciária, fora do SFH ou SFI, em diversas unidades da Federação, especialmente pelos incorporadores imobiliários. Por sua vez, o §6º do art. 26 da lei 6.766/1979, que trata dos loteamentos, foi introduzido pela lei 9.785/1999 e dispensa a escritura pública para a transmissão da propriedade de todo imóvel, desde que pelo loteador ao adquirente. Nos loteamentos, basta a apresentação ao registrador imobiliário da promessa de compra e venda, celebrada por instrumento particular, e da prova de sua quitação para transmitir a propriedade. A mesma solução, vale dizer, tem sido pregada por respeitada doutrina a toda hipótese de prévia promessa de compra e venda, a exemplo do seguinte enunciado aprovado na I Jornada de Direito Civil do CJF, de nº 87: "Considera-se também título translativo, para fins do art. 1.245 do novo Código Civil, a promessa de compra e venda devidamente quitada (arts. 1417 e 1418 do CC e § 6º do art. 26 da lei 6.766/79)". Ainda, o art. 8º da lei 10.188/2001 dispensou a escritura pública para a aquisição de imóveis, por pessoa física, por meio do Programa de Arrendamento Residencial. São alguns exemplos do desuso da escritura pública nas aquisições imobiliárias, especialmente nas contratações massificadas. Dessa feita, não existe, na realidade brasileira, a dicotomia que se pretendeu estabelecer, restringindo a dispensa da escritura pública (e o registro mais simples e ágil, por meio de extrato) ao microssistema do SFH/SFI. Nem foi essa a intenção dos autores da Medida Provisória 1.085/2021 ou teríamos ali sedimentado, expressamente, redação semelhante à já existente no Provimento nº 94/2020 do CNJ, que legitima a apresentarem extratos imobiliários apenas os "agentes financeiros autorizados a funcionar no âmbito do SFH/SFI, pelo Banco Central do Brasil". Ao contrário, nossa intenção era que o CNJ paulatinamente pudesse admitir, por seu poder regulatório delegado pela nova lei, novos agentes como apresentantes de extratos. E, não por coincidência, passei a sugerir que pudessem apresentar extratos, além dos agentes financeiros que já detêm essa legitimidade, também as companhias securitizadoras - que exercem função análoga, embora sem serem financeiras -, e os loteadores e incorporadores. Estes, por duas razões: (i) já são obrigados a alienar imóveis por meio de contratos padronizados previamente depositados no registro imobiliário, de modo que já previamente submetidos ao crivo do registrador; e (ii) já são autorizados, por lei, a transmitir imóvel sem recorrer à escritura pública, como acima demonstrado. Em um segundo grave equívoco, portanto, o Professor aventa, em tom alarmista, que "a Lei do SERP permite o uso de extratos eletrônicos (...) que podem ser produzidos pelas partes (...) e apresentados a registro por elas ou por terceiro interessado", indiscriminadamente, por "pessoas físicas ou jurídicas de todos os portes". No mundo real, jamais se pensou em extratos apresentados por "qualquer das partes" ou, muito menos, por "terceiros interessados". Nas dezenas de países em que existem extratos eletrônicos, prevalece a regra de que são apresentados exclusivamente pelo credor, titular do direito que se pretende registrar. São esses os termos em que, na parcela da comunidade jurídica dedicada ao estudo da modernização dos Registros Públicos, discutem-se extratos e sua eventual expansão no registro imobiliário. Ninguém defende, até onde se sabe, a substituição do sistema registral imobiliário pelos extratos eletrônicos, nem mesmo que possam ser apresentados por qualquer um ou para qualquer negócio jurídico. São fantasmas que já procurei exorcizar noutro artigo publicado neste Informativo, há cerca de um ano, intitulado "MP 1.085/21: A luz dos fatos para espantar os monstros noturnos". O uso de extratos no registro imobiliário tem sentido sobretudo em relação aos contratos massificados, como os de compra e venda simples realizada pelo próprio empreendedor (loteadores, incorporadores) e os de financiamento e garantia, realizados com agentes financeiros e agentes do mercado de capitais, a exemplo das companhias securitizadoras. Esses contratos, por serem padronizados e, no caso de loteadores e incorporadores, previamente depositados na circunscrição imobiliária em forma de minuta, estão plenamente disponíveis para a supervisão e a fiscalização das atividades extrajudiciais, feita pelo Poder Judiciário. Não se pretende, em sentido inverso, facultar o uso do extrato nos negócios mais complexos, que dependam de efetiva qualificação, cognição e interpretação do registrador para ingresso no fólio real. Afirma o Prof. Ricardo Campos que, "nesse novo contexto, os oficiais de registro não terão acesso ao instrumento pactuado, mas somente ao extrato produzido pelo pacto entre privados, que tomarão como fundamento para a qualificação do ato jurídico de base e inscrição registral. Dessa forma, não haverá a possibilidade de exercício de poder de polícia (...) sobre elementos que não constem no extrato". E isso é perfeitamente verdade quanto ao caso concreto, embora o poder de polícia esteja assegurado na fiscalização das instituições financeiras ou sobre os contratos padronizados previamente depositados, dos quais os atos concretos se originam, como acabo de explicar. A qualificação registral também está assegurada nos extratos, como o referido articulista acaba por reconhecer, o que se dará pelo cotejo dos elementos do extrato, da matrícula e dos documentos de suporte, que tornam especial cada negócio jurídico. Não haverá, entretanto, constante (re)qualificação das cláusulas contratuais e de aspectos formais do negócio jurídico de base. Esse olhar menos disperso do registrador, que alguns alardeiam como temerário, é a grande vantagem do sistema de extratos. Na prática, se evitará que um mesmo contrato, já examinado e aceito por registradores, escreventes e pelo Judiciário país afora, tenha suas cláusulas reescritas e reavaliadas ao bel prazer do escrevente de plantão, resultando aleatoriamente em negativas de registro e, frequentemente, em exigências ininteligíveis e injustificáveis. O que alguns têm defendido como uma inabdicável prerrogativa da qualificação registral não passa, muitas vezes, de uma análise mecânica supostamente minuciosa feita por prepostos, que em realidade resulta numa enorme variabilidade de opiniões pouco balizadas sobre questões juridicamente irrelevantes ou, simplesmente, na negativa do acesso ao registro. Essas idiossincrasias do sistema registral nada acrescem à segurança jurídica, mas certamente resultam no aumento dos prazos e custos transacionais, na frustração das partes e num grave prejuízo à confiança social nos Registros Públicos. Ao fim, são solo fértil às iniciativas verdadeiramente pararregistrais. Causa espécie que algum registrador se posicione contrariamente ao SERP, um sistema eletrônico gerido por registradores e supervisionado pelo CNJ, quando a seu largo brotam diuturnamente soluções oriundas do "Direito Digital" com a declarada pretensão de aposentar os Registros Públicos. Para os registradores, há também um avanço irreversível da tecnologia que irá tornar ultrapassadas atividades meramente burocráticas e formais. Isso inclui o exame de atos padronizados, para os quais as comunidades jurídica e econômica ocasionalmente apresentam alternativas bradadas como mais rápidas, seguras e baratas: mas, afinal, o Blockchain e os tokens podem substituir o Registro de Imóveis? Penso que não. Talvez o abandono gradual do exame minucioso de títulos padronizados, meramente formal e de trabalho repetitivo resulte, no futuro, em necessidade de menor número de registradores e escreventes, que se dedicarão aos casos em que há efetivo desafio à altura de um jurista - haverá, em contrapartida, necessidade de registradores e escreventes mais qualificados e, por consequência, repito, mais valorizados. O Prof. Ricardo Campos, finalmente, apresenta dois questionamentos em vista desse novo cenário, aos quais cabe resposta. Primeiro, se haveria "uma nova delimitação do regime de responsabilidade dos oficiais de registros visto que termos contratuais não presentes no extrato poderiam extrapolar o dever de conhecimento dos elementos essenciais à qualificação do título originário". Nesse ponto, complementa se "poderia se questionar se os oficiais de registros não poderiam ser acionados judicialmente à [sic] responderem sobre atos/fatos omissivos ou comissivos decorrentes do exercício de suas funções que não correspondam fielmente ao contido no extrato, quando este tenha sido formado por terceiros de maneira incompleta ou viciada". Parece evidente que o registrador não poderá responder por algo que não examinou. Portanto, a limitação da qualificação ao conteúdo do extrato é, além de tudo, uma proteção ao oficial de registro, não apenas em vista das partes, mas também de responsabilidades anômalas que ocasionalmente decorrem da delegação, como a responsabilidade tributária estendida aos oficiais pelos municípios na fiscalização do recolhimento do ITBI. O segundo e último questionamento diz respeito à oponibilidade do conteúdo contratual. Afinal, "a parte não poderá opor perante terceiros direitos que não estejam ali (no extrato) descritos, pois não gozam de publicidade registral". Essa afirmação é verdadeira em todos os países que adotam a forma de extrato e, para compreendê-la melhor e seus impactos, é necessário breve contextualização. Desde os anos 1960, os EUA adotam o extrato como o único meio de registro para garantias sobre bens móveis - lá, não é possível, nem voluntariamente, apresentar o contrato integral para qualquer exame pelo registro. Há uma infinidade de literatura jurídica examinando o impacto dessa adoção nos EUA, com destaque à linha de Law and Economics1. Evidentemente, houve também nos EUA ceticismo quanto à maior propensão do sistema de extratos às fraudes, de modo que o alarmismo brasileiro a esse respeito chega seis décadas atrasado. A conclusão é que o ganho econômico na simplificação do acesso ao registro é enorme, como se pode esperar, mas o aumento de ocorrência de fraudes, nesse sistema, é supreendentemente desprezível. O principal fator mitigador de fraudes é justamente que a oponibilidade dos direitos reais decorre da publicidade de declarações prestadas pelos seus próprios titulares. Em termos simples, se um banco credor apresenta uma garantia para registro e comete erro na transcrição das informações do contrato ao extrato, apenas duas consequências são lógica e legalmente possíveis: (i) primeiro, apenas aquilo que foi objeto de publicidade tornou-se oponível, de modo que, ao deixar de publicar algo, o credor prejudicou a oponibilidade do próprio direito (um exemplo: a garantia tinha por objeto dois bens, mas o extrato apenas mencionou um, de modo que apenas sobre um constituiu-se direito real); (ii) mesmo publicado, um direito convencional só é e permanece eficaz se decorrente de contrato válido, dado o caráter causal do nosso sistema - ou seja, de nada adianta pretender "inflar" seus direitos no extrato, pois diante da futura objeção de terceiro será necessário fazer prova do título. Enquanto não houver direitos controversos sobre a coisa, a publicidade não é posta à prova - sem controvérsia, a veracidade do registro é juridicamente irrelevante. Se houver controvérsia, entretanto, e esta ocorre em uma quantidade ínfima de casos, é preciso compreender que o registro goza apenas de presunção relativa, podendo a parte interessada fazer prova do seu direito. Finalmente, não custa lembrar que a grande maioria das garantias reais registradas jamais será executada. Segundo dados do Registro de Imóveis do Brasil, na média histórica, o número de consolidações de propriedade em excussão de alienação fiduciária equivale a 2% dos registros2. Na mesma linha, a experiência norte-americana demonstra que, sendo apenas os credores e titulares dos direitos os responsáveis pela redação do extrato, há pouquíssimo espaço para fraude, simplesmente porque fraudar o extrato não é capaz de gerar qualquer benefício ao apresentante. O sucesso no uso de extratos mobiliários, nos EUA, levou à sua adoção como modelo de melhores práticas por organismos internacionais e em mais de 45 países, inclusive na América Latina, como Colômbia e México. A Lei Modelo da ONU sobre Garantias Mobiliárias, aprovada em junho de 2016 no âmbito da UNCITRAL3 e ratificada pela Assembleia Geral por meio da Resolução 71/1361, de 2016, adotou o extrato como único modelo de registro de garantias reais sobre bem móveis - participei da redação da Lei Modelo como delegado do governo brasileiro, nomeado em 2015, e integrei a delegação até 2018, quando encerrou o mandato, na ONU, do grupo dedicado ao estudo das garantias reais. Desde 2020, integro o grupo responsável pela redação dos princípios para um processo de execução eficaz do UNIDROIT - Instituto Internacional para Unificação do Direito Privado, em Roma. Também nos textos que vêm sendo redigidos por esse grupo4, adota-se o sistema de extratos como modelo preferencial do registro de garantias reais sobre bens móveis, em seguimento à Lei Modelo da ONU. Como esperado, trata-se de grupo com grande participação de juristas de tradição romano-germânica, sendo um dos coordenadores Rolf Stürner, Professor Emérito da Albert-Ludwigs-Universität Freiburg. Há, com efeito, numerosa produção acadêmica em defesa da adoção dos princípios da Lei Modelo da ONU em países de tradição romano-germânica, incluindo o registro por extratos5. No caso brasileiro, dediquei algumas páginas ao tema no meu livro Garantias das Obrigações, publicado em 20176, em que relaciono diversas fontes e exemplos do uso de extratos. Daí por que só posso crer que o Prof. Ricardo Campos, de quem desconheço interesses individuais que o desabonem para a função a que foi nomeado, tenha em boa-fé se deixado impressionar pelos velhos fantasmas que ecoam das vozes corporativas. Talvez lhe falte apenas conhecimento, em maior profundidade, da produção acadêmica atual sobre os registros eletrônicos. Ao afirmar que "a figura da "extratificação" se assemelha, em seus efeitos, a figuras como da utilização de atos infralegais para erodir ordens constitucionais ou da objetivação do direito para deteriorar a ordem de direito civil", permitiu-se comparar minha atuação e de outros estudiosos sérios a um dos capítulos mais tristes da Humanidade, o nazismo. No entanto, ignora que os extratos registrais são uma evolução do Direito Contemporâneo de reverberação mundial, celebrada inclusive no continente europeu e nos organismos internacionais. Criados no contexto do pós-guerra e oriundos da Liga das Nações, esses organismos prestam-se justamente ao oposto do que o articulista receia: ao modernizar e harmonizar institutos ancestrais, promovem a democratização do estado da arte, fortalecem os sistemas jurídicos e aprimoram seu impacto social, em cumprimento aos princípios constitucionais que, nos Estados republicanos, regem o interesse público. Espera-se que a Corregedoria Nacional de Justiça, ao regulamentar o tema, atente-se mais a esses princípios, deixando adormecer os ecos do atraso e da ignorância. __________ 1 J. ARMOUR, The Law and Economics debate about secured lending: lessons for European lawmaking? in H. Eidenmüller, E.-M. Kieninger (eds.), The Future of Secured Credit in Europe, ECFR special volume, p. 14, Berlin, De Gruyter, 2008. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.   4 Disponível aqui. 5 ALEJANDRO M. GARRO, Harmonization of personal property secutiry law: national, regional and global initiatives, in ULR, v. 1/2, p. 357 ss, 2003; Id., El concepto genérico, global e integrado de "garantía mobiliaria": perspectivas comparadas, in C. Larroumet (org), L'evolution des garanties mobilières dans les droits français et latino-americains, p. 87 ss, Paris, Édition Panthéon-Assas, 2016; GIULIANO G. CASTELLANO, Reforming Non-Possessory Secured Transactions Laws: A New Strategy?, in MLR, Vol. 78, No. 4, Jul. 2015, pp. 611-640; Id., Reverse engineering the law: reforming secured transactions law in Italy, in S V Bazinas, O Akseli (eds), International and Comparative Secured Transactions Law - Essays in honour of Roderick A Macdonald, Hart, 2017, pp. 285-326; LUIS. M. PESTANA DE VASCONCELOS, Direito das Garantias, 2ª. Ed, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 34-5; EVA-MARIA KIENINGER, Introduction: security rights in movable property within the common market and the approach of the study, in E.M. Kieninger (org.), Security Rights in Movable Property in European Private Law, p. 6, Cambridge, Cambridge University Press, 2004; JEAN-FRANÇOIS RIFFARD, Le Security Interest ou l'approche fonctionnelle et unitaire des sûretés mobilières, Presses Universitaires de la Faculté de Droit de Clermont-Ferrand / LGDJ, 1997, p. 25, nº 40. 6 FÁBIO R. P. E SILVA, Garantias das Obrigações, São Paulo, Ed. IASP, 2017, pp. 606 ss.
Sabem aquelas imagens dos testes de Rorschach na psicologia, em que uma borboleta parece uma bruxa, uma mulher parece um golfinho ou um tronco de árvore que realça o perfil de uma face humana? Acompanhadas da fatídica pergunta "o que você vê primeiro?", logo vem a promessa de que a resposta há de definir a personalidade do observador. Pois bem. Imaginem uma gleba subdivida por abertura de novas vias de circulação e implantação de infraestrutura urbana, cuja oferta ao mercado contempla a entrega futura de partes menores individualizadas (lotes) destinadas à edificação. Loteamento, condomínio de lotes, incorporação imobiliária ou incorporação de casas? A depender da sua primeira percepção, sua especialidade jurídica ou empresarial há de ser revelada. Três tipos de empreendimentos, três distintos conceitos com natureza jurídica completamente distintas. Mas, com certa frequência, eles renovam o debate no mesmo ritmo daquele frisson da internet acerca do vestido branco e dourado (ou preto e azul?). Separemos o "joio do trigo"! Incorporação imobiliária. No artigo 28, parágrafo único, e artigo 29, da lei 4591/74, o legislador a definiu como uma atividade empresarial exercida pelo empreendedor que assume o compromisso de vender frações ideais de terreno, vinculando-as às futuras unidades autônomas, com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações sob regime condominial. Sob ponto de vista empresarial, é comum a confusão entre incorporação imobiliária e o ato de construir em si. Mas, sob o aspecto jurídico, a incorporação imobiliária é um negócio jurídico que permite o exercício da atividade empresarial de venda de unidade a ser construída ou em construção em regime condominial. Vale comentar, inclusive, que, caso se trate de um condomínio edilício com unidades à venda somente depois da conclusão das obras, não há necessidade de ser feita a incorporação imobiliária. Haverá simplesmente a instituição de condomínio com a possibilidade de venda de unidades já existentes (e não futuras). O objetivo especial da incorporação imobiliária é dar identidade e regulamentar a venda de imóvel inexistente no momento da celebração do negócio (unidade futura). Loteamento. O artigo 2º, § 1º, da Lei 6.766/79, o definiu como uma modalidade de parcelamento do solo caracterizada pela subdivisão de uma gleba em lotes destinados à edificação, com abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes. Nesta modalidade, desde o registro, conforme dispõe o artigo 22 da mesma lei, as vias de circulação, áreas institucionais, praças e espaços de uso coletivo (áreas institucionais) passam a ser de domínio público. Condomínio de lotes. Aqui, a explicação atrai um breve contexto histórico. Quando a Lei 4.591/64 definiu a atividade da incorporação imobiliária, o legislador a vinculou à venda de futuras unidades imobiliárias a serem construídas e submetidas ao regime condominial, recebendo tratamento específico no Título I da lei. Ou seja, o objeto desta atividade era a venda "na planta" de unidades de um edifício em construção. Neste formato, é instituído o condomínio edilício, cuja edificação passa a ter partes que são propriedade exclusiva (unidades autônomas) e partes que são propriedade comum dos condôminos. Logo, as áreas comuns (hall de entrada, piscina, espaços de circulação, entre outros) são de domínio particular. Talvez em razão das principais preocupações do mercado imobiliário da época estarem distantes da tímida atuação do loteador como empreendedor profissional, talvez por desatenção. Mas é certo que assim o legislador definiu. Ocorre que, aquele empreendedor - isto é, o loteador - que se compromete a subdividir uma gleba em lotes, promovendo a infraestrutura de urbanização com "abertura de novas vias de circulação, de logradouros públicos ou prolongamento, modificação ou ampliação das vias existentes", também vende e promete entregar futuras unidades imobiliárias. Elas não estarão vinculadas a uma edificação nem submetida ao regime condominial, mas este empreendedor também oferta e negocia um imóvel que ainda não existe. Percebam, portanto, que a atividade empresarial em si é semelhante. Mas, por definição legal e diante da ausência de edificação e/ou do regime condominial, o loteador ficou fora da categoria dos incorporadores. O art. 3º, do Decreto-Lei 271/67, publicado três anos depois, tentou remendar a situação, ao dispor que: Art. 3º Aplica-se aos loteamentos a Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, equiparando-se o loteador ao incorporador, os compradores de lote aos condôminos e as obras de infra-estrutura à construção da edificação. §1º O Poder Executivo, dentro de 180 dias regulamentará êste decreto-lei, especialmente quanto à aplicação da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, aos loteamentos, fazendo inclusive as necessárias adaptações. Porém, a regulamentação prometida no parágrafo primeiro nunca ocorreu. E, assim, um acirrado debate vem se arrastando por décadas: o loteamento poderia, ainda assim, ser submetido ao regime da incorporação? Seria possível subdividir uma gleba em lotes, sem vinculá-los a uma edificação, mas submetê-los ao regime condominial? Seria possível estabelecer áreas comuns em um loteamento? Se sim, poderia usufruir dos mesmos benefícios e deveres estabelecidos ao incorporador? O loteamento tido como "fechado" poderia ser constituído em regime condominial? O condomínio edilício, tal como previsto na Lei 4.591/64 e foi previsto no Código Civil de 2022, admitiria sua constituição sem vinculá-lo às edificações? As divergências entre os juristas pelo Brasil afora fizeram, inclusive, surgir normas estaduais que vedavam a venda de lotes em regime condominial (como em São Paulo); enquanto, em outros, admitia-se o registro deste tipo de empreendimento, contemplando as vias como áreas comuns e os lotes como áreas privativas (como ocorreu no Rio Grande do Sul, onde se tem notícia do primeiro condomínio de lotes registrado na cidade de Santa Maria em 1978). Como a demanda do mercado não respeita as lacunas ou omissões legislativas, o imbróglio acabou por não impedir o surgimento dos conhecidos "condomínios ou loteamentos fechados". Um empreendimento que, a olho nu, apresenta-se como um condomínio, com portaria e muro. Mas que tem a natureza jurídica de parcelamento do solo (loteamento propriamente dito) com vias de circulação e espaços comuns pertencentes ao domínio público, cujo controle do acesso é apenas concedido pelo Município de forma precária ao administrador do empreendimento. Mas, na verdade, são loteamentos, os quais a Lei 13.465/2017 tipificou como sendo loteamento com acesso controlado (artigo 2º, § 8º, da Lei 6.766/79). Foi somente com o advento da Lei nº 13.465/2017 que o assunto foi apaziguado no contexto da legislação federal. Ela incluiu o artigo 1.358-A no Código Civil, esclarecendo, enfim, que é possível sim ter um condomínio edilício independe de suas frações ideais estarem vinculadas a uma edificação. O dispositivo sofreu modificações também pela Lei 14.382/22 e, agora, vigora nos seguintes termos: Art. 1.358-A.  Pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos.  § 1º  A fração ideal de cada condômino poderá ser proporcional à área do solo de cada unidade autônoma, ao respectivo potencial construtivo ou a outros critérios indicados no ato de instituição.  § 2º Aplica-se, no que couber, ao condomínio de lotes:     I - o disposto sobre condomínio edilício neste Capítulo, respeitada a legislação urbanística; e II - o regime jurídico das incorporações imobiliárias de que trata o Capítulo I do Título II da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, equiparando-se o empreendedor ao incorporador quanto aos aspectos civis e registrários. § 3º  Para fins de incorporação imobiliária, a implantação de toda a infraestrutura ficará a cargo do empreendedor.  Portanto, condomínio de lotes não é modalidade de parcelamento do solo. É forma de organização da propriedade imobiliária, revelando-se em uma espécie de condomínio edilício, pela qual a lei prevê que "pode haver, em terrenos, partes designadas de lotes que são propriedade exclusiva e partes que são propriedade comum dos condôminos". No mesmo sentido, dispõe o artigo 2º, §7º, Lei 6.766/79, também incluído pela mesma lei de 2017, que estabelece: "o lote poderá ser constituído sob a forma de imóvel autônomo ou de unidade imobiliária integrante de condomínio de lotes". Vale comentar que, em razão do longo debate sobre o tema, bem como por força da competência constitucional atribuída aos Municípios para legislarem sobre seu ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano, há locais que tratam o "condomínio de lotes" como uma tipologia de parcelamento do solo. Mas, este ponto merece estudo próprio, para o qual é essencial a leitura da obra de autoria do brilhante Bernardo Amorim Chezzi, o livro intitulado "Condomínio de Lotes: Aspectos Civis, Registrais e Urbanísticos" e publicado pela Editora Quartier Latin, chega à sua 2ª edição. Mas, para fins do contexto da legislação federal, restou expresso que a constituição do condomínio edilício, como um condomínio especial, pode se dar de forma desvinculada da edificação; e, agora, por expressa disposição legal, estabeleceu-se também que a oferta de suas futuras unidades durante a fase de construção da infraestrutura do condomínio de lotes poderia ser objeto da incorporação imobiliária. Percebem, portanto, que os conceitos não se confundem. Loteamento é a divisão de uma gleba em partes menores, transformando-a em vários imóveis menores e destinando as vias e espaços de uso coletivo ao domínio público. Condomínio de lotes é um condomínio especial que organiza a propriedade de um imóvel subdividindo-a a gleba em frações ideias, distinguindo o que é parte comum do que é privativo, sem vinculá-las às edificações e mantendo as vias e áreas comuns como de propriedade privativa. E incorporação imobiliária é uma atividade empresarial. Repito: incorporação imobiliária é uma atividade empresarial por expressa definição legal! Neste sentido, a legislação também impôs direitos, deveres e benefícios ao incorporador, especialmente para que essa atividade empresarial pudesse ser fomentada de maneira segura e ordeira, protegendo os adquirentes de futuras unidades, especialmente diante da sua relevância econômica no mercado brasileiro. Dentre os benefícios, encontra-se o RET, o Regime Especial Tributário instituído pela Lei nº 10.931/2004 que prevê um regime simplificado aplicável às incorporações imobiliárias que tenham sido submetidas ao patrimônio de afetação previsto nos artigos 31-A a 31-E da Lei nº 4.591/1964, contemplando uma forma de apuração dos tributos federais simplificada e reduzida. Esta lei diz: Art. 1º Fica instituído o regime especial de tributação aplicável às incorporações imobiliárias, em caráter opcional e irretratável enquanto perdurarem direitos de crédito ou obrigações do incorporador junto aos adquirentes dos imóveis que compõem a incorporação. Art. 2º A opção pelo regime especial de tributação de que trata o art. 1º será efetivada quando atendidos os seguintes requisitos: I - entrega do termo de opção ao regime especial de tributação na unidade competente da Secretaria da Receita Federal, conforme regulamentação a ser estabelecida; e II - afetação do terreno e das acessões objeto da incorporação imobiliária, conforme disposto nos arts. 31-A a 31-E da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964. Por definição legal, portanto, o RET foi permitido à atividade empresarial desempenhada pelo empreendedor que "assume o compromisso de vender frações ideais de terreno, vinculando-as às futuras unidades autônomas, com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações sob regime condominial" e que submete tal empreendimento ao patrimônio de afetação. Ou seja, o RET é permitido somente para os empreendimentos que podem ser objeto da incorporação imobiliária prevista na Lei 4.591/64; que, por sua vez, não abrange a atividade desempenhada pelo loteador na venda de futuros lotes. Tema que, inclusive, foi pacificado pela Solução de Consulta Cosit nº 196, de 05 de agosto de 2015, da Receita Federal.1 Contudo, para elevar o nível de dificuldade de distinção das "cores do vestido", eis que o legislador trouxe uma nova figura na Lei 14.382/22: a incorporação de casas, prevista nos seguintes termos: Art. 68. A atividade de alienação de lotes integrantes de desmembramento ou loteamento, quando vinculada à construção de casas isoladas ou geminadas, promovida por uma das pessoas indicadas no art. 31 desta Lei ou no art. 2º-A da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, caracteriza incorporação imobiliária sujeita ao regime jurídico instituído por esta Lei e às demais normas legais a ele aplicáveis. § 1º A modalidade de incorporação de que trata este artigo poderá abranger a totalidade ou apenas parte dos lotes integrantes do parcelamento, ainda que sem área comum, e não sujeita o conjunto imobiliário dela resultante ao regime do condomínio edilício, permanecendo as vias e as áreas por ele abrangidas sob domínio público. § 2º O memorial de incorporação do empreendimento indicará a metragem de cada lote e da área de construção de cada casa, dispensada a apresentação dos documentos referidos nas alíneas e, i, j, l e n do caput do art. 32 desta Lei. § 3º A incorporação será registrada na matrícula de origem em que tiver sido registrado o parcelamento, na qual serão também assentados o respectivo termo de afetação de que tratam o art. 31-B desta Lei e o art. 2º da Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004, e os demais atos correspondentes à incorporação. A nova figura misturou "alhos com bugalhos". A incorporação de casas é uma atividade empresarial desenvolvida pelo empreendedor imobiliário que faz um loteamento (isto é, parcela o solo, subdividindo a gleba em partes menores mediante a abertura de novas vias de circulação; e não o organiza como se fosse um condomínio edilício), mas promete entregar não apenas o lote, mas também a edificação sobre ele. Diante dessa paella de empreendimentos e atividades empresariais imobiliárias, a Receita Federal publicou recentemente a Solução de Consulta COSIT Nº 24, de 20 de janeiro de 2023, dispondo que: INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. REGIME ESPECIAL DE TRIBUTAÇÃO. PARCELAMENTO DO SOLO MEDIANTE LOTEAMENTO. CONSTRUÇÃO DE UNIDADES HABITACIONAIS. ADMISSIBILIDADE DE ADESÃO. MARCO TEMPORAL. Anteriormente a 28 de junho de 2022, data de publicação da Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022, no DOU, o parcelamento do solo mediante loteamento, per se, ainda que contratualmente vinculado à opção de construção de unidades habitacionais segundo projetos previamente aprovados pelo órgão competente, era insuficiente para caracterizar a incorporação imobiliária, para fins de adesão ao Regime Especial de Tributação (RET) instituído pelos arts. 1º a 10 da Lei nº 10.931, de 2004. A partir de 28 de junho de 2022, o parcelamento do solo mediante loteamento caracteriza a incorporação imobiliária, para fins de adesão ao Regime Especial de Tributação (RET) instituído pelos arts. 1º a 10 da Lei nº 10.931, de 2004, desde que sejam atendidos os requisitos da legislação de regência, entre os quais se destaca a vinculação da atividade de alienação de lotes integrantes do loteamento à construção de casas isoladas ou geminadas, promovida por uma das pessoas indicadas no art. 31 da Lei nº 4.591, de 1964, ou no art. 2º-A da Lei nº 6.766, de 1979. SOLUÇÃO DE CONSULTA PARCIALMENTE VINCULADA À SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT Nº 196, DE 5 DE AGOSTO DE 2015. Dispositivos Legais: Lei nº 4.591, de 1964, arts. 28, parágrafo único, 29 e 68; Lei nº 6.766, de 1979, art. 2º, §§ 1º e 2º; Lei nº 10.406, de 2022 (Código Civil), art. 1.358-A; Lei nº 10.931, de 2004, arts. 1º e 4º; Lei nº 14.382, de 2022, arts. 10 e 14; Instrução Normativa RFB nº 1.435, de 2013, art. 2º, § 1º. A leitura dinâmica nas mídias sociais levou milhares de loteadores e advogados à ligeira felicidade de que, enfim, o RET seria aplicado ao loteamento. Porém, há ali um "desde que" que muda tudo. Vejam: "(...) desde que sejam atendidos os requisitos da legislação de regência, entre os quais se destaca a vinculação da atividade de alienação de lotes integrantes do loteamento à construção de casas". Esta ressalva feita pela Consulta define que objeto da resposta é - e tão somente - a incorporação de casas; o que já está previsto no artigo 68 da Lei 4.591/64, e que, portanto, pode sim ser submetida ao patrimônio de afetação e, por conseguinte, usufruir dos benefícios do RET. Aliás, o contribuinte que formulou a consulta queria, na verdade, questionar a Receita Federal sobre o RET em condomínio de lotes. Mas, a resposta acabou por tratar de loteamento. Novamente, uma mistura de joio e trigo. O assunto, então, poderia ser organizado da seguinte forma: Em suma: Onde há incorporação imobiliária, pode ter RET; onde não há incorporação imobiliária, não tem RET. Isso porque o legislador assim definiu. Ele enxergou branco e dourado ao invés de preto e azul. É clarividente que a diferença é tênue. A atividade do empreendedor loteador, cada vez mais expressiva e pujante no mercado pós-pandemia, urge por um reconhecimento no mesmo patamar do incorporador. E, por isso, são esperançosas e animadoras as teses em defesa da suficiência do disposto no art. 3º, do Decreto-Lei 271/67 e os movimentos de propositura legislativa que possam promover essa plena equiparação.   Porém, é importante pontuar que, em defesa da segurança e previsibilidade jurídica, é razoável perseguirmos o respeito à lei - qualquer que seja - ao invés de insistirmos na imposição de interpretações extensivas que acabam por criar instabilidade nas relações negociais. Assim sendo, diante do arcabouço legislativo vigente neste momento, trazer o RET para todas as modalidades de loteamento demanda alteração legislativa. Como, por exemplo, sugere a proposta da Emenda 63 à Medida Provisória nº 1.162, de 2023, que propõe alteração na Lei 6.766/79 e na Lei 10.931/2004 para expressamente dispor sobre a possibilidade do loteador - em qualquer que seja seu empreendimento (com ou sem casas em construção) - optar pelo RET. Mas, ainda resta o debate se a expressa opção seria suficiente ou se não seria necessário também o acréscimo, na Lei 6.766/79 ou na Lei 4.591/64, da equiparação do loteador ao incorporador, ou da previsão do loteamento ser objeto de incorporação imobiliária, já que o art. 1º da Lei nº 10.931/2004 ao dispor sobre o RET, estabelece que é um regime exclusivo à incorporações imobiliárias que tenha constituído o patrimônio de afetação. Essa equiparação, permitiria o loteador, enfim, ser reconhecido como um empreendedor imobiliário. Um pequeno ajuste de foco. E todos enxergarão que o "vestido" era mesmo preto e azul. Ou, enfim, perceberão todos as cores, ops! Nuances multidisciplinares dos empreendimentos imobiliários.  __________ 1 ASSUNTO: NORMAS DE ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA. EMENTA: REGIME ESPECIAL DE TRIBUTAÇÃO. INCORPORAÇÕES IMOBILIÁRIAS. O Regime Especial de Tributação (RET), instituído pelos arts. 1º a 10 da lei 10.931, de 2004, aplica-se exclusivamente às incorporações imobiliárias, não sendo, portanto, extensivo ao parcelamento do solo, mediante loteamento ou desmembramento. Caso ocorra posterior incorporação realizada nos lotes resultantes do parcelamento, o incorporador poderá aderir ao RET e ter as receitas decorrentes da incorporação tributadas na forma prevista no art. 4º da lei mencionada, desde que observados os requisitos previstos na Instrução Normativa RFB nº 1.435, de 2013. DISPOSITIVOS LEGAIS: lei 10.931, de 2004, arts. 1º e 4º; lei 4.591, de 1965, arts. 28, parágrafo único, e 29; lei 6.766, de 1979, art. 2º, §§ 1º e 2º; IN RFB nº 1.435, de 2013, art. 2º, § 1º. Disponível aqui. Acesso em 13. fev. 2023.
Não são raros os exemplos de cidades que sofreram com a degradação de seus centros e que buscaram, de diversas formas, a sua revitalização, nem sempre com sucesso.  Tomando como exemplo São Paulo, assistimos um processo de espraiamento da Cidade e de acentuado deslocamento do centro financeiro e de grande parte do comércio estabelecido no centro para outras regiões.   Há quem atribua como causa inicial desse êxodo das empresas rumo a outras centralidades, o fato de ter sido implantado na década de 70, o denominado "calçadão", solução urbanística pela qual se restringiu sobremaneira o tráfego de veículos na região central, prestigiando o deslocamento a pé.   Com o tempo, os calçadões se tornaram espaços desagradáveis, seja pela qualidade do piso, seja pela ausência de definição de faixas de circulação para veículos de serviços ou ainda, pelo desconforto de, em dias de chuva por exemplo, se chegar ao destino pretendido apenas a pé.  O fato é que com a desocupação dos imóveis voltados a atividades não residenciais nessa região dos calçadões, as mazelas do abandono acabaram sendo irradiadas para outras áreas do centro da Cidade nas quais não se tinha introduzido a solução dos calçadões.  Ainda que não haja apenas um motivo causador do esvaziamento do centro da Cidade, mas sim a conjugação de vários fatores, o que se verifica é que a região se encontra degradada e em absoluta situação de abandono, em que pese ainda podermos constatar uma ou outra hercúlea e isolada iniciativa de lá desenvolver uma atividade empresarial.  Não bastasse o aspecto histórico (riqueza do patrimônio cultural do qual podemos destacar o Teatro Municipal, Bibliotecas, Museus, monumentos, etc), o centro oferece todos os importantes equipamentos públicos (mercados públicos, sacolões, dezenas de unidade de ensino público infantil, fundamental e médio, unidades de ensino técnico público, além das unidades do SENAI, SESI, SENAC, ambulatórios especializados, UBS, dezenas de hospitais,  agências do Correios, Poupatempo e as várias estações de Metrô e estações de ônibus).  Para agravar essa situação de esvaziamento da região central, o advento da pandemia da COVID-19 provocou mais esvaziamento, alcançando alto índice de vacância dos imóveis e baixa probabilidade de futura ocupação diante da modificação da cultura de trabalho, com a implementação do trabalho remoto.  A propósito, interessante reportagem trazida pela revista The Economist destaca essa situação que também está sendo experimentada em Manhattan onde a taxa de vacância dos escritórios está em seu maior recorde. Muitas lojas e restaurantes que tinham como clientes, os trabalhadores que iam aos seus escritórios, com o trabalho remoto, tais estabelecimentos estão fechando ou enfrentando graves problemas para manter-se na ativa.  Essa situação, conforme relata a reportagem, levou o Prefeito Eric Addams e o Governador do Estado Kathy Hochul a apresentarem um plano para transformar a cidade de Nova Iorque, com 40 iniciativas atacando três amplas áreas: distritos comerciais, mobilidade e moradia, sempre levando em conta crescimento e equidade (fonte).  Uma das iniciativas se volta na transformação dos imóveis até então utilizados para atividades não residenciais, para unidades destinada à moradia.  Assim contextualizada a situação, é que devemos analisar a alteração trazida no Código Civil, referente à mudança de destinação de um condomínio edilício.   No âmbito dos condomínios edilícios, a exigência de unanimidade para a alteração da destinação do edifício ou mesmo de uma única unidade autônoma, sempre se mostrou como um grande empecilho às transformações arquitetônicas, de molde que, por iniciativa do Senador Carlos Portinho (PL 4.000/21), foi modificada a redação do artigo 1351, do Código Civil para permitir a alteração da destinação da edificação mediante a aprovação de 2/3 dos condôminos, o que certamente contribuirá para tal finalidade.   Acontece, todavia, que não se pode perder de vista que a alteração da destinação da edificação pode afetar o direito de propriedade dos condôminos, na medida em que é possível encontrar proprietários de unidades autônomas que exerçam o seu direito de propriedade há muito e não desejam a modificação, a qual pode inclusive causar prejuízos financeiros expressivos. Por exemplo: um escritório de advocacia há muito situado em um determinado edifício que seja transformado em edifício exclusivamente residencial. De um momento para o outro, diante da alteração, estaria esse condômino impedido de seguir com a exploração de sua atividade empresarial diante da decisão assemblear de alterar a destinação do edifício para uso residencial. Deparamo-nos aqui com o primeiro questionamento: a alteração da destinação do edifício é impositiva (todas as unidades deverão ter a nova destinação, conforme deliberado em assembleia) ou autorizativa (os condôminos que quiserem dar às suas unidades a nova destinação, passam a estar autorizados a assim proceder)?  À primeira vista, parece-nos que o texto legal é imperativo, ou seja, 2/3 dos votos dos condôminos podem mudar a destinação do edifício ou da unidade autônoma, cabendo aqui lembrar o disposto no artigo 1.336 do Código Civil, que impõe como dever dos condôminos "IV - dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes".   Todavia, vale ressaltar que essa interpretação literal do artigo poderá levar a teratológicas situações, por exemplo, em que 2/3 dos condôminos titulares de unidades destinadas a uso não residencial deliberem que as demais unidades correspondentes a 1/3 do condomínio tenham sua destinação modificada para uso residencial (ou vice-versa), o que poderia caracterizar situação de abuso de direito que não compatibilizaria com o objetivo da norma.    O que parece dar guarida à imposição da mudança da destinação do edifício por deliberação de 2/3 dos condôminos é antes de tudo, o respeito ao princípio constitucional do cumprimento da função social da propriedade (art. 5º, inciso XXIII).  Nesse sentido, a recomendação que se faz para aqueles que pretendam modificar a destinação do edifício mediante aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos, que o faça calcado em justificativas técnicas demonstrando que tal como se encontra o edifício, não se tem exploração sustentável, tampouco estão as unidades autônomas, ao menos em sua maioria, cumprindo sua função social.  Assim, justificada a alteração da destinação, não nos parece viável que algum condômino descontente com a mudança possa impedir que ela se opere.  Outra questão que se apresenta se refere ao quórum para alteração da fachada.  Como se sabe, o inciso III do artigo 1336 do Código Civil impõe como dever do condômino "III - não alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias externas"; tal como previsto no inciso I do artigo 10 da lei 4591/64.  Ocorre que se a Assembleia Condominial aprovar, por 2/3 dos condôminos, modificar a destinação do edifício, seria plausível exigir a aprovação da unanimidade dos condôminos para alterar a fachada da edificação?  A nosso ver, a exigência do quórum especialíssimo da unanimidade não se mostra razoável devendo aqui prevalecer a máxima "a maiori, ad minus", razão pela qual as alterações de fachada que decorram exatamente da modificação de destinação da edificação poderiam ser aprovadas pelo quórum de 2/3 dos condôminos.  Outro ponto que cabe reflexão está relacionado à irretroatividade da lei.  Sem pretender exaurir o tema, não se pode deixar de consignar que a lei nova não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada conforme assegurado pelo inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal.   No âmbito condominial, há muito se consolidou o entendimento de que, diante da natureza estatutária dispositiva da convenção de condomínio, o Código Civil se sobrepõe às normas da convenção anteriormente instituída, não obstante em reiteradas oportunidades, igualmente se verificou que, não tendo sido revogados expressamente os artigos 1º a 27, da lei 4.591/64, aplicam-se seus dispositivos para condomínios constituídos antes de 11 de janeiro de 2003.  Por isso, cabe indagar sobre a hipótese de condomínio com determinada destinação instituído antes da alteração do artigo 1351, CC, contemplando regra na convenção de que a alteração somente poderia ocorrer mediante quórum de unanimidade, se esta regra estaria superada e derrogada pela lei 14.405/22. A princípio, tratando-se as normas da convenção de condomínio de meras restrições ao direito de propriedade, contornos ao seu exercício, a alteração da destinação não constituiria uma limitação, no sentido conferido por Pontes de Miranda, de subtração do direito de propriedade, de modo que esta alteração aprovada pela maioria qualificada teria o condão de impor a todos os condôminos esta nova conformação da propriedade, no âmbito deste condomínio, posto que não diminui o conteúdo do direito de propriedade, mas apenas o reduz. Tal alteração todavia exigirá uma análise específica em cada situação em concreto, posto que a convenção de condomínio poderá contemplar regras mais restritivas e não necessariamente sujeitas à supressão pela lei nova, especialmente quando afetar a esfera jurídica patrimonial de algum condômino, não de forma genérica, mas de forma específica e determinante.   Por tratar de matéria relacionada ao direito de propriedade, garantido nos termos do inciso XXII do art. 5º da C. F., cabe questionar: a alteração do artigo 1.351 do Código Civil seria inconstitucional?  Na nossa opinião, não.  Com o devido respeito às opiniões contrárias, dentre elas, aquela constante do parecer exarado pela respeitabilíssima Comissão de Direito Condominial da OAB, Subseção São Paulo, não há inconstitucionalidade na alteração, a qual, inclusive em controle de constitucionalidade preventivo, pela Comissão de Constituição e Justiça, assim não foi entendido. Como é sabido, o direito de propriedade, apesar de constituir direito fundamental, deve sempre observar sua função social, a qual se expressa inexoravelmente no âmbito condominial na compatibilização dos direitos e deveres dos condôminos, conforme deliberações nas assembleias gerais, mediante o quórum qualificado quando a lei assim determinar, observado o consagrado princípio da pluralidade dos direitos reais limitados concebido por Wilson de Campos Batalha.  A alteração da destinação é uma das hipóteses que somente poderá valer a partir da aprovação pela maioria qualificada de 2/3 dos condôminos, de modo que a alteração, atendido o quórum, será legal, impondo inclusive aos dissidentes o dever de cumprimento da nova deliberação.  As circunstâncias do caso em concreto merecem ser analisadas, à luz até mesmo do princípio norteador do ordenamento jurídico brasileiro - a intangibilidade da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), posto que também não vislumbra coerente, justo e ético, que se desconsidere o uso efetivo da propriedade, sob o argumento de que os demais desejam outra destinação para o edifício. Seria então o caso de se buscar uma indenização para aquele que se sentir prejudicado pela decisão da maioria? Cumpre sopesar direitos fundamentais de modo a construir uma solução jurídica compatível com o sistema, o que pode ensejar, desde a definição de uma destinação mista, até a venda da unidade pelo condômino, com a aplicação dos artigos 14 e 15, da lei 4591/64 de modo que a maioria pudesse adjudicar as unidades da minoria. Eventual pleito indenizatório, nesta hipótese, dependeria da demonstração da ocorrência de ato ilícito, como a própria demonstração do abuso do direito (art. 187, CC), não simplesmente da alteração da destinação, ainda que possa ser causadora de prejuízo ou insatisfação do condômino dissidente, posto que a alteração constituiria, em regra, exercício regular de direito. Como se verifica, em apertada análise, o tema é deveras controvertido, de extrema relevância e aplicação prática, merecendo especial atenção e cuidado em sua aplicação, de modo a atender aos melhores interesses do condomínio, em sua maioria qualificada, atendendo, desta forma, a função social da propriedade. Muitas outras repercussões decorrem da análise dos programas de requalificação dos imóveis que vem sendo incentivados em diversos municípios, o que será objeto de outros comentários futuros.
A aquisição de imóvel em construção é, ou deveria ser, uma das decisões mais importantes dos consumidores, por envolver, para a grande maioria deles, recursos financeiros muito elevados em relação à sua renda. Poucos são aqueles que podem adquirir um imóvel à vista, sendo quase sempre necessário um longo parcelamento, que constitui compromisso assumido por anos ou mesmo décadas, seja com a incorporadora, seja com um banco financiador. Por outro lado, para a empresa produtora, planejar, adquirir o terreno, aprovar e construir o empreendimento é atividade das mais complexas e difíceis, diante da responsabilidade de entregar em prazo determinado uma edificação de alto valor. A aquisição se dá usualmente por meio de um contrato de promessa de venda e compra entre a incorporadora (fornecedor) e o adquirente (consumidor), regrado pelo Código Civil, pela Lei 4.591/64 e também tutelado pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC), a lei 8.078/90. Nessa relação contratual, a rescisão do contrato pelo adquirente, mediante desistência do negócio, justificada ou imotivada, com o recebimento em devolução de parte dos valores pagos, tem sido chamada de forma pouco técnica simplesmente por "distrato".  Trata-se de uma das questões mais complexas e importantes das relações contratuais consumeristas e de direito imobiliário. A promessa de venda e compra de bem imóvel é, em regra, irretratável, conforme art. 22 do decreto-lei 58/1969, arts. 1.417 e 1.418 do Código Civil e, especificamente no âmbito da incorporação imobiliária, pelo parágrafo 2º do art. 32 da lei 4.591/64. Embora o texto original da Medida Provisória 1095/2022 revogasse esta última disposição, a irretratabilidade foi mantida com a conversão da MP na Lei 14.382/2022. A manutenção de tal atributo ao contrato é de grande importância, pois sua supressão poderia dar margem a duas interpretações indesejadas e contrárias ao consumidor: a que qualquer das partes poderia pleitear o desfazimento do negócio ou que seu registro não conferiria direito real oponível a terceiro (pelo art. 1.417 do Código Civil a irretratabilidade é condição do direito real). Entretanto, há tempos a jurisprudência é pacífica no sentido de que o comprador de unidade autônoma, adimplente ou não, pode pleitear o desfazimento do negócio, recebendo em devolução parte dos valores pagos. A matéria foi, inclusive, objeto da Súmula 1 do Tribunal de Justiça de São Paulo1. E a chamada "Lei dos Distratos" (lei 13.786/2018) veio positivar essa possibilidade, com a inclusão do art. 67-A na Lei de Incorporações. Assim, a rescisão do contrato, por iniciativa do adquirente ou por seu inadimplemento, é admissível, mediante a penalidade estabelecida contratualmente, com base na lei. O ponto de maior divergência sempre residiu justamente em qual o percentual dos valores pagos poderá ser retido pela incorporadora. As decisões judiciais anteriores à lei variavam em uma retenção entre 10% e 25%, sendo que no período mais imediato antes da nova norma, prevalecida no Superior Tribunal de Justiça (STJ) o percentual em torno de 25%. E, por meio da Súmula 543, o STJ determinou a devolução dos valores à vista2. A possibilidade do comprador, no caso de pretender o desfazimento contratual,  receber de volta a quase totalidade dos valores por ele pagos, corrigidos monetariamente e em de um única vez, se constituiu em verdadeiro incentivo ao litígio. Ao menor desconforto financeiro, ou ficando em dúvida quanto a ter ou não realizado bom negócio, os adquirentes partiram para o chamado "distrato", gerando severo impacto para as empresas do setor. A promessa de venda e compra irrevogável foi convertida em uma verdadeira "opção", em que o adquirente ao longo do tempo e, conforme sua conveniência, decidia se mantinha ou não o negócio, praticamente sem penalidade.  Poderia até mesmo fazer uma aposta: se o imóvel valorizar, a compra é mantida; se não valorizar, exige-se a devolução de quase todos os valores pagos, corrigidos monetariamente. Essa situação, é claro, distorceu totalmente a atividade econômica, que necessita de um mínimo de segurança e previsibilidade. Embora o fenômeno dos distratos seja jurídico, está relacionado diretamente com o momento econômico, pois as "desistências" aumentam exponencialmente em situações de crise, como nos anos de 2015 e 2016, em que o índice de distratos sobre vendas superou 40%3, levando inúmeras empresas à recuperação judicial ou mesmo quebra, paralisação de centenas de obras, com os consequentes efeitos negativos, não apenas para as incorporadoras, mas para os compradores adimplentes, para os empregados e para o mercado em geral.  Muitas dessas decisões não consideravam aspectos importantes da incorporação imobiliária, especialmente o conceito do patrimônio de afetação, criado pela lei 10.931/2004, justamente para dar maior proteção ao grupo de condôminos e evitar atrasos e paralisação nas obras. Ao ser adotado o patrimônio afetado, os recursos obtidos em um empreendimento têm necessariamente que ser destinados para o término das obras e quitação do financiamento e não para outras finalidades, havendo inclusive vedações para retirada de valores pela empresa, antes de garantidas receitas para término da construção. Esse patrimônio especial tem o objetivo de blindar as contas do empreendimento, em benefício da comunidade de consumidores. É de grande importância que, em um empreendimento de altíssimo custo e longo prazo de produção, haja controle e previsibilidade dos recursos com que se pode contar e com as despesas que se incorrerá. Nesse sentido, a quantidade de apartamentos vendidos e recebimento das parcelas do preço tornam-se uma questão fundamental sobre a segurança em se desenvolver o projeto. Tanto é assim que o art. 34 da lei 4.591/1964 permite à incorporadora estabelecer previamente ao lançamento, como condição de prosseguir com a edificação, ter vendido um número mínimo de unidades. Trata-se de norma para proteger a todos os envolvidos, pois há risco considerável, também para os compradores, o prosseguimento de uma obra sem uma quantidade de vendas mínimas para manter seu equilíbrio financeiro. Ora, se o próprio ordenamento jurídico compreende essa situação, não poderia ele ser condescendente com o esvaziamento dos compradores em uma obra em desenvolvimento. A facilidade conferida ao adquirente de se desobrigar do compromisso assumido, drenando recursos do patrimônio afetado, tornou-se sério risco para a continuidade das obras e entrega do empreendimento e, assim, acabou se configurando também uma ameaça aos consumidores que permaneciam adimplentes. Os efeitos e impactos do distrato devem ser analisados dentro do contexto da incorporação e do patrimônio afetado, que congrega a produtora do bem e o conjunto de adquirentes. Por se tratar de atividade que demanda capital elevado para a construção, desde 1964 há no Brasil um sistema para viabilizar e incentivar a produção de moradias, o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), posteriormente complementado também pelo Sistema Financeiro Imobiliário (SFI). O SFH permite que a incorporadora tenha acesso a financiamento bancário para realização das obras e que os adquirentes possam financiar sua aquisição por longo prazo, com juros menores. O financiamento para a incorporadora é muitas vezes um requisito necessário para a realização do empreendimento e somente é acessado após atingido determinado número de vendas, por exigência do agente financeiro. Por sua vez, a quitação do financiamento se dá logo que concluídas as obras, normalmente quando os adquirentes quitam os apartamentos, com recursos próprios ou contraindo financiamento bancário de longo prazo. Nesse contexto, a elevação do número de distratos tem gravíssimos efeitos sobre o empreendimento. Com um contrato rescindido, deixa de ingressar no patrimônio de afetação o valor das parcelas contratadas por aquele adquirente e, pior, é necessário retirar valores que seriam carreados para a obra, para entregar ao desistente. Com menos recursos ingressando na obra, aumenta-se o risco de atrasos, o que gera obrigação de pagamento de multa pela incorporadora. Um número elevado de distratos na fase inicial pode fazer com que a incorporadora não atinja o numero mínimo de vendas para liberação do financiamento, comprometendo a saúde financeira do projeto. E ainda, com muitos distratos ao longo da fase de obra, a incorporadora tem menos recursos para quitar o agente financeiro, tendo que repactuar prorrogações a juros maiores ou mesmo sofrendo execução bancária. Também por tais razões, os impactos dos distratos podem ser muito severos para as empresas e até para os consumidores adimplentes. Há outro elemento não percebido de imediato: com o aumento do risco proporcionado pelos distratos, as condições de obtenção de financiamento e taxas de juros tornaram-se maiores, elevando o preço final da habitação. A chamada Lei dos Distratos veio com o objetivo de ajustar essa perigosa distorção. Foi estabelecida uma diferença entre as obras não submetidas ao patrimônio de afetação e aquelas que adotam tal regime. Nas primeiras, a incorporadora está autorizada a prever no contrato a retenção de 25% dos valores pagos no caso de desfazimento do negócio, enquanto que nos empreendimentos submetidos ao regime de afetação, a multa contratual pode ser de 50%.  Também no caso do patrimônio de afetação e justamente para proteger o interesse dos adquirentes, a devolução se dá trinta dias após o certificado de conclusão das obras, norma de grande importância para o equilíbrio do empreendimento e que derroga parte da citada Súmula 543 do STJ, que determinava devolução imediata. Embora tenha considerado os impactos acima referidos, a norma que prevê a penalidade de 50% das importâncias pagas não foi bem recebida por parte da jurisprudência, por entender se tratar de percentual elevado. Tais decisões têm afastado a cláusula que prevê tal percentual, ou por considerá-la "abusiva", ou valendo-se do art. 413 do Código Civil, segundo o qual "a penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio".   A divergência já se encontra no STJ, com decisões favoráveis e contrárias à cláusula que segue o parâmetro legal.  No primeiro caso, é exemplo o Agravo em Recurso Especial 2062928-SP, relator min. Luis Felipe Salomão, de 24/03/2022. Já no segundo, citamos Recurso Especial 1979096-SP, relator Min. Moura Ribeiro, de 01/02/2022. Com todo o respeito às decisões contrárias, não se pode considerar uma prática abusiva a aplicação de penalidade em absoluta consonância com lei expressa e especial.  Além disso, no que se refere ao art. 413,  sua aplicação ocorre quando a multa é estabelecida livremente pelas partes, sem seguir parâmetros legais,  mas não quando segue preceito normativo a respeito, como no caso concreto. Se a penalidade foi estabelecida na própria legislação, a cláusula contratual não pode ser "manifestamente excessiva." Entretanto, o cerne principal da questão é que as decisões judiciais que afastam a penalidade permitida pela lei não levam em conta - até porque muitas vezes não são devidamente informados - os graves impactos e riscos que os distratos trazem para a incorporadora, para o patrimônio de afetação e para os demais consumidores. A nova lei, em atenção à própria análise econômica do direito, veio com o objetivo de harmonizar a relação contratual, desincentivando a desistência abusiva que tantos riscos trazia para essa atividade essencial. A lei traz a correta finalidade de proteger o empreendimento e os consumidores que nele permanecem, esforçando-se para pagar as parcelas do preço com a justa expectativa de receber sua casa própria. Pode-se dizer, assim, que para efetivo enquadramento da questão, é necessário vê-la além do plano da relação individual de certo comprador com determinada incorporadora. Há uma segunda dimensão, que congrega a saúde financeira do patrimônio de afetação e a necessidade de proteger os demais adquirentes para que o empreendimento chegue a bom termo, dentro do prazo. E, em uma dimensão mais ampla, a banalização do compromisso contratual e incentivo aos distratos podem ameaçar não apenas o empreendimento em si, mas também a própria atividade econômica e social de produção de moradias a preços acessíveis, aumentado custos e risco para as empresas, dificultando financiamento e elevando juros bancários.  Como resultado, tem-se a indesejada elevação de preços dos imóveis, retratação na oferta de habitação e na geração de empregos. Como se vê, a questão é de suma importância e transcende a relação entre as partes contratantes. __________ 1 Súmula 1: O compromissário comprador de imóvel, mesmo inadimplente, pode pedir a rescisão do contrato e reaver as quantias pagas, admitida a compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário vendedor, assim como o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem.  2 Súmula 543: Na hipótese de resolução de contrato de promessa de venda e compra de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, no caso de culpa exclusiva do incorporador/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento. 3 Pesquisa FIPE/Abrainc.
Questão ainda tormentosa na jurisprudência é definir sobre o cabimento ou não do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) nas permutas de imóveis de valores distintos sem a torna do preço. A permuta imobiliária é o negócio jurídico por meio do qual uma parte dá imóvel de sua propriedade a outra pessoa em troca de outro imóvel, de propriedade dessa segunda pessoa. Trata-se da troca de bens imóveis que podem ter ou não o mesmo valor monetário. A permuta de imóveis pode ser feita com ou sem torna em dinheiro. A permuta com torna ocorre quando, além da transferência da titularidade do imóvel, uma das partes efetua pagamento em dinheiro como complementação do pagamento pela titularidade do imóvel que está recebendo. Neste artigo, buscaremos demonstrar que na ausência de torna e diante da natureza onerosa da permuta, é impraticável exigir ITCMD na operação, ainda que os imóveis permutados tenham valores diferentes. Segundo a Constituição Federal, é da competência dos estados e do Distrito Federal exigir o ITCMD: "Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;" A Constituição diz ainda ser da competência dos municípios a cobrança do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI): "Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (...) II - transmissão 'inter vivos', a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;" Definidas as hipóteses de incidência tributária acima descritas, é necessário verificar a definição legal da permuta e da doação. De acordo com o artigo 538 do Código Civil, entende-se por doação "o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra." Portanto, para que se esteja diante de doação, é preciso que haja ato de mera liberalidade, não oneroso. Em relação à permuta, embora não exista conceituação sobre ela no Código Civil, há nele disposições que ajudam a diferenciá-la da doação: "Art. 533. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e venda, com as seguintes modificações: I - salvo disposição em contrário, cada um dos contratantes pagará por metade as despesas com o instrumento da troca; II - é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge do alienante." Como dito, a permuta imobiliária pode ocorrer sob duas modalidades: com ou sem torna em dinheiro. A torna ocorre quando, além da troca da titularidade dos bens imóveis, há o pagamento de resíduo (diferença) do valor dos bens de uma parte a outra em dinheiro. O entendimento majoritário da doutrina é que, em caso de torna, seu valor não pode superar 50% do valor do imóvel que se recebe em permuta, sob pena de se descaracterizar a permuta - caso supere, teríamos venda e compra de imóvel com dação em pagamento. Para que se caracterize a permuta, é essencial haver ato oneroso. Os conceitos legais de permuta e doação, portanto, não se confundem nem se assemelham. Outra consequência do artigo 533 do Código Civil é que, nas permutas de imóveis, por representarem transferência onerosa, haverá a incidência do ITBI, como já estabelecido na jurisprudência. Sobre o eventual ganho de capital em permutas de imóveis sem torna, a Receita Federal publicou a Solução de Consulta Cosit 166/19 e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional lavrou o Parecer PGFN/CRJ/COJUD SEI 8.694/2021/ME esclarecendo que não haverá ganho de capital a ser tributado pelo imposto de renda na permuta sem torna. Detalhados os conceitos legais de ambos os institutos, passamos a examinar a possibilidade de se exigir o ITCMD nas permutas sem torna de imóveis de valores distintos. Na prática imobiliária e tributária, existem muitos questionamentos, seja por parte dos notários ou registradores ou mesmo das autoridades fazendárias, que buscam recolher o ITCMD na permuta sem torna de imóveis de valores distintos. Um exemplo dessas discussões é a resposta dada pela Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo à Consulta Tributária 21.030/19. Segundo a secretaria, "a permuta envolvendo imóveis de diferentes valores, realizada sem a devida compensação financeira, caracteriza uma doação, operação sujeita à tributação do ITCMD (...)". O mesmo entendimento teve o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo, para o qual a permuta de bens imóveis de valores distintos sem torna representaria "acréscimo patrimonial de forma não onerosa a caracterizar doação."1 Em nossa visão, atropelam-se e embaralham-se diversos conceitos jurídicos na decisão. Permuta e doação, como visto, não se confundem nem se assemelham. Enquanto a permuta é necessariamente onerosa, a doação é sempre a título gratuito. Não podem as autoridades, portanto, sejam os registradores, os notários ou mesmo as fazendárias, se valer de equiparação ou presunção para sustentar que, diante de permuta de imóveis de valores distintos em que não haja a torna em dinheiro da diferença, se estaria diante de doação disfarçada e, assim, exigir o ITCMD sobre o valor da diferença dos imóveis. As razões que demonstram o desacerto dessa forma de proceder das autoridades são variadas. Caso as autoridades estejam convencidas de que não se trata de permuta sem torna, mas sim de doação simulada, há no Código Civil e no Código de Processo Civil condições, procedimentos e ritos a serem observados para a desconsideração do negócio jurídico. Os artigos 166 a 170 do Código Civil regulamentam justamente os conceitos de atos nulos. Já os artigos 133 e seguintes do Código de Processo Civil estabelecem o rito a ser observado para a desconsideração dos negócios jurídicos: Código Civil: "Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando: I - celebrado por pessoa absolutamente incapaz; II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto; III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; IV - não revestir a forma prescrita em lei; V - for preterida alguma solenidade que a lei considere essencial para a sua validade; VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa; VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção. Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma. § 1º  Haverá simulação nos negócios jurídicos quando: I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem; II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira; III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados. § 2º Ressalvam-se os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado. Art. 168. As nulidades dos artigos antecedentes podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir. Parágrafo único. As nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda que a requerimento das partes. Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo. Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade." Código de Processo Civil: "Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. § 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei. § 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial. § 1º A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas. § 2º Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica. § 3º A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2º. § 4º O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica. Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias. Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória. Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno. Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente." Sem a observância do rito imposto pelo Código de Processo Civil, portanto, não podem as autoridades, ao seu arbítrio e de maneira subjetiva e discricionária, requalificar a permuta sem torna em doação, especialmente para viabilizar a exigência de tributo. Isso porque, além do necessário respeito ao rito comentado acima, há no Código Tributário Nacional norma expressa que veda o uso da analogia para fins de exigência tributária: "Art. 108. Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará sucessivamente, na ordem indicada: I - a analogia; II - os princípios gerais de direito tributário; III - os princípios gerais de direito público; IV - a equidade. § 1º O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei. § 2º O emprego da equidade não poderá resultar na dispensa do pagamento de tributo devido." Não se pode, portanto, aplicar entendimento por analogia, semelhança, equiparação ou presunção de institutos positivados no direito brasileiro para fins de exigência de tributos, como também veda o artigo 110 do Código Tributário Nacional: "Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias." É pertinente relembrar as razões do voto-condutor do ministro Gurgel de Farias no julgamento do RESP 1.937.821/SP - sobre o qual comentamos em outro artigo escrito em co-autoria. Na ocasião, assentou-se que "a base de cálculo do ITBI é o valor venal em condições normais de mercado e, como esse valor não é absoluto, mas relativo, pode sofrer oscilações diante das particularidades de cada imóvel, do momento em que realizada a transação e da motivação dos negociantes". O comentário do ministro Gurgel de Farias é fundamental, pois, afinal, a presunção reinante no sistema normativo brasileiro é a de boa-fé das partes, conforme disposto no artigo 113 do Código Civil: "Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 1º  A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; III - corresponder à boa-fé; IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. § 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei." Além disso, a bitributação de uma mesma grandeza econômica por entes distintos configuraria invasão de competência constitucional, o que não é permitido. Com isso queremos dizer que, se nas permutas, com ou sem torna, há visível obrigação de pagamento do ITBI sobre o valor efetivo da transação, não se pode cogitar da concomitante exigência do ITCMD nessa mesma transação. Outro ponto fundamental é que os valores dos imóveis em uma permuta não se restringem necessariamente àqueles determinados pelo mercado. Em não raras circunstâncias, inclusive de foro íntimo das partes, é possível que se permutem, sem torna, imóveis de valores distintos, em virtude de preferência da localização física do outro imóvel, do seu padrão, da finalidade de uso ou mesmo de repentino desinteresse ou desencanto pelo imóvel a ser permutado. Para os proprietários, o valor material desse imóvel pode não corresponder ao valor atribuído pelo mercado. O valor para o seu titular, em determinadas circunstâncias, passa a ser secundário, pois o desejo mais imediato é o de se desfazer daquele imóvel. Não necessariamente, portanto, o descasamento entre os valores do imóvel numa permuta sem torna deve ser tratado como uma doação disfarçada. É preciso haver provas contundentes das autoridades de que se está diante de ato simulado ou fraudulento para justificar a sua desqualificação ou requalificação. Justamente nesse contexto é que a juíza de direito das 1ª e 2ª varas de registros públicos da comarca de São Paulo afastou a cobrança do ITCMD em permuta sem torna de imóveis de valores distintos.2 Sobre o desbalanceamento entre os valores dos imóveis objeto de permuta sem torna, a magistrada pontuou que: "De fato, para os contratantes, o valor intrínseco dos bens pode ser bastante variável, ganhando relevante valorização por questões personalíssimas de fundo emocional e afetivo tornando-se desinteressantes e até desprezíveis por alterações na condição de vida de cada um, como no caso da requerente que informa ter se mudado para Portugal, o que a impede de usufruir o imóvel rural, preferindo imóveis urbanos com a expectativa de retorno financeiro que não alcançaria com o sítio." Estamos assim convencidos que a permuta sem torna de imóveis de valores distintos apenas pode justificar a exigência do ITCMD se houver evidências concretas de simulação ou fraude do ato. Além disso, deve-se observar o rito previsto no Código de Processo Civil para a desconsideração dos negócios jurídicos. Julgadores e autoridades precisam ter sempre em mente que, por presunção, os negócios jurídicos são idôneos e foram realizados de boa-fé entre as partes. Sua desnaturação ou requalificação exigem provas em sentido contrário e observância do rito dos artigos 133 e seguintes do Código de Processo Civil, não bastando presunções abstratas. __________ 1 Proc. 1001733.55.2015.8.26.0615, DJe de 23 de novembro de 2021. 2 Proc. 1127941.72.2021.8.26.0100, DJe de 17/01/2022.
Introdução O direito de resolução do contrato por inadimplemento é modalidade de extinção que deve ser reservada à situação de descumprimento do dever de prestar, imputável ao devedor, que afete a função concreta do negócio celebrado1.  Nesse sentido, se houve inadimplemento definitivo - modalidade de descumprimento que colmata o interesse útil do credor na prestação -, há espaço para o remédio da resolução por inadimplemento. Sabe-se que o direito de resolução pode ser legal2 ou convencional3.  A regra geral de resolução por inadimplemento definitivo pode ainda ser facilitada em regimes jurídicos específicos, em que já se identifica hipótese de descumprimento capaz de dar apoio ao direito de resolução. Essa última modalidade é exemplificada na Lei 4.591/64, que regula a incorporação imobiliária.  O artigo 43-A do referido diploma, incorporado pela Lei 13.786/18, postula que o atraso, pelo incorporador, de até cento e oitenta dias corridos da data estipulada para a conclusão do empreendimento "não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente"4. O artigo supracitado cuida da hipótese de inadimplemento do incorporador, ante ao seu fracasso no cumprimento da obrigação de entregar o empreendimento ao adquirente no tempo e modo avençados.  Pela literalidade do texto normativo, o referido descumprimento não dará espaço à resolução do contrato caso o atraso na entrega não extrapole o prazo de cento e oitenta dias. Ante à relevância da hipótese extintiva para a prática do direito imobiliário brasileiro, tenta-se contribuir, ainda que brevemente, com a construção do modelo hermenêutico do artigo 43-A da Lei 4.591/64.  A exposição divide-se na busca (i) dos requisitos de aplicação da modalidade extintiva; (ii) do modo de operação do direito de resolução pelo adquirente; e (iii) dos efeitos da resolução. Requisito de aplicação Em manifestação clara do princípio do favor negotii, o nosso sistema dá preferência a remédios que não promovem o rompimento do vínculo contratual. A própria regra do direito legal de resolução por inadimplemento afirma que a busca pela resolução acontecerá se a parte lesada pelo descumprimento "não preferir exigir o cumprimento"5. Esta característica extrema do direito de resolução dá a pauta principal para o regramento em torno dos seus pressupostos de aplicação: o seu âmbito de atuação encontra-se inexoravelmente associado ao descumprimento essencial de obrigações contratuais. No que se refere à modalidade extintiva prevista no artigo 43-A da Lei 4.591/64, há previsão específica do legislador no sentido de qualificar o inadimplemento do incorporador que atrasa a entrega do empreendimento.  O dispositivo normativo esvazia as consequências do atraso imputável ao incorporador inferior a cento e oitenta dias.  O adquirente, ainda que lesado por este descompasso com o avençado, não poderá requisitar indenização por perdas e danos ou manejar a resolução do contrato. Na eventualidade do atraso do incorporador superar cento e oitenta dias, haverá o surgimento do direito potestativo da resolução em favor do adquirente, bem como a irradiação de efeitos restitutórios e indenizatórios próprios do inadimplemento definitivo. A especificidade da norma facilita a superação do requisito geral de aplicação da resolução por inadimplemento: a classificação do descumprimento como definitivo.  Pelo artigo 43-A, que um atraso superior a cento e oitenta dias é, indiscutivelmente, apto a prejudicar peremptoriamente o interesse útil do credor na prestação, autorizando o manejo da resolução.  Da mesma forma, inadimplemento inferior a este termo carece de definitividade apta à extinção prematura da avença. Vale prestar nota ao intérprete de que o contrato de compra e venda disciplinado pela Lei 4.591/64 admite outras modalidades de descumprimento por parte do incorporador.  O descumprimento de quaisquer outros deveres de prestar por sua parte, distintos da hipótese específica de atraso na entrega do empreendimento, devem seguir a regra prevista no artigo 475 do Código Civil, atinente ao direito legal de resolução por inadimplemento definitivo - não irradiando sobre elas a tolerância de cento e oitenta dias do artigo 43-A.  Nessas circunstâncias, o intérprete precisará averiguar se o referido descumprimento prejudica ou não o interesse útil do credor.  Se há, ou não, rompimento grave nos interesses que gravitam em torno da prestação. Modo de operação É de se observar uma tendência, estimulada pela experiência de países de common law6e vista nas tentativas de unificação e harmonização do direito privado7, de consolidar a possibilidade de se exercer o direito de resolução pela via extrajudicial8.  No direito brasileiro, a regra geral do exercício do direito legal de resolução por inadimplemento, estabelecida no artigo 474 do Código Civil, é comumente interpretada no sentido de se exigir que o exercício do direito potestativo resolutório se dê pela via judicial, extraindo-se efeitos da resolução apenas na circunstância de uma sentença que julgue procedente o pedido do autor9.  É importante registrar que esta posição, atualmente, é questionada em publicação recente e especializada sobre o tema10. Alguns regimes jurídicos especiais afastaram expressamente essa exigência de manejo judicial da resolução.  Exemplo importante encontra-se no regime especial da compra e venda internacional de mercadorias, estabelecido pela Convenção de Viena sobre o tema (CISG).  O artigo 49, (1) "a" da CISG foge da regra geral da interpelação judicial do Código Civil ao prever que, nos contratos sob seu regime jurídico, o comprador poderá declarar o contrato resolvido nas hipóteses de descumprimento essencial11.  A mesma regra é fornecida ao vendedor no artigo 64, (1) "a" da Convenção12.  Ambas as regras são unificadas pela literalidade do artigo 26 da CISG13, que classifica a "declaração" de resolução como manifestação receptícia de vontade14. A Lei 4.591/64, diferentemente da CISG, não atribui expressamente uma exceção à regra de operatividade do artigo 474 do Código Civil, recaindo sobre a hipótese específica o mesmo debate que existe sobre a regra geral.  A despeito da existência recente de posicionamento no sentido de se permitir exercício extrajudicial do direito potestativo, a posição predominante na literatura brasileira segue sustentando a necessidade de se manejar judicialmente o direito legal de resolução. A maneira mais conveniente para assegurar a possibilidade de exercício extrajudicial dá-se pela elaboração de cláusula resolutiva expressa, que muito bem pode reproduzir a hipótese de inadimplemento definitivo prevista na Lei 4.591/64.  Dessa forma, prescinde-se de sentença para que a resolução se configure, embora não se exclua a opção de obter-se sentença declaratória - e não constitutiva negativa - de resolução15.  O exercício dependerá de uma manifestação receptícia de vontade do adquirente, direcionada ao incorporador. Efeitos O termo inicial da irradiação dos efeitos da resolução segue de perto a modalidade operativa. Na hipótese em que a resolução caminha pelo exercício judicial, os seus efeitos são produzidos apenas com o trânsito em julgado da sentença constitutiva negativa de resolução.  Caso o exercício seja promovido por manifestação receptícia de vontade, a irradiação de efeitos se dá a partir da chegada da mensagem ao destinatário - ou de quando ele já tinha condições de conhecê-la. De maneira sintética, pode-se reconhecer três efeitos possíveis à resolução: liberatórios, restitutórios e indenizatórios. O efeito liberatório destina-se a dissolver a relação jurídica contratual entre as partes, libertando-as do vínculo que antes as unia.  Assim como a perfeita entrega do empreendimento pelo incorporador e o pagamento integral do preço pelo adquirente dá fim ao vínculo contratual, a resolução também libera as partes contratantes de prosseguir com cartilha contratual anteriormente avençada. O efeito restitutório destina-se a reposicionar as partes nas circunstâncias anteriores ao descumprimento.  No caso da Lei 4.591/64, o artigo 43-A, §1º destaca que o incorporador deve restituir todos os valores que tiver até então recebido do adquirente, corrigidos na forma da própria lei. O efeito indenizatório, que não se confunde com o restitutório, destina-se a reparar danos sofridos pela parte inocente ante a ocorrência do inadimplemento.  Sua quantificação deve seguir o prisma da extensão integral do dano, conforme o artigo 944 do Código Civil.  O artigo 43-A, §1º da Lei 4.591/64, após fazer referência à eficácia restitutória da resolução, afirma a possibilidade de trazê-la junto com uma "multa estabelecida". O texto normativo parte do pressuposto de que o contrato entre incorporador e adquirente possui cláusula penal específica para a hipótese de atraso do incorporador, responsável por predeterminar o valor pecuniário da pretensão de perdas e danos em favor do adquirente. Admitindo-se que o ambiente de contratação não impõe qualquer limitação à liberdade de contratar, é perfeitamente cabível que adquirente e incorporador avencem os limites dos efeitos indenizatórios do descumprimento. Se, entretanto, o contrato é silente sobre o tema - ou se o dispositivo que aborda o assunto no contrato carece de validade - é de se reconhecer a possibilidade do adquirente formular pedido de satisfação de sua pretensão de perdas e danos.  Nessa hipótese, deverá o adquirente provar o prejuízo que justifique a indenização, que por sua vez será quantificada nos limites do artigo 944 do Código Civil - e a latere da pretensão restitutória. Ainda quanto aos efeitos, a legislação impõe um importante fator de eficácia para que o adquirente possa resgatar seus valores restitutórios e indenizatórios.  Determina o artigo 43-A, §1º da lei 4.591/64 que, após a ocorrência da resolução - momento em que passa a irradiar o efeito liberatório -, o incorporador terá sessenta dias corridos para organizar-se financeiramente e satisfazer os efeitos restitutórios e indenizatórios.  Apenas após a superação deste termo essas pretensões são exigíveis pelo adquirente, que poderá enfim cobrá-las judicial ou extrajudicialmente. __________ 1 SCHREIBER, Anderson. A tríplice transformação do adimplemento, adimplemento substancial, inadimplemento antecipado e outras figuras. In: Revista Trimestral de Direito Civil, nº32, 2007, p. 25 2 O espaço do direito legal de resolução é ocupado pelos artigos 474 e 475 do Código Civil. 3 Trata-se do espaço reservado à cláusula resolutiva expressa, disciplinada no artigo 474 do Código Civil. Sobre o tema, faz-se referência a um estudo anterior: BIAZI, João Pedro de Oliveira de. A cláusula resolutiva "de estilo". Revista Brasileira de Direito Contratual, Porto Alegre, v. 2, n. 7, abr./jun. 2021. 4 Art. 43-A. A entrega do imóvel em até 180 (cento e oitenta) dias corridos da data estipulada contratualmente como data prevista para conclusão do empreendimento, desde que expressamente pactuado, de forma clara e destacada, não dará causa à resolução do contrato por parte do adquirente nem ensejará o pagamento de qualquer penalidade pelo incorporador. 5 Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos. 6 BEALE, Hugh. Remedies for Breach of Contract, London, Sweet&Maxwell, 1980, pp. 240/242. 7 A título exemplificativo, cita-se o artigo 7.3.2 dos Princípios Unidrot: "Article 7.3.2. Notice of Termination. (1) The right of a party to terminate the contract is exercised by notice to the other party." No mesmo sentido, aponta-se o artigo 3:507 do Draft Common Frame of Reference: "III.-3:507: Notice of termination (1) A right to terminate under this Section is exercised by notice to the debtor." (Disponível em: VON BAR, Christian et alii. Principles, definitions and model rules of European private law. Draft Common Frame of Reference (DCFR). Full edition. v. III. Munich, Sellier, 2009, p. 401). 8 É a linha adotada pelo Código Civil Português, em seu artigo 436º (Artigo 436º. Como e quando se efectiva a resolução. 1. A resolução do contrato pode fazer-se mediante declaração à outra parte. 2. Não havendo prazo convencionado para a resolução do contrato, pode a outra parte fixar ao titular do direito de resolução um prazo razoável para que o exerça, sob pena de caducidade). A doutrina portuguesa também reconhece que o direito lusitano segue a regra geral da extrajudicialidade: FARRAJOTA, Joana. A resolução do contrato sem fundamento, Coimbra, Almedina, 2020 pp. 32/33 9 A título exemplificativo: ASSIS, Araken de. Comentários ao código civil brasileiro, v. V, Rio de Janeiro, Forense, 2007, p. 582. 10 Registra-se, nesse sentido, as considerações sobre o tema no trabalho de Giovanni Ettore Nanni (NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual: requisitos e efeitos. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2021, pp. 506/518). 11 SCHLECHTRIEM, Peter; SCHWENZER, Ingeborg. Commentary on the UN Convention on the international sale of goods (CISG). Third Edition. Oxford, Oxford University Press, 2010, p.757 12 Article 64. (1) The seller may declare the contract avoided: (a) if the failure by the buyer to perform any of his obligations under the contract or this Convention amounts to a fundamental breach of contract; [...] Tradução: Artigo 64. (1) O vendedor poderá declarar resolvido o contrato se: (a) o descumprimento pelo comprador de qualquer das obrigações que lhe incumbem segundo o contrato ou a presente Convenção constituir violação essencial do contrato; [...] 13 Article 26. A declaration of avoidance of the contract is effective only if made by notice to the other party. Tradução: Artigo 26. A declaração de resolução do contrato tornar-se-á eficaz somente quando notificada por uma parte à outra. 14 FARRAJOTA, Joana. A resolução do contrato sem fundamento, Coimbra, Almedina, 2020 p. 42 15 AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução), Rio de Janeiro, Aide, 1991, p. 57.
Introdução O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos relata, em sua obra "Sociología jurídica crítica: para un nuevo sentido común en el derecho"1, os resultados de uma pesquisa de campo que realizou nos anos 1970 em uma comunidade carente (popularmente também chamada de favela2) localizada na cidade do Rio de Janeiro, à qual ele deu o nome fictício de "Pasárgada"3. Em suma, trata-se de uma ilustração criada pelo sociólogo para demonstrar a existência de direito para além do direito do Estado. Na ilustração, Boaventura Santos aponta a existência de duas ordens jurídicas: o direito do Estado e o "direito de Pasárgada". Enquanto o primeiro dispensa apresentações, o segundo se refere a uma série de estratégias idealizadas pelos indivíduos que habitam naquela localidade para preencher o vácuo deixado pela ausência do direito do Estado e para assegurar um mínimo de ordem social nas relações dentro daquela comunidade.4 Em "Pasárgada", os problemas envolvendo os habitantes e o tema da propriedade eram frequentes. Mas, como "Pasárgada" é um assentamento ilegal formado por uma sucessão de atos irregulares, os títulos de propriedade que poderiam ser apresentados pelos moradores da localidade eram inválidos aos olhos do direito do Estado. Essa invalidade dos títulos era um grande obstáculo para que as disputas pudessem ser levadas ao Poder Judiciário, que consideraria as posses como ilegais e sem qualquer validade. Considerando a ilustração de "Pasárgada", que se baseia em uma vivência da década de 1970, temos que a questão da regularização fundiária urbana é um problema antigo na sociedade brasileira. No Brasil, a regularização fundiária é questão de grande relevância tanto no âmbito nacional quanto no local. Desde a lei Federal 10.257/2001, conhecida como "Estatuto da Cidade", a regularização fundiária dos assentamentos urbanos ganhou maior repercussão. Hoje, a regularização fundiária é entendida como um caminho para se garantir o acesso à posse legal da moradia digna.5 Ocorre que, da mesma forma que o fenômeno da verticalização pode ser verificado nos centros urbanos, ele também está presente nos assentamentos urbanos ilegais. Importante destacar que as razões que justificam a existência de um mesmo fenômeno nessas duas localidades são diversas. No entanto, fato é que, mesmo com a regularização fundiária sendo um tópico de alta relevância na pauta nacional, nem todas as construções existentes nas favelas foram abraçadas pela legislação existente até então. Esse foi o caso dos "puxadinhos", "construções feitas em acréscimos, superiores ou inferiores, a imóveis já edificados, com a finalidade de ampliar o uso do solo, viabilizando o exercício do direito de moradia".6 Nesse sentido, foi feita uma tentativa para se confrontar a questão por meio da MP n° 759/16, convertida na lei 13.465/2017. A referida Medida Provisória, que trata, dentre outras coisas, da regularização fundiária urbana e rural no Brasil, acabou por adicionar um novo inciso ao art. 1.225 do CC, o inciso XIII, que possui a seguinte redação: "a laje". Dessa forma, foi adicionado ao rol dos direitos reais do dispositivo o direito de laje. Além disso, foi também adicionado um novo título no livro III do CC/02 especialmente para tratar do direito de laje (art. 1.510-A e ss.). Nas palavras de George Marmelstein, "o direito de laje nasce como um fenômeno social espontâneo no seio de várias favelas brasileiras".7 Portanto, não se trata de mais um caso em que o Direito age de forma a guiar a sociedade de forma transformadora. Na verdade, o que se teve com a MP 759/16,8 convertida na lei 13.456/2017,9 foi o Direito tendo de se adequar a uma realidade construída pela sociedade. Nessa mesma linha, Ricardo Pereira Lira ensinava que o direito de laje procura transpor para o ordenamento jurídico formal a realidade que caracteriza as favelas verticalizadas de grandes centros urbanos. Em favelas verticalizadas, afigura-se extremamente frequente o uso da laje por terceiro de modo independente do uso dado pelo possuidor do imóvel subjacente, transferindo-se de pessoa a pessoa, com base em assentamentos mantidos por associações de moradores.10 Portanto, o presente ensaio busca compreender o direito de laje. Assim, a questão que se propõe é se o direito de laje possui a capacidade de ser aplicado na regularização fundiária. Para isso, o artigo será dividido em duas partes. Primeiro, será feita uma breve apresentação dos aspectos históricos relevantes para o nascimento do direito de laje em conjunto com a evolução desse direito até sua inclusão no CC/2002 pela MP 759/16, convertida na lei 13.456/2017. Em um segundo momento, o direito de laje será trabalhado de forma mais aprofundada, de modo a abordar a noção de direito de laje, seus requisitos legais, sua constituição e aquisição, a regulamentação da laje e, por fim, a extinção do direito de laje. Clique aqui para ler a íntegra da coluna. __________ 1 Santos, Boaventurade Sousa. Sociología jurídica crítica para un nuevo sentido común en el derecho. Bogotá: ILSA, 2009. 2 Sobre o termo "favela", Pedro Pontes de Azevedo ensina que o termo, na origem, nomeia arbusto ou árvore (Jatropha phyllacantha) da família das euforbiáceas encontrada no Sudeste e Nordeste Brasileiros, especialmente nos morros onde inicialmente se instalaram as primeiras aglomerações de moradias irregulares, dando-lhes o nome com o passar do tempo. AZEVEDO, Pedro Pontes de. Usucapião da propriedade possível em terras públicas: o direito de superfície e à moradia em áreas de exclusão social. Curitiba: Juruá, 2016. p. 87. 3 "La denominé Pasárgada, siguiendo el título del poema escrito por el poeta brasileño Manuel Bandeira." Santos, Boaventurade Sousa. Sociología jurídica crítica para un nuevo sentido común en el derecho. Bogotá: ILSA, 2009, pág. 117. 4 "Debido a la ausencia del sistema jurídico estatal, y especialmente al carácter ilegal de las favelas como asentamientos urbanos, las clases populares que habitan en ellas idearon estrategias de adaptación con el objeto de asegurar un mínimo de orden social en las relaciones de comunidad." Santos, Boaventurade Sousa. Sociología jurídica crítica para un nuevo sentido común en el derecho. Bogotá: ILSA, 2009, pág. 117. 5 D'OTTAVIANO, M. C. L.; SILVA, S. L. Q. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO BRASIL: VELHAS E NOVAS QUESTÕES. Planejamento e Políticas Públicas, [S. l.], n. 34, 2022. Disponível aqui. Acesso em: 19 ago. 2022. 6 FARIAS, Cristiano Chaves de; EL DEBS, Martha; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: Do puxadinho à digna moradia. - 4ª ed. rev. atual. e ampl. - Salvador: Juspodivm, 2020, págs. 29 e 30. 7 MARMELSTEIN, George. Do direito de Pasárgada ao direito do asfalto. Prefácio. In: FARIAS, Cristiano Chaves de; EL DEBS, Martha; DIAS, Wagner Inácio. Direito de laje: Do puxadinho à digna moradia. - 4ª ed. rev. atual. e ampl. - Salvador: Juspodivm, 2020, pág. 17. 8 Disponível aqui. Acesso em: 19/08/2022. 9 Disponível aqui. Acesso em: 19/08/2022. 10 LIRA, Ricardo Pereira. A aplicação do direito e a lei injusta. Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, n. 5, 1997, pág. 85-97. In: SCHREIBER, Anderson. Manual de direito civil contemporâneo. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, págs. 787 e 788.
A lei 14.382/2022 cria o Sistema Eletrônico de Registros Públicos - SERP, altera a Lei de Registros Públicos, com o propósito de adequar os serviços de registros públicos a novas tecnologias, e aperfeiçoa o sistema de proteção dos adquirentes de imóveis em construção, previsto pela Lei 4.591/64, consolidando requisitos de segurança patrimonial da aquisição, simplificando procedimentos registrais e reduzindo custos. Especificamente em relação à Lei 4.591/1964, a nova lei introduziu alterações segundo as quais o condomínio especial, que o Código Civil denomina edilício, é instituído pelo registro da incorporação, antes de iniciadas as vendas (art. 32, "i"1e §§ 1º-A2 e 153), e, em consequência, o "habite-se" da edificação é objeto apenas de averbação, afastada a exigência de novo registro do condomínio (art. 444). A alteração legislativa é justificada pela necessidade de compatibilizar a redação desses dispositivos (i) à tipificação da incorporação imobiliária como negócio jurídico de venda de frações ideais de terreno sob regime condominial conjugada com a construção de conjunto imobiliário, estabelecida pelo art. 29 da lei 4.591/19645, (ii) ao princípio da especialidade do sistema registral, segundo o qual a existência de direito de propriedade de bens imóveis é determinada pelo assentamento, no Registro de Imóveis, dos caracteres que identificam as frações de terreno como objeto de propriedade condominial, dotadas de "individualidade autônoma"6, e, em consequência, (iii) aos requisitos da livre disposição da propriedade e dos correspondentes direitos reais, de forma a viabilizar sua transmissão aos adquirentes, mediante registro de contrato no qual a descrição do imóvel (fração ideal e acessões) seja rigorosamente coincidente com os caracteres constantes do assentamento do Registro de Imóveis que identifica as frações do terreno como objeto de direito de propriedade condominial, sob pena de serem considerados "irregulares" (Lei 6.015/1973, art. 225). A lei 14.382/22 tem vigência imediata e já vem sendo colocada em prática segundo normas editadas pelas Corregedorias estaduais, a exemplo do novo Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, instituído pelo Provimento CGJ nº 87, de 16/12/2022, cujo art. 1.351 dispõe taxativamente que "o registro da incorporação institui o condomínio edilício"7. No âmbito da administração pública a Instrução Normativa nº 2.119/20228 da Receita Federal do Brasil (Anexo VIII) reconhece o registro da Incorporação Imobiliária como modo de instituição do condomínio edilício e prevê sua inscrição no CNPJ, ainda que em construção. Contudo, ainda  há quem se insurja contra a unicidade do registro, entendendo que a lei teria criado "um regime de condomínio especial que vigora temporariamente" e que por isso persistiria a exigência de novo registro por ocasião da conclusão da construção, partindo da equivocada premissa de que "até o registro da instituição do condomínio existe um só imóvel, formado pelo terreno e acessões que lhe vão sendo agregadas à medida que construído o prédio, ou prédios", daí se concluindo que somente edificações dotadas de habitabilidade  poderiam ser objeto de condomínio especial/edilício9. Ao sugerir a efetivação de dois registros de condomínio, um "temporário" e outro "definitivo", essa interpretação se contrapõe aos propósitos de simplificação e redução de custos visados pela lei, até porque a Lei 14.382/2022 não criou nenhuma nova modalidade de condomínio, apenas se refere à qualificação da propriedade condominial já anteriormente caracterizada no art. 29 da Lei 4.591/1964. Além disso, a afirmação de que no curso da construção "existe um só imóvel" é incompatível com o sistema da Lei 4.591/1964, afrontando especificamente seus arts. 29 e 32, "i", § 1º-A, que dispõem sobre a divisão do terreno e sobre a identificação das frações ideais daí resultantes como objeto de propriedade condominial especial, a que se vincularão as unidades imobiliárias projetadas.  Há também quem entenda que a lei pretendeu criar mais uma espécie de situação proprietária condominial ("regime condominial especial", "condomínio por frações autônomas"), sugerindo a criação de mais uma denominação - "condomínio protoedilício" -, fundamentando-se em que "a existência física da edificação é um pressuposto para o condomínio edilício"10.   A proposição parece sustentar-se em que a natureza jurídica do direito de propriedade de bens imóveis sob regime de condomínio especial/edilício (isto é, regime jurídico caracterizado pela combinação da propriedade exclusiva e com a propriedade comum sobre uma mesma coisa) seria determinada pela configuração física do bem imóvel.  É verdade que o tema envolve uma certa complexidade, mas essa interpretação despreza os arts. 8º11 e 9º12 da Lei 4.591/1964, que deixam absolutamente claro que o condomínio especial pode ter por objeto a copropriedade de edificação com "habite-se" ou de "terreno onde não houver edificação", ou, ainda, de lotes de terreno sem construção, como prevê o art. 1.358-A do Código Civil, pois, como bem ilustra André Abelha, "o condomínio não precisa de tijolos para nascer, bastando o registro do ato de instituição no registro imobiliário."13 E despreza também o mais importante efeito do registro da incorporação como mecanismo de proteção dos direitos patrimoniais dos adquirentes, que viabiliza a atribuição do direito real de aquisição mediante registro dos contratos de comercialização e, até mesmo, a averbação dos instrumentos preliminares de ajuste, que confere direito real aquisitivo aos adquirentes nos termos do § 4º do art. 35. Ignora, ainda, que é a existência de condomínio instituído mediante assentamento no Registro de Imóveis que confere efetividade à limitação da responsabilidade financeira dos adquirentes em relação à garantia de financiamento da construção, que só pode ser contida na proporção das frações ideais, nos termos do art. 1.488 do Código Civil14, se o condomínio edilício tiver sido instituído pelo registro da incorporação, antes de iniciadas as vendas. Desconsidera, ainda, que os efeitos da instituição de condomínio se projetam sobre todo o campo dos direitos reais, assegurando efetividade ao exercício das prerrogativas dos adquirentes, entre elas a de destituir o incorporador em caso de paralisação da obra ou atraso, sem justa causa, que só é juridicamente viável se o condomínio estiver constituído, porque é o condomínio que tem legitimidade para promover o procedimento extrajudicial de destituição, que, aliás, também foi instituído pela mesma Lei 14.382/2022. Ora, desde a promulgação da Lei 4.591, em 1964, nunca houve qualquer objeção a que o direito de propriedade incida sobre terra nua para fins de incorporação ou terreno com edificação averbada, pois, em qualquer desses casos, a propriedade pode ser atribuída sob regime de condomínio geral, pro indiviso, ou de condomínio especial, por frações autônomas.15 Recorde-se, a propósito, que a caracterização do condomínio especial e da incorporação imobiliária foi entronizada no direito positivo brasileiro pela Lei 4.591/1964, que os separou em dois Títulos. No Título I, a lei dispõe sobre o condomínio especial, caracterizado pela conjunção de partes de propriedade exclusiva e partes de propriedade comum de edificações coletivas (arts. 1º ao 27), e no Título II a lei caracteriza a incorporação imobiliária como negócio jurídico de venda de frações ideais de terreno e acessões caracterizadas como objeto de condomínio especial (arts. 28 ao 70). O art. 7º dispõe sobre a instituição de condomínio por ato entre vivos ou por testamento, tendo por objeto edificações com habite-se, enquanto o art. 8º dispõe sobre a instituição de condomínio "em terreno onde não houver edificação". Anote-se, por relevante, que apesar de o art. 7º (condomínio em edificações) foi sucedido pelos arts. 1.331 e seguintes do Código Civil, mas o art. 8º permanece em vigor por não ter sido derrogado e por não haver lei posterior que tenha tratado da matéria. A despeito da divisão da Lei 4.591/1964 em dois segmentos, há neles disposições comuns à disciplina do condomínio e da incorporação imobiliária. É o caso do art. 8º, que, ao exigir a instituição de condomínio "em terreno onde não houver edificação" para fins de incorporação imobiliária, opera necessariamente em articulação com a regra do art. 29 da mesma Lei 4.591/1964, que caracteriza essa atividade como negócio jurídico de venda de frações de terreno "sob regime condominial", e também em articulação com o art. 6º da Lei 4.864/1965, compondo um conjunto normativo que disciplina a instituição de condomínio especial/edilício sobre terreno destinado à realização de incorporação imobiliária. Assim, em matéria de instituição de condomínio especial, coexistem a regra do art. 1.332 do Código Civil, cujo objeto é o condomínio de edificação com habite-se, instituído pelo registro, no Registro de Imóveis, do respectivo instrumento público ou particular, inter vivos ou causa mortis, e, ainda, a regra da lei 4.591/1964 (arts. 8º e 32, "i", § 1º-A), cujo objeto é o condomínio de frações ideais de terreno destinado à realização de incorporação imobiliária, que, instituído pelo registro do respectivo memorial, afasta a exigibilidade de novo registro de instituição. Não bastasse a profusão e o emaranhado de disposições legais que tratam do tema, em razão da qual a leitura apressada de um ou outro dispositivo, isoladamente, pode induzir o intérprete conclusões irrefletidas, a falta de uniformidade terminológica sobre o tema também pode comprometer a compreensão do instituto. A doutrina tem chamado a atenção para a diversidade de denominações,16 tais como condomínio em edificação (lei 4.591/1964, art. 7º e CC, arts. 1.331 e ss), condomínio edilício (CC, art. 1.331), regime condominial especial (lei 4.591/1964, art. 32, "i", § 1º-A), condomínio de terreno "onde não houver edificação", destinado a uma incorporação ou a várias incorporações (lei 4.591/1964, arts. 8º e 32 e lei 4.864/1965, art. 6º), condomínio de lotes de terreno (CC, art. 1.358-A), entre outras. Sabendo-se, por elementar, que a natureza jurídica não é determinada pela configuração física do imóvel, mas, sim, pelos elementos de caracterização estabelecidos em lei, basta considerar o conteúdo normativo do art. 32, "i", § 1º-A, da Lei 4.591/1964, e do art. 1.332 do Código Civil para se constatar que condomínio especial e condomínio edilício são expressões idênticas, designam a mesma espécie de propriedade. Portanto, a diversidade terminológica não importa em diversidade da natureza jurídica do condomínio especial/edilício, observando Orlando Gomes que "qualquer dessas denominações pode ser aceita"17, dada a rigorosa identidade dos elementos de caracterização estabelecidos pela lei 4.591/1964 (art. 32, alínea "i") e pelo Código Civil18, a saber, (i) determinação das frações ideais sobre o terreno e partes comuns, (ii) identificação dos apartamentos ou "unidades isoladas entre si", existentes ou a construir e (iii) destinação do imóvel.  Bem a propósito, Caio Mario da Silva Pereira, autor do anteprojeto que deu origem à Lei 4.591/1964, em diversas passagens de sua clássica obra Condomínio e Incorporações, utiliza a expressão "condomínio especial" como sinônimo de propriedade horizontal, ou seja, condomínio edilício19. É como também entende Francisco Eduardo Loureiro: "Após a vigência da alteração legislativa, se discutiu se o condomínio especial a que alude a L. 4.591/64 é o condomínio edilício dos arts. 1.331 e seguintes do Código Civil. Não resta dúvida alguma que se trata de instituto único, que somente recebeu nomes diversos nas duas leis"20. Assim também esclarecem os Enunciados de Interpretação nº 8921 da I Jornada de Direito Civil e nº 10022 da I Jornada de Direito Processual Civil, segundo os quais todas essas diferentes denominações designam o mesmo condomínio especial, independente da configuração física do imóvel e das diferentes denominações que a lei lhes atribua, seja condomínio edilício ou regime condominial especial. Retomando a apreciação das alterações introduzidas pela Lei 14.382/2022, importa ter presente que, ao consolidar em caráter definitivo as normas que definem o registro da incorporação como modo de instituição do condomínio especial/edilício mediante ato único, essa lei não chega a inovar, pois se limita a compatibilizar a redação dos arts. 32 e 44 da Lei 4.591/1964 ao conteúdo normativo do seu art. 29. É o caso da adequação da redação do art. 32, caput. Partindo da caracterização legal da atividade e do contrato de incorporação imobiliária como negócio jurídico de "venda de frações ideais de terreno (...), sob regime condominial" (...) mediante "vinculação entre a alienação das frações do terreno e o negócio de construção" (lei 4.591/1964, art. 29 e parágrafo único), a Lei 14.382/2022 dá nova redação ao art. 32 mediante substituição da locução genérica "negociar sobre unidades autônomas" por "alienar ou onerar as frações ideais de terrenos" e respectivas acessões. Sabendo-se, assim, que a incorporação imobiliária é negócio jurídico de alienação de frações ideais de terreno vinculadas a unidades autônomas projetadas, resulta claro que o exercício dessa atividade e a celebração desse contrato têm como requisito essencial a divisão do terreno e a sujeição das frações ideais daí resultantes ao regime da propriedade condominial, tal como configurado no art. 29.  É o registro da incorporação que confere existência legal às frações de terreno e respectivas acessões sob regime condominial especial e viabiliza sua alienação válida e eficaz, à luz do princípio da especialidade do sistema registral, segundo o qual, as frações resultantes da divisão do terreno devem ser identificadas como objeto de direito de propriedade em assentamento no Registro de Imóveis, com "sua representação escrita como individualidade autônoma, com o seu modo de ser físico, que o torna inconfundível e, portanto, heterogêneo em relação a qualquer outro", como ensina Afrânio de Carvalho.23 O "regime condominial" a que o art. 29 da Lei 4.591/64 se refere não é o condomínio geral definido pelos arts. 1.314 e ss do Código Civil, que sujeitaria os adquirentes e o incorporador à "concorrência de direitos iguais na mesma coisa"24, sob regime da indivisão do objeto e divisão dos sujeitos. Trata-se, diferentemente, de um condomínio especial por frações ideais de terreno dotadas de autonomia e identificadas pela destinação do terreno e pela sua vinculação às unidades imobiliárias projetadas, descritas no memorial de incorporação25, cujo registro constitui o "ato formal (...) que qualifica o terreno (como um todo) e as suas respectivas frações, que passam a estar vinculadas às futuras unidades autônomas e, de modo mais abrangente, ao 'negócio da construção' e ao próprio negócio incorporativo."26 Consideradas as distintas conformações, funcionalidade e dinâmica do imóvel objeto do condomínio, a lei 4.591/1964 (arts. 34 e ss) e o Código Civil (arts. 1.333 e ss) instituem diferentes regimes de gestão do condomínio para a fase da construção e para a fase da fruição do conjunto imobiliário, atribuindo a administração do condomínio no curso das obras a uma comissão de representantes composta por três adquirentes, nomeada no contrato de construção, se for o caso, ou eleitos em assembleia geral dos condôminos convocada pelo incorporador até seis meses após o registro da incorporação. Em relação a esse período merecem atenção certas peculiaridades, situações ou procedimentos operacionais típicos da fase da construção, que a lei identifica mediante emprego da expressão "condomínio da construção", e disso são exemplos (i) o art. 31-F, § 1º, e o art. 43, § 3º,27 que se referem à deliberação de assembleia geral para constituição do condomínio especial/edilício, nos casos em que o incorporador não o tiver constituído por ocasião do registro da incorporação e vier a falir ou a ser destituído, e (ii) o art. 213 da lei 6.015/1973,28 cujo § 10 distingue a representação do condomínio em procedimento de retificação de registro, dispondo no inciso I que o condomínio geral será representado por qualquer condômino e no inciso II que condomínio especial será representado pelo síndico a partir do habite-se e pela comissão de representantes quando ainda em fase de construção, situação na qual o identifica como "condomínio por frações autônomas". Nesse período, e até que seja concluída a edificação, cabe à comissão de representantes a gestão do condomínio, inclusive em juízo, em todos os assuntos de interesse dessa coletividade; o acompanhamento da construção a partir dos demonstrativos trimestrais que receberá do incorporador; a prática dos atos necessários à preservação do fluxo normal da obra, inclusive medidas judiciais e extrajudiciais relacionadas ao procedimento de destituição do incorporador em casos de paralisação ou retardamento injustificado da obra e, ainda, de insolvência, para as quais essa comissão está investida em mandato legal para, em caso de inadimplemento de obrigações dos adquirentes ou do incorporador (em casos de insolvência ou destituição), promover leilão das respectivas frações ideais e acessões visando a satisfação de créditos do patrimônio da incorporação, entre outros atos de representação em geral ou previstos expressamente pela Lei 4.591/1964. O mandato legal da comissão de representantes expira por ocasião da conclusão da obra, quando o condomínio passará a ser administrado por um síndico e demais órgãos de representação definidos pelos arts. 1.333 e seguintes do Código Civil (sobre o uso e a administração do condomínio após o habite-se)29.  O critério legal de representação do condomínio por uma comissão de representantes em vigor há mais de meio século tem se mostrado adequado à administração de situações de crise da empresa incorporadora de que resultem a paralisação ou o retardamento da obra, sem justa causa, e veio a ser consolidado pelas normas da Lei 14.382/2022 que instituem procedimento extrajudicial de destituição do incorporador, cuja efetividade depende, obviamente, da regular existência do condomínio especial30. Do mesmo modo que a falta de uniformidade na denominação do condomínio especial é irrelevante, também o fato de a lei empregar expressões distintas para identificar situações fáticas típicas da fase da construção não importa em alteração de nenhum dos elementos de caracterização do condomínio especial/edilício estabelecidos pelos arts. 8º e 32 da lei 4.591/1964, pelo art. 6º da lei 4.864/1965 e pelo art. 1.332 do Código Civil, pois, a despeito da diversidade terminológica, há um só condomínio especial/edilício, constituído pelo registro da incorporação. Uma vez concluída a construção e à vista da certidão do habite-se, as unidades que integram a edificação assimilarão automaticamente o regime jurídico do terreno por simples efeito do princípio superficies solo cedit (observada a destinação e a discriminação definidas no projeto e no memorial de incorporação), registrando Pontes de Miranda que "a acessão àquelas [partes indivisas] beneficia a todos os comunheiros e a acessão a essas [partes divisas] somente àquele ou aqueles a que tocam as partes divisas, razão por que o mesmo fato pode beneficiar a todos e a algum ou a alguns, conforme o que acede se integra na parte indivisa ou na parte divisa."31 Assim é porque a lei não excepciona o princípio da acessão em relação à construção realizada sobre terreno fracionado para realização de incorporação imobiliária,32 daí porque também no caso da incorporação imobiliária a edificação se incorpora ao solo com o mesmo regime jurídico do condomínio especial já dotado dos elementos de caracterização estabelecidos pelo art. 1.332 do Código Civil. Isso é o que deflui da nova redação dada pela lei 14.382/2022 ao art. 44 da lei 4.591/1964, pela qual foi suprimido o trecho que dispunha que a construção seria averbada "para efeito de individualização e discriminação das unidades", passando esse dispositivo a exigir apenas a "averbação da construção em correspondência às frações ideais discriminadas na matrícula", tendo em visa os efeitos do fenômeno da acessão na formação do produto oriundo da atividade empresarial da incorporação imobiliária. A leitura do art. 44 em articulação com as disposições antecedentes, evidencia que todas essas regras compõem um conjunto normativo formulado em conformidade com os fundamentos dos direitos reais e do sistema registral, pois a edificação retratada na certidão de habite-se nada mais é do que a descrição da configuração física definitiva das acessões incorporadas ao solo e por isso o registrador se limita a averbar a construção sem alterar o regime jurídico do solo em que foi implantada, que anteriormente já havia sido qualificado como condomínio especial/edilício pelo registro da incorporação. Efetivamente, como bem observa Marcus Vinícius Motter Borges, na medida em que o condomínio edilício (ou condomínio especial) foi instituído pelo registro da incorporação, resulta claro que "a averbação da construção é apenas ato informativo acerca da conclusão das obras do empreendimento e não se confunde com a instituição de condomínio edilício."33. De fato, como é de conhecimento corrente, a averbação "não muda nem a causa nem a natureza do título que deu origem à inscrição, não subverte o assento original, tão somente o subentende", como ensina Afrânio de Carvalho34, observando Francisco Eduardo Loureiro que, na incorporação imobiliária, "concluída a edificação e expedido o habite-se, haverá mera averbação do fato na matrícula do condomínio já anteriormente instituído".35 Afinal, não se pode esquecer que o produto da atividade da incorporação imobiliária se forma por efeito natural do fenômeno da acessão, e é por isso que comporta apenas "averbação da construção em correspondência às frações ideais discriminadas na matrícula" (lei 4.591/1964, art. 44), sem duplicação do registro do condomínio especial/edilício já instituído pelo registro da incorporação. Bem consideradas as disposições legais que compatibilizam as normas sobre os atos registrais ao conteúdo normativo do art. 29 da lei 4.591/1964, resulta claro o propósito de conferir efetividade à instituição de condomínio como mecanismo de proteção dos direitos patrimoniais dos adquirentes de imóveis em construção, o que  consolida a afirmação de Caio Mário da Silva Pereira no sentido de que "a grande inovação instituída pela lei 4.591/1964 foi a criação de direito real, instituído em favor dos adquirentes de unidades, como também do incorporador, com o registro da incorporação" (destaques do autor)36 Assim, esse conteúdo normativo é preservado pela alteração legislativa introduzida pela Lei 14.382/2022 que assegura a efetividade do sistema registral e incorpora ao ordenamento novos e decisivos mecanismos de segurança jurídica capazes de assegurar o exercício das prerrogativas dos adquirentes a partir da instituição de condomínio edilício pelo registro da incorporação. __________ 1 Lei 4.591/64: Art. 32. "O incorporador somente poderá alienar ou onerar as frações ideais de terrenos e acessões que corresponderão às futuras unidades autônomas após o registro, no registro de imóveis competente, do memorial de incorporação composto pelos seguintes documentos: (...) i) instrumento de divisão do terreno em frações ideais autônomas que contenham a sua discriminação e a descrição, a caracterização e a destinação das futuras unidades e partes comuns que a elas acederão;" (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022) 2 Lei 4.591/64: Art. 32 (...). § 1º-A "O registro do memorial de incorporação sujeita as frações do terreno e as respectivas acessões a regime condominial especial, investe o incorporador e os futuros adquirentes na faculdade de sua livre disposição ou oneração e independe de anuência dos demais condôminos."  (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022) 3 Lei 4.591/64: art. 32 (...). § 15. O registro do memorial de incorporação e da instituição do condomínio sobre as frações ideais constitui ato registral único.    (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022) 4 Lei 4.591/64: "Art. 44. Após a concessão do habite-se pela autoridade administrativa, incumbe ao incorporador a averbação da construção em correspondência às frações ideais discriminadas na matrícula do terreno, respondendo perante os adquirentes pelas perdas e danos que resultem da demora no cumprimento dessa obrigação. (...)" (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022) 5 Lei 4.591/64: Art. 29. "Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial (...). Parágrafo único. Presume-se a vinculação entre a alienação das frações do terreno e o negócio de construção, (...)." 6 CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 247. 7 Código de Normas da Corregedoria-Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro editado pelo Provimento nº 87/2022: "Art. 1.351. O registro da incorporação imobiliária institui o condomínio edilício, ensejando a cobrança de emolumentos por um único ato (art. 32, §§ 1º-A e 15º, da Lei nº 4.591/1964). Parágrafo único. Exigir-se-á o registro da convenção de condomínio concomitantemente ao da averbação da construção, caso ainda não tenha sido registrada."  8 ITEM 1.1.44 NATUREZA JURÍDICA (NJ) Condomínio Edilício: NJ 308-5. DATA DO EVENTO Data de registro da convenção ou data de registro da assembleia que deliberou sobre a inscrição no CNPJ. (quando não existir convenção) ATO CONSTITUTIVO (REGRA GERAL) Convenção do condomínio registrada no RI, acompanhada da ata de assembleia de eleição do síndico, registrada no RTD; OU, caso não exista a convenção, Certidão emitida pelo RI que confirme o registro do Memorial de Incorporação do condomínio, acompanhada da ata de assembleia que deliberou sobre a inscrição no CNPJ, e da ata de assembleia de eleição do síndico, registradas no RTD. BASE LEGAL CC, arts. 1.332 a 1.334, 1.347 e 1.348; Lei nº 4.591/1964, arts. 3º, 7º, 9º, 22 e 32. 9 RIBEIRO, Moacyr Petrocelli de Ávila, O regime jurídico-registral da incorporação imobiliária à luz da Lei 14.382/22, in Migalhas, acesso em 24.1.2023. 10 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias e TARTUCE, Flávio, Condomínio protoedilício e condomínio edilício: distinções à luz da lei 14.382/22 (Lei do SERP) in Migalhas, acesso em 24.01.2023. 11 Lei 4.591/1964: "Art. 8º Quando, em terreno onde não houver edificação, o proprietário, o promitente comprador, o cessionário deste ou o promitente cessionário sobre ele desejar erigir mais de uma edificação, observar-se-á também o seguinte:" 12 Lei 4.591/1964: "Art. 9º Os proprietários, promitentes compradores, cessionários ou promitentes cessionários dos direitos pertinentes à aquisição de unidades autônomas, em edificações a serem construídas, em construção ou já construídas, elaborarão, por escrito, a Convenção de condomínio, e deverão, também, por contrato ou por deliberação em assembleia, aprovar o Regimento Interno da edificação ou conjunto de edificações. (...)". 13 ABELHA, André,  Incorporação imobiliária e condomínio edilício antes do habite-se: unidade futura, condomínio de construção e suas perplexidades tonitruantes in Migalhas, acesso em 25/01/2023 14 Código Civil: "Art. 1.488. Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito."  15 O tema é tratado mais detidamente em nosso Incorporação Imobiliária, GenForense, 7. ed., 2023, itens 1.4.3 e 2.1.1. 16 Observa Caio Mário da Silva Pereira que "O Código Civil de 2002 trata do condomínio especial dos edifícios coletivos nos seus arts. 1.331 a 1.358, sob o título 'Do Condomínio Edilício', denominação que criticamos durante toda a fase da elaboração do Projeto do Código, sem sucesso. Cabe o registro, aliás, que esta espécie de condomínio recebeu denominações as mais variadas, 'propriedade horizontal" (...); 'condomínio especial'; condomínio de edifícios divididos em planos horizontais', e 'copropriedade de prédio de apartamentos', dentre muitas outras" (PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil. Revista e atualizada por Carlos Edison do Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro: GenForense, 25. ed., 2017, p. 182.    17 GOMES, Orlando, Direitos Reais. Rio de Janeiro: GenForense, 19. ed., 2009.Atualizador Edson Fachin, p. 250.  Diz o autor: "A terminologia não é uniforme. Insiste-se em qualificá-la, acentuando um dos seus aspectos, como condomínio, acrescentando, para distingui-lo do ordinário ou geral, as seguintes expressões: relativo, sui generis, por andares ou apartamentos de edifícios com apartamentos autônomos, condomínio em edificações, ou condomínio especial em edifícios. Qualquer dessas denominações pode ser aceita." 18 Código Civil: "Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial: I - a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns; II - a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns; III - o fim a que as unidades se destinam." 19 A exemplo dos seguintes trechos: "Que é esta propriedade horizontal, ou este condomínio especial, por unidades autônomas?" (p. 70); "... a noção deste condomínio especial na associação da propriedade exclusiva da unidade com a copropriedade do solo e partes comuns" (p. 77); "a propriedade horizontal ou o condomínio especial por unidades autônomas compreende um sistema..." (p. 77); "... sem o que não se constitui a propriedade horizontal, ou o condomínio especial" (p. 78); "... o cumprimento do testamento importará na criação do condomínio especial, em que cada legatário ou herdeiro testamentário receberá a propriedade individual da unidade autônoma..." (p. 95); e "... promovam a constituição do condomínio especial sob regime de propriedade horizontal..." (pp. 95-96). PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 15. ed. rev., atual. e ampl. Atualizadores: Melhim Chalhub e André Abelha. Rio de Janeiro: Forense, 2022. 20 LOUREIRO, Francisco Eduardo, Código Civil comentado. Coord. Ministro Cezar Peluso. 17. ed., 2023. Comentário ao art. 1.331 do Código Civil. 21 I Jornada de Direito Civil - Enunciado 89: "O disposto nos arts. 1.331 a 1.358 do novo Código Civil aplica-se, no que couber, aos condomínios assemelhados, tais como loteamentos fechados, multipropriedade imobiliária e clubes de campo." 22 I Jornada de Direito Processual Civil - Enunciado 100: Extensão da expressão "condomínio edilício" no CPC/73: "Interpreta-se a expressão condomínio edilício do art. 784, X, do CPC de forma a compreender tanto os condomínios verticais, quanto os horizontais de lotes, nos termos do art. 1.358-A do Código Civil." 23 CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 247 24 GOMES, Orlando, Direitos Reais, cit., p. 240. 25 FLORENZANO, Zola, Condomínio e Incorporações: Comentários à Lei de Estímulo à Construção Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1966, pp. 106/110. 26 BORGES, Marcus Vinicius Motter, Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. Coord. Marcus Vinicius Motter Borges. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2d ed., 2022, p. 410. 27 Lei 4.591/1964, com a redação dada pela Lei 14.382/2022: "§ 3º A ata de que trata o § 2º deste artigo, registrada no registro de títulos e documentos, constituirá documento hábil para: (...); c) à inscrição do respectivo condomínio da construção no CNPJ" 28 Lei 6.015/1973: "Art. 213. O oficial retificará o registro ou a averbação: (...). § 10. Entendem-se como confrontantes os proprietários e titulares de outros direitos reais e aquisitivos sobre os imóveis contíguos, observado o seguinte: I - o condomínio geral, de que trata o Capítulo VI do Título III do Livro III da Parte Especial da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado por qualquer um dos condôminos; II - o condomínio edilício, de que tratam os arts. 1.331 a 1.358 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado pelo síndico, e o condomínio por frações autônomas, de que trata o art. 32 da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, pela comissão de representantes."  29 CHALHUB, Melhim Namem, Incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: GenForense, 7.Ed., 2023, p.83. 30 CHALHUB, Melhim Namem, Incorporação imobiliária. Rio de Janeiro: GenForense, 7.Ed., 2023, p.407/423. 31 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado. São Paulo: RT, 12. ed., §§ 1.206 e 1.211. 32 Só por expressa definição legal é possível excepcionar o princípio da acessão, como é o caso da concessão do direito de superfície, que "é substancialmente uma suspensão ou interrupção da eficácia do princípio da acessão" (Ricardo Cesar Pereira Lira, O direito de superfície. Ensaio de uma teoria geral. Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro n. 38, 1979). É também o que decorre da concessão de direito de laje. Em ambos os casos é excepcionado o princípio da acessão com a consequente bifurcação da propriedade, de que resultam propriedades distintas, cada uma delas dotada de autonomia (CC, arts. 1.369 e ss, Estatuto da Cidade, arts. 21 e ss e CC, arts. 1.510-A e ss).  33 BORGES, Marcus Vinicius Motter, Curso ..., cit., p. 481. 34 CARVALHO, Afrânio de, Registro de imóveis. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 110. Diz o autor: "A averbação não muda nem a causa nem a natureza do título que deu origem à inscrição, não subverte o assento original, tão somente o subentende. A estrutura de uma inscrição não pode, portanto, ser mudada pela averbação de um ato retro operante, podendo apenas servir de substrato a um ato que, reconhecendo a existência inteiriça, em um instante do tempo, daí parte para dar-lhe nova figura em instante ulterior. 35 LOUREIRO, Francisco Eduardo, Código Civil comentado. Coord. Ministro Cezar Peluso. 17. ed., 2023. Comentário ao art. 1.331 do Código Civil. 36 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 15. ed. rev., atual. e ampl. Atualizadores: Melhim Chalhub e André Abelha. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 331.
Notícias relatam que o contrato built to suit passou a ser firmado no Brasil a partir do final dos anos 90. Todavia, com a edição da lei 12.744/2012 e, especialmente nos últimos anos, o contrato se popularizou. Em meus estudos de mestrado (finalizados em 2016), ainda eram escassos os julgados que tratavam sobre o referido contrato. É verdade que muitas vezes a solução do conflito nessa modalidade contratual é resolvida via arbitragem e, em razão da confidencialidade, não se tem acesso ao resultado de diversos litígios apreciados por câmaras arbitrais. Contudo, recentemente, quando elaborava a segunda edição do livro "Contratos built to suit: aspectos controvertidos decorrentes de uma nova modalidade contratual" (cuja primeira edição data de 2017 e a segunda será lançada no primeiro semestre de 2023), notei incremento de decisões judiciais que apreciaram e interpretaram litígios envolvendo o built to suit. O objetivo do presente artigo não é tratar especificamente dos traços gerais da modalidade contratual, mas, sim, do comportamento jurisprudencial a partir dos mais recentes julgados que verificamos em nossa pesquisa. Tal como defendemos no livro referido anteriormente e, ainda, em outros artigos a respeito da contrato built to suit1, é relevante que a interpretação do contrato leve em consideração a autonomia privada e, tal como determina o art. 54-A da Lei 8.245/1991, a prevalência das condições livremente pactuadas no contrato respectivo. Nesse sentido, é imprescindível que o intérprete conheça os riscos envolvidos no built to suit, bem como os fundamentos que sustentam a economia dessa modalidade contratual. Ora, o empreendedor apenas tem interesse em construir sob medida ao futuro ocupante caso tenha razoável segurança jurídica de que conseguirá obter o retorno de seu investimento ao longo dos anos. Nesse sentido, o empreendedor normalmente contrata mediante sólidas garantias de pagamento da remuneração mensal, por parte do ocupante. Da mesma forma, tal como admite o § 1º, do art. 54-A, o empreendedor também insistirá que o ocupante renuncie ao direito de propor ação revisional de aluguéis (artigos 68 e seguintes), justamente para que não corra o risco de o valor estabelecido pelas partes ser reduzido, em razão de uma suposta alteração do preço de mercado da remuneração mensal. Pois bem. Um dos primeiros julgados que analisou o contrato foi proferido antes mesmo do advento da lei 12.744/2012. O Tribunal de Justiça de São Paulo2, em 2011, corretamente, considerou que a natureza do contrato built to suit diferia daquela do contrato típico de locação. Segundo o julgado, o built to suit não é um contrato "puramente de locação de imóvel, visto que esta é apenas uma de suas facetas, na medida em que apresenta elementos dos contratos de construção, empreitada, financiamento e incorporação, além de outras características próprias". Precisamente em razão da atipicidade do contrato e dos riscos envolvidos no contrato é que a Lei do Inquilinato (art. 4º) também admite que em caso de resilição unilateral e antecipada do contrato por parte do ocupante, a cláusula penal não sofra as reduções de um contrato típico de locação (normalmente proporcional ao período de ocupação e limitada apenas a três alugueres). Como já referido, a determinação para que as partes respeitem o valor da multa imposta é questão imprescindível para a economia do contrato e eventual decisão que reduza a multa do contrato, com fundamento no art. 413, do Código Civil (diante de valor manifestamente excessivo) ou ainda com fundamento no art. 317, do mesmo diploma (em razão de fatos supervenientes e extraordinários), deve ser muito bem fundamentada, comprovando os requisitos que autorizam a revisão contratual. Em nossa pesquisa jurisprudencial, verificamos que os tribunais, em sua maioria, têm respeitado os valores estabelecidos no contrato em caso de resilição unilateral por parte do ocupante, tornando a revisão uma situação bastante excepcional. Para tanto, fazemos referências a julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo3, Tribunal de Justiça de Minas Gerais4, Tribunal de Justiça do Paraná5 e Tribunal Regional Federal da 3ª região6. Em tais casos e com fundamento no pacta sunt servanda, ao consignar as características do contrato, os referidos tribunais mantiveram o valor estabelecido no contrato, embora também seja possível verificar julgado que admitiu a redução da cláusula penal, com aplicação do art. 413, do Código Civil7. Com relação ao valor da remuneração mensal, embora a Lei 8.245/1991 admita que as partes possam renunciar ao direito à ação revisional de alugueres, já aduzimos anteriormente8 que tal renúncia não significa que a parte lesada não possa requerer a revisão da remuneração na ocorrência de fatos supervenientes ou extraordinários, ou seja, situações bastante excepcionais ou pontuais podem ensejar o pedido de revisão contratual, com fundamento nos artigos 317 ou 478, ambos do Código Civil. Não obstante tal permissão, também em nossa pesquisa verificamos que a revisão contratual tem sido medida excepcional. Antes da pandemia e em contrato firmado enquanto não editada a lei 12.744/2012, o Tribunal de Justiça de São Paulo9 afastou pedido revisional de aluguéis, após detida avaliação dos requisitos do contrato. Isso porque, segundo o julgado,  [...] a fixação do aluguel, segundo a livre estipulação das partes, levou em conta não apenas a finalidade de servir de contraprestação pelo uso do bem, mas, sobretudo, de retorno do investimento realizado no local. Assim, diante dessa particularidade, inviável se apresenta cogitar de revisão do valor da contraprestação enquanto não se esgotar o prazo estabelecido no contrato.  Já ao longo da pandemia e, sobretudo, com a elevação do índice normalmente utilizado pelos contratantes no built to suit, foram propostas ações judiciais com caráter revisional, aduzindo a elevação abrupta do Índice Geral de Preços do Mercado (IGPM) e, consequentemente, majoração repentina e desmedida da remuneração mensal paga pelo ocupante. Ocorre que em nossa pesquisa também verificamos que tais pleitos, em sua maioria, foram afastados pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, sob o argumento de que a pandemia e seus reflexos não permitem, automaticamente, o reajuste do preço e intervenção judicial no contrato empresarial10, embora tenhamos localizado julgado que admitiu a revisão uma vez comprovada dificuldade financeira por parte do ocupante11, situação que, em nossa opinião, não enseja a revisão do contrato12. Mas ainda a demonstrar que o Poder Judiciário tem respeitado a vontade dos contratantes, citamos outro julgado, datado de 2020 e apreciado pelo Tribunal de Justiça do Paraná13. Naquele processo determinada instituição bancária firmou contrato built to suit com empresa de construção no ano de 2012 (antes da edição da Lei 12.744/2012) para edificação de agência bancária, que foi entregue em 2015. O contrato possuía prazo determinado de dez anos. Contudo, após dois anos de ocupação no imóvel, a instituição financeira realizou denúncia unilateral ao contrato, disponibilizando-se a pagar a multa estabelecida no contrato, que seguia a regra tradicional da locação (três alugueres de maneira proporcional). Nesse cenário, o construtor procurou declarar a nulidade da referida cláusula, para que fosse aplicado o art. 473, parágrafo único, do Código Civil14, ou seja, considerando os investimentos que realizou, o objetivo do construtor era permitir que a denúncia unilateral só produzisse efeitos depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos. Ao apreciar o contrato, a Des. Rel. Rosana Fachin aduziu que: A despeito do poderio econômico do locatário Banco do Brasil S/A, trata-se de contrato empresarial firmado com conhecimento da locadora. A compreensão do conteúdo do contrato, de suas obrigações e das consequências financeiras da assinatura desse instrumento impede que se declare nulidade do contrato desde sua origem/formação. Conforme se pode depreender do áudio por ele juntado (mídia mov. 67.1), a Autora-apelante sabia da existência da cláusula impugnada desde o princípio das negociações, chegando a comentar sobre ela com o representante do Banco, mas com ela acabou anuindo. Segundo o representante do Banco, era possível propor a alteração de cláusulas contratuais, o que seria submetido ao jurídico do Banco. Oportuno frisar que a revisão contratual deve ocorrer somente de forma excepcional e limitada, quando configurada hipótese de abuso de direito ou de desequilíbrio contratual. A anulação de cláusulas contratuais, por sua vez, depende de conteúdo ilícito (art. 166, II CC). Como se nota, ao avaliar as tratativas negociais, a relatora do caso entendeu que a denúncia antecipada e a multa estabelecida eram riscos próprios do contrato, aos quais havia anuído o empreendedor, porque "a renúncia convencional pela locadora ao direito de ser indenizada pela antecipação do termo contratual representa direito patrimonial disponível". A nulidade foi afastada e prestigiou-se a vontade das partes, afastando-se a aplicação do art. 473, parágrafo único, do Código Civil. Em nossa avaliação e após pesquisa jurisprudencial, há boa compreensão dos tribunais a respeito das características do contrato empresarial built to suit e da necessidade de excepcional intervenção judicial. Esperamos que em 2023 a jurisprudência prossiga em seu caminho de conferir segurança jurídica, sobretudo às relações empresariais. __________ 1 Vide, por exemplo, GOMIDE, Alexandre Junqueira. A revisão dos contratos built to suit em tempos de pandemia. Migalhas. Coluna Migalhas Edilícias, 27/08/2020. Disponível aqui. Acesso em 09 jan. 2023. 2 TJSP, Apelação com Revisão 9156991-70.2008.8.26.0000 (992.08.037348-7), rel. Antônio Benedito Ribeiro Pinto, j. 04.05.2011. 3 TJSP, Apelação Cível 1004786-65.2020.8.26.0068; rel. Rosangela Telles; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro de Barueri - 2ª Vara Cível; j. 13/10/2021; Data de Registro: 13/10/2021. Vide, também, TJSP, Apelação Cível 1056478-46.2016.8.26.0100; rel.  Jayme Queiroz Lopes; Órgão Julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 5ª Vara Cível; j. 25/06/2020; Data de Registro: 25/06/2020, que também trata da tentativa de redução da multa contratual. 4 TJMG, Apelação Cível 1.0000.21.014326-9/001, rel. Des.(a) Fernando Caldeira Brant, 20ª Câmara Cível, julgamento em 07/04/2021, publicação da súmula em 08/04/2021 5 TJPR, 17ª Câmara Cível 0001228-91.2020.8.16.0194; rel. Des. Fabio André Santos Muniz; j. 27/06/2022. No mesmo sentido e pelo mesmo Tribunal, vide TJPR, 17ª Câmara Cível 0021361-25.2018.8.16.0001; Rel. Des. Marcel Guimarães Rotoli de Macedo; j. 19/05/2022. 6 TRF 3ª Região. Apelação cível 0025624-84.2008.4.03.6100/SP, Rel. Des. José Lunardelli; j. 15/12/2011. 7 TJSP, Apelação Cível 1002019-57.2016.8.26.0274; rel. Alfredo Attié; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Foro de Itápolis - 1ª Vara; j. 24/09/2019; Data de Registro: 27/09/2019. 8 Cite-se, novamente, o já referido artigo de nossa autoria: GOMIDE, Alexandre Junqueira. A revisão dos contratos built to suit em tempos de pandemia. Migalhas. Coluna Migalhas Edilícias, 27/08/2020. Disponível aqui. Acesso em 09 jan. 2023. 9 TJSP, Apelação Cível 1010336-32.2017.8.26.0008; rel. Antonio Rigolin; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional VIII - Tatuapé - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 12/07/2022; Data de Registro: 12/07/2022. Antes da pandemia e a respeito da manutenção dos valores, vide também TJSP, Apelação Cível 1001315-32.2017.8.26.0008; rel. Carlos Henrique Miguel Trevisan; Órgão Julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional VIII - Tatuapé - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/07/2018; Data de Registro: 13/07/2018. 10 Vide, por exemplo, TJSP, Apelação Cível 1134436-35.2021.8.26.0100; rel. Melo Bueno; Órgão Julgador: 35ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 13ª Vara Cível; j. 07/12/2022; Data de Registro: 13/12/2022. Vide também TJSP, Apelação Cível 1006728-08.2020.8.26.0562; rel. Paulo Ayrosa; Órgão Julgador: 31ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santos - 4ª Vara Cível; j. 06/11/2020; Data de Registro: 06/11/2020 e TJSP, Apelação Cível 1065813-53.2020.8.26.0002; rel. Ferreira da Cruz; Órgão Julgador: 28ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II - Santo Amaro - 5ª Vara Cível; j. 02/08/2022; Data de Registro: 03/08/2022. 11 TJPR, 18ª Câmara Cível 0058770-67.2020.8.16.0000, rel. Des. Marcelo Gobbo Dalla Dea, j. 03/03/2021. Em sentido, contrário, todavia, TJPR, 17ª Câmara Cível, 0039574-35.2021.8.16.0014, rel. Des. Tito Campos de Paula, j. 03/10/2022. 12 A respeito da dificuldade de cumprimento da obrigação e revisão contratual, remetemos o leitor para GOMIDE, Alexandre Junqueira. Risco contratual e sua perspectiva na incorporação imobiliária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 329 e seguintes. 13 TJPR. Apelação Cível 0038166-97.2017.8.16.0030. Rel. Des. Rosana Amara Girardi Fachin, j. 10/06/2020. 14 "Art. 473. A resilição unilateral, nos casos em que a lei expressa ou implicitamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte. Parágrafo único. Se, porém, dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos".
quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Taxa SELIC é a segurança dos juros moratórios

Como em um triângulo, onde o vértice formado entre dois lados permite inferir onde deve estar o terceiro, a interpretação e aplicação de um Código Civil deve buscar uma lógica sistemática. Isto seguramente será tomado em consideração no julgamento do REsp 1795982/SP, no âmbito da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ).  Pautado para fevereiro, os eminentes Ministros e Ministras terão a oportunidade de desatar controvérsia sobre a interpretação do art. 406 do Código Civil (CC). Ao deixar de pagar uma dívida, o dispositivo impõe ao devedor que pague juros ao credor no valor "segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional". Mesmo após vinte anos de vigência, o trecho é motivo de aceso debate  Os juros moratórios são devidos pela privação de certo recurso que o credor deveria receber, e não recebeu. Como espécie de frutos civis, durante o período da inadimplência os juros pingam periodicamente da quantia devida, sem a diminuir1. Como o próprio nome designa, o instituto objetiva impor um ônus ao atraso, ou ao inadimplemento, do devedor, que deverá arcar com o valor suplementar ao débito, tanto maior seja a sua mora2.  A leitura do art. 406 à luz da metáfora do triângulo e da própria função dos juros moratórios parece deixar poucas dúvidas sobre sua correta compreensão. O dispositivo aplica-se no silêncio das partes. Sendo este o caso, a taxa devida será equivalente à SELIC3, como previsto na lei 9.065/95 e em outros dispositivos. A despeito disso, razões respeitáveis levaram a maior parte da doutrina brasileira a colocar-se contra esta interpretação linear.  Já na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal, o grupo de juristas ali reunidos aprovou o enunciado n. 20, em sentido contrário ao que dispõe a lei. Assentou-se que "A taxa de juros moratórios a que se refere o art. 406 é a [de] um por cento ao mês". Em sua justificativa4, o grupo ponderou que o uso da SELIC não era seguro porque a taxa muda com frequência, nem era operacional porque ela embute juros e correção monetária.  A despeito disso, não foi aparentemente considerado que o legislador previamente examinou os ônus e bônus envolvidos, e fez sua opção - legítima e distinta da solução proposta pelo enunciado. O enunciado tomou como um problema o uso da SELIC porque ela é uma taxa móvel. Porém, não há qualquer dificuldade para o seu cálculo5; ao contrário, facilita-se, porque a SELIC já embute correção monetária6, dispensando o complexo mecanismo de corrigir o valor e a ele somar os juros. Seja como for, mais do que por uma questão operacional, o texto legal escolheu atrelar os efeitos da mora no tempo às taxas básicas no juros no período, e não a um número fixo.  Ao fazer incidir a SELIC sobre um débito inadimplido não se concede ao credor uma espécie de aplicação financeira com juros de 1% ao mês, mais correção. A opção pela SELIC significa que o legislador quis fixar uma taxa móvel que não se tornasse excessiva ou minúscula ao longo das sucessivas curvas inflacionárias, sem prejuízo de as partes, em seus contratos, definirem uma taxa distinta.  Esta mesma opção pode ser vista em legislações que serviram de inspiração para o Código Civil brasileiro. Na França, por exemplo, os juros moratórios são revisados periodicamente pelo Ministério da Economia7. Na Itália, embora o Codice Civile mencione uma taxa fixa, a mobilidade foi garantida pela possibilidade de alteração anual por ato do Ministério do Tesouro8.  Para além disso, a escolha legislativa tem sólidos fundamentos econômicos. Em nota técnica emitida sobre o tema, o economista Gustavo Franco alerta que "Regras para a mora não deveriam ter a sua razoabilidade dependente das condições meteorológicas". Para ele, o uso de taxas fixas arbitrárias são "escombros de uma civilização perdida", algo não mais admitido pela ciência econômica. Estipular que a taxa de juros moratórios deve ser de 1% ao mês seria como lançar mão "de um número arbitrário, um juros de algibeira", que tanto poderia ser 1% ao mês, como "uma libra de carne, ou duas", sendo algo exótico, inadequado e inútil9.  A despeito destes fundamentos, a doutrina sustenta que é função da SELIC fixar a taxa devida aos investidores de títulos públicos, o que não seria compatível com os juros moratórios. Porém, o seu uso se dá por referência, à luz do fato de que ela é um instrumento para controle da inflação. Assim, considerar que SELIC não pode ser juros moratórios seria como recusar que o câmbio ou um índice de inflação possam ser aplicados para se chegar ao valor de obrigações de toda natureza, o que não é verdade.  Essas circunstâncias permitem refletir sobre o discurso da segurança, no contexto da lide em torno dos juros. As duas posições em jogo argumentam em favor deste ponto, mas a suposta segurança de uma taxa fixa mensal não pode ser obtida fora da lei, nem fora do contexto econômico. Se o cenário econômico for de baixa inflação, o percentual de 1% ao mês pode se revelar excessivo, distante da realidade de aplicações financeiras ordinárias. Se for de alta, o mesmo percentual pode se revelar baixo, não alcançando o próprio objetivo dos juros moratórios. Daí se justificar a escolha legítima pela SELIC.  Tudo isto resta ainda mais claro ao ter-se em conta que o STJ também firmou entendimento, na Corte Especial, em favor da SELIC10. Ainda que existam acórdãos anteriores em sentido contrário, é bastante significativo o fato de a Corte, desde então, ter passado a inadmitir embargos de divergência sobre o tema, justamente porque entendeu que não há mais dissenso a ser resolvido11.  Apesar disso, os eminentes Ministros e Ministras avaliarão o tema novamente, agora tendo em vista um possível distinguishing quanto a manutenção ou não da SELIC na hipótese de responsabilidade civil extracontratual, e a recalcitrância dos tribunais locais, que não raro insistem em não aplicar a jurisprudência firmada sobre o tema.  Quanto ao primeiro ponto, o regime dos efeitos da mora nos contratos e nas obrigações extracontratuais tem previsão expressa no Código Civil12. Não tendo havido distinção quanto à taxa de juros, ela deve ser aplicada do mesmo modo nos dois casos, como tem decidido o STJ13.  Pretendendo criar uma regra geral, o Código Civil não diferencia os efeitos do incumprimento quanto a este ponto, ressalvada às partes a possibilidade de estipularem expressamente os juros moratórios ao firmarem seus negócios. A unificação dos juros de mora, portanto, prestigia a opção legislativa e a conquista histórica da redução da margem de arbitrariedade na sua fixação, ao contrário do que ocorria na origem do uso dos juros como consequência da mora, como relatado por Zimmermann14.   Quanto ao segundo ponto, este talvez seja o momento de a Corte, ao examinar novamente a matéria, aprovar súmula com o objetivo de proibir julgamento em sentido contrário. Embora o tema encontre-se pacificado há quase 15 anos, curiosamente o entendimento contrário aprovado na I Jornada de Direito Civil parece se impor mais do que compreensão do Superior Tribunal de Justiça. Esta circunstância recomenda que o verbete seja fixado, com o que a jurisprudência será mantida estável e coerente, dando-se também maior publicidade à comunidade jurídica.  A SELIC representa segurança: econômica, porque está atrelada às curvas de inflação; e jurídica, porque inegavelmente foi a escolha do legislador, ratificada pelo STJ. À luz disso, não é razoável criar dúvidas quanto a metodologia indicada na legislação para o cálculo dos juros moratórios. Se reafirmar sua jurisprudência, a Corte estabelecerá marco importante sobre o tema e as bases necessárias, quem sabe, para a construção de uma plataforma unificada de cálculos judiciais pelo Conselho Nacional de Justiça, o que economizará tempo e recursos de advogados, juízes e usuários do Poder Judiciário. __________ 1 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. t. XXIV. São Paulo: RT, 2012, p. 77. 2 SILVA, José Marcelo Tossi. Juros legais. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore (coord.). Obrigações. São Paulo: Atlas, p. 694.  3 "Art. 13. A partir de 1º de abril de 1995, os juros de que tratam a alínea c do parágrafo único do art. 14 da lei 8.847, de 28 de janeiro de 1994, com a redação dada pelo art. 6º da lei 8.850, de 28 de janeiro de 1994, e pelo art. 90 da lei 8.981, de 1995, o art. 84, inciso I, e o art. 91, parágrafo único, alínea a.2, da lei 8.981, de 1995, serão equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia - SELIC para títulos federais, acumulada mensalmente". Inúmeros outros dispositivos na legislação tributária confirmam o uso da SELIC, seja ao tratar da mora ou da atualização da dívida na hipótese de parcelamento ou compensação tributária. A este respeito, ver: art. 39, §4º, lei 9.250/95; art. 5º, §3º e art. 61, §3º, lei 9.430/96. 4 Eis a justificativa: "A utilização da taxa SELIC como índice de apuração dos juros legais não é juridicamente segura, porque impede o prévio conhecimento dos juros; não é operacional, porque seu uso será inviável sempre que se calcularem somente juros ou somente correção monetária; é incompatível com a regra do art. 591 do novo Código Civil, que permite apenas a capitalização anual dos juros, e pode ser incompatível com o art. 192, § 3º, da Constituição Federal, se resultarem juros reais superiores a doze por cento ao ano". O enunciado foi proposto pelo Desembargador Francisco Moesch, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Segundo Nelson Nery Júnior, membro da comissão que examinou a proposta e relator dos trabalhos no dia 12/09/2002, a aprovação se deu por unanimidade (NERY JÚNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 14. ed. São Paulo: RT, 2022). 5 O Banco Central mantém em seu site ferramenta intitulada "Calculadora do Cidadão", onde facilmente qualquer pessoa pode obter o resultado da incidência da taxa SELIC sobre um valor, em um dado período. 6 Por isto a SELIC não pode ser cumulada com correção monetária, sob pena de bis in idem. Quanto ao ponto, apenas para ilustrar, confira-se: EDcl no REsp 1.025.298, rel. Min. Luís Felipe Salomão, j. 28/12/2012, com referência a inúmeros outros acórdãos. 7 "Art. 1231-6. Les dommages et intérêts dus à raison du retard dans le paiement d'une obligation de somme d'argent consistent dans l'intérêt au taux légal, à compter de la mise en demeure". Os juros legais são calculados de acordo com o art. 313-2 do Código Monetário e Financeiro: "Il comprend un taux applicable lorsque le créancier est une personne physique n'agissant pas pour des besoins professionnels et un taux applicable dans tous les autres cas. Il est calculé semestriellement, en fonction du taux directeur de la Banque centrale européenne sur les opérations principales de refinancement et des taux pratiqués par les établissements de crédit et les sociétés de financement. Les taux pratiqués par les établissements de crédit et les sociétés de financement pris en compte pour le calcul du taux applicable lorsque le créancier est une personne physique n'agissant pas pour des besoins professionnels sont les taux effectifs moyens de crédits consentis aux particuliers. Les modalités de calcul et de publicité de ces taux sont fixées par décret". 8 "Art. 1224. Danni nelle obbligazioni pecuniarie. Nelle obbligazioni che hanno per oggetto una somma di danaro, sono dovuti dal giorno della mora gli interessi legali (...)". O cálculo deverá observar o art. 1.284 do Codice: "Art. 1284. Saggio degli interessi. Il saggio degli interessi legali è determinato in misura pari allo 0,8 per cento in ragione d'anno. Il Ministro del tesoro, con proprio decreto pubblicato nella Gazzetta Ufficiale della Repubblica italiana non oltre il 15 dicembre dell'anno precedente a quello cui il saggio si riferisce, può modificarne annualmente la misura, sulla base del rendimento medio annuo lordo dei titoli di Stato di durata non superiore a 12 mesi e tenuto conto del tasso di inflazione registrato nell'anno. Qualora entro il 15 dicembre non sia fissata una nuova misura del saggio, questo rimane invariato per l'anno successivo. (...)" 9 A nota técnica foi apresentada nos autos do REsp 1795982/SP pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (ABRAINC). 10 "CIVIL. JUROS MORATÓRIOS. TAXA LEGAL. CÓDIGO CIVIL, ART. 406. APLICAÇÃO DA TAXA SELIC. 1. Segundo dispõe o art. 406 do Código Civil, 'Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional'. 2. Assim, atualmente, a taxa dos juros moratórios a que se refere o referido dispositivo é a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia - SELIC, por ser ela a que incide como juros moratórios dos tributos federais (arts. 13 da Lei 9.065/95, 84 da lei 8.981/95, 39, § 4º, da lei 9.250/95, 61, § 3º, da lei 9.430/96 e 30 da lei 10.522/02). 3. Embargos de divergência a que se dá provimento." (EREsp 727.842/SP, rel. Min. Teori ZAVASCKI, Corte Especial, j. 08/09/2008). 11 Exemplo recente pode ser visto no AgInt no EREsp 1731193/SP, rel. Min. Benedito Gonçalves, Corte Especial, j. 03/08/2022. 12 Se a mora for de obrigação líquida, dá-se no vencimento (art. 397, CC); se não for líquida, a partir da citação (art. 405, CC); se decorrer de ato ilícito, a partir do evento danoso (art. 398, CC). Este arranjo foi ratificado nas Jornadas de Direito Civil, nos enunciados 163 ("A regra do CC 405 aplica-se somente à responsabilidade contratual, e não aos juros moratórios na responsabilidade extracontratual, em face do disposto no CC 398...") e 428 ("Os juros de mora, nas obrigações negociais, fluem a partir do advento do termo da prestação, estando a incidência do disposto no CC 405 limitada às hipóteses em que a citação representa o papel de notificação do devedor ou àquelas em que objeto da prestação não tem liquidez"). 13 A SELIC tem sido igualmente aplicada como juros moratórios em indenizações (AgInt nos EDcl no REsp 1872866 / PR, rel. Min. Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 20/06/2022) e dívidas cíveis (AgInt no REsp 1900859 / MS, rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, j. 14/09/2020). 14 "What were (and what are) the effects ofmora debitoris? The medieval lawyers were presented with a specific problem by the Roman rule that interest could be charged in bonae fidei contracts. For how could this be reconciled with the canonical usura prohibition? Interest on account of mora, ran the argument usually presented to resolve the difficulty, was not to be regarded as genuine (illicit) usura, but as a (lawful) way of compensating the creditor for his damages: "hie usuras ut interesse peti" (Accursius) or ". . . pro interesse petatur" (Gofredus de Trano), and such a claim was not dishonest, "quia tale lucrum ex mutuo non speratur" (Cinus da Pistoia). Mora thus became one of the most important titles for awarding interest. The statutory or customary rates differed from town to town, from region to region. In the medieval upper Italian city states up to 20 % or even 30 % could be charged: in later centuries 5 % came to be widely accepted" (ZIMMERMANN, Reinhard. The Law of Obligations. Roman Foundations of the Civilian Tradition. Cape Town: Jota & Co Ltd, 1990, p. 799).
O tempo é ingrediente fundamental para o cumprimento ou descumprimento dos contratos, independentemente da sua natureza. Por ser uma variável totalmente imponderável, há muito instiga o Direito (e seus operadores) a estudá-lo. Sendo assim, o contrato configura-se como um ato entre as partes de apreensão e de comprometimento mútuo futuro1. Consequentemente, a promessa de um cumprimento de determinada obrigação futura, por certo, estará diretamente relacionada e vinculada a acontecimentos futuros. Tais incertezas geram apreensões entre as partes. A partir dessa premissa, fica a pergunta: é possível estipular um contrato que preveja todas as circunstâncias possíveis e futuras? Para a chamada Incomplete Contract Theory (Teoria Econômica do Contrato Incompeto), não. Giuseppe Bellantuono, por sua vez, dispõe que "nenhum contrato estabelece uma disciplina específica para todos os eventos que poderiam interferir na execução das obrigações". Consequentemente, tentar especificar todas as possíveis contingências futuras seria uma atividade custosa e, mesmo assim, sujeita a condições de incerteza2. Neste ponto, passa a ser importante a noção do que chamamos de bargain costs (custos de negociação). Muitas vezes, o detalhamento exacerbado das previsões contratuais subsidia os chamados comportamentos oportunistas, que acabam por utilizar dessa justificativa para o rompimento de relações que, em determinado momento, não lhe sejam mais vantajosas. Sendo assim, liberando as partes da custosa e desestimulante tarefa de buscar prever as incontáveis hipóteses de ocorrência de incidentes possíveis em um contrato, pode-se dedicar mais recursos à definição do objeto do contrato, qual seja, o preço e a forma de pagamento3. No Código Civil, os artigos 3174, 4785 e 4796 colocam o juiz como figura central capaz de solucionar toda e qualquer situação que pudesse alterar as bases originais do contrato, desde que verificados fatos que causem onerosidade excessiva a uma das partes. Dito de outro modo, o legislador permaneceu silente quanto à opção das partes já, previamente em cláusula contratual, estabelecerem eventual remédio jurídico para essa situação. Pois bem. Na presente reflexão, o intuito é debater, de forma suscinta, alguns contratos imobiliários de longa duração, como os chamados contratos de parceria imobiliária, built to suit, contratos de locação, promessas de compra e venda e permuta. Não é intuito discorrer cada um dos referidos contratos, mas sim de que forma o tempo pode afetá-los e se é possível atenuar os efeitos das incertezas do tempo nos respectivos instrumentos contratuais. É possível dizer, então, que o momento negocial do contrato (pré-contratual) é o pertinente para tais preocupações. Explica-se. Tal período de aproximação das partes e da berganha das posições contratuais é o que criará o espaço negocial para a elaboração das condições do contrato. Via de regra, nesse momento, existe um elevado otimismo entre as partes. Tal ambiente promissor deve ser utilizado, justamente, para as tratativas que visem proteger o contrato às eventuais futuras adversidades7. Esse é o ponto. Nesse momento negocial, entende-se adequada a inserção no contrato da cláusula de renegociação (hardship). Pelo princípio da autonomia privada é permitido aos figurantes no contrato ampla possibilidade de modelação de soluções visando atacar ou minimizar o eventual e futuro desequilíbrio contratual. Quanto maior o espaço para que seja exercida a autonomia privada, maior a liberdade de criatividade dos advogados na busca por soluções contratuais. Consequentemente, maior o espaço para atenuar situações supervenientes8. Dessa forma, as partes farão constar no contrato uma cláusula de renegociação, com intuito de revisar ou acomodar o contrato às novas circunstâncias, definindo, já no próprio texto contratual, um "projeto de adaptação" ou dispondo sobre um período de nova negociação entre as partes, caso determinada situação ocorra. Dito de outro modo, as partes plasmam, no contrato, uma obrigação de negociar, uma readaptação, se verificados certos acontecimentos capazes de atingir substancialmente o contrato (cláusula de hardship)9. Para Alexandre Junqueira Gomide, a cláusula de renegociação seria uma modalidade de as partes precaverem dos riscos decorrentes do decurso do tempo. Para o autor, as partes poderão, objetivamente, declarar em quais circunstâncias são obrigadas a renegociar, como também poderão firmar em caráter mais genérico, ou seja, determinando que as partes estão sujeitas a renegociar quando uma delas alegar a presença de um fato que acabou onerando excessivamente o cumprimento do que fora pactuado10. Nas palavras de Judith Martins-Costa: "Por via do poder modelador da autonomia privada atuam-se, pois, cláusulas cuja finalidade é, justamente, prover, contínua e dinamicamente, a acomodação do contrato às circunstâncias supervenientes ao momento de sua formação, sendo a configuração dessas cláusulas marcada pela atipicidade, o que importa numa grande variedade de formas e eficácias"11. Veja-se alguns exemplos práticos. Em contratos de permuta financeira, por exemplo, é comum que a incorporadora estabeleça com o proprietário do terreno ("terreneiro") um percentual de VGV (Valor Geral de Vendas) sobre a venda futura das unidades. Essa modalidade contratual pode perdurar por anos, tendo em vista que a obra do empreendimento possui um tempo considerável, bem como a venda das unidades (especialmente a prazo) também pode perdurar por anos. Pois bem, imagine que, no momento da estruturação do contrato de permuta financeira a incorporadora tenha previsto um valor X pelo metro cúbico de concreto. Com base nessa previsão, a incorporadora oferece ao "terreneiro" 30% (trinta por cento) do VGV da venda das unidades. Porém, um ano após a assinatura do contrato, o valor concreto triplica, alterando substancialmente o custo da obra. Dessa forma, para a manutenção de um equilíbrio mínimo entra as prestações será necessário que o VGV do negócio entabulado seja, também, modificado. Caso o contrato não possua uma cláusula de renegociação, essa situação pode gerar graves prejuízos na relação negocial, podendo resultar em eventual demanda judicial. Veja-se outro caso hipotético. João firma contrato de promessa de compra e venda com Maria com intuito de adquirir 500 (quinhentos) hectares na cidade de Passo Fundo/RS. Tal área será destinada por João para o plantio de soja. Dessa forma, como precificação do hectare, as partes estipulam que cada hectare custará X sacos de soja. João fica obrigado a pagar a quantia total em 24 meses. Pois bem. Passados 10 (dez) meses, em razão de fatossupervenientes e extraordinários, o valor do hectare duplica, prejudicando o negócio jurídico firmado. As partes poderiam, por exemplo, estabelecer um teto contratual no preço da soja. Por exemplo, caso o valor da soja aumente, o preço máximo ficará pactuado em um teto de 20% sobre o valor originariamente pactuado. A vantagem desse dispositivo contratual de renegociação é clara. Ninguém melhor do que as partes para modificar o contrato firmado. A partir dessa premissa, a transferência de competência para apreciação do contrato para o Poder Judiciário aumenta significativamente o grau de incerteza e insegurança jurídico, podendo fazer com que o resultado final seja totalmente diverso do pretendido inicialmente12. Diante disso, pode-se verificar que a apreciação jurisdicional no momento de revisar os contratos, podem gerar externalidades, especialmente negativas, como apreciações diferentes a casos análogos. Assim, "se, em um determinado tribunal, uma das câmaras julgadoras assumir um posicionamento sobre o tema X e outra posicionar-se em sentido contrário a respeito do mesmo tema, todos os interessados em causas semelhantes ver-se-ão incentivados a ir a juízo - tanto os que esperam um julgamento procedente quanto os que esperam um julgamento improcedente. A circunstância de o caso vir a ser julgado por uma ou outra câmara torna-se uma questão de sorte. Em havendo recurso, o sucesso na causa dependerá do sorteio (sorte!) da câmara que será designada para julgá-la"13. Portanto, a partir das premissas acima apresentadas, pode-se afirmar que a implementação das cláusulas de renegociação nos contratos de longa duração podem trazer uma maior segurança jurídica às partes, bem como uma redução substancial nos custos de transação, tendo em vista a impossibilidade de previsão de toda e qualquer situação superveniente que possa atingir o negócio jurídica entabulado. __________ 1 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 647. 2 CAMINHA, Uinie; LIMA, Juliana Cardos. Contrato Incompleto: uma perspectiva entre Direito e Economia para contratos de longo tempo. Revista Direito GV. São Paulo. 10(1), p. 155-200. Jan/Jun de 2014. 3 TRINDADE, Manoel Gustavo Neubarth. Análise Econômica do Direito dos Contratos: Uma nova abordagem do direito contratual como redutor das falhas de mercado. Londrina: Troth, 2021, p. 180. 4 Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. 5 Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. 6 Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato. 7 FORGINIO, Paula. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 76. 8 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 651. 9 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 652. 10 GOMIDE, Alexandre Junqueira. Risco contratual e incorporação imobiliária. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 205-206. 11 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 652-653. 12 GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva; ENGELMANN, Wilson. A Inteligência Artificial nos Contratos: Uma hipótese possível? ULP LAW REVIEW. Vol. 15, n. 01, p. 49-67. 13 PORTO, Antônio Maristello; GAROUPA, Nuno. Curso de análise econômica do direito. São Paulo: Atlas, 2020, p. 317.
A recente decisão do Supremo Tribunal Federal proferida na ADPF 828-DF analisou o quarto pedido de extensão da suspensão (que terminaria no dia 31/12/2021, segundo a Lei 14.126/2.021) das reintegrações de posse. Esta quarta decisão judicial não adiou mais uma vez (como se fizera anteriormente) o termo final fixado pelo Legislativo e promulgado pelo Executivo, mas estabeleceu um regime para a sua efetivação, o que por si só já motiva sérios debates doutrinários. A par desses debates, que os doutos solverão, a decisão do Eminente Ministro Barroso procurou cuidadosamente atentar à Resolução 90/2.021 do CNJ, que recomendou "aos órgãos do Poder Judiciário, a adoção de cautelas na solução dos conflitos sobre desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais durante o período da pandemia do Coronavírus (Covid-19)".  A decisão, ainda, buscou base legal no artigo 565, do CPC que determina que antes de ser analisado o requerimento de liminar de desocupação, seja designada uma audiência de mediação nos litígios coletivos por posse de imóvel ocorridos há mais de ano e dia. Ou seja, a decisão se mostrou bastante precavida no que tange aos ocupantes das terras.  No mais, a decisão impôs aos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais a imediata instalação de comissões focadas nos conflitos fundiários que possam subsidiar os juízes, incumbindo-as: (1) da elaboração da estratégia para a retomada das decisões de reintegração de posse que estão suspensas; (2) de realizarem inspeções judiciais e audiências de mediação antes de qualquer decisão para desocupação, mesmo nos casos em que já tenham sido expedidos os mandados de reintegração. Como se vê, expressou-se o intento de que tudo se realize com muita cautela, muita atenção às situações em foco. Ninguém dirá, creio, que esse intento não seja louvável. Mas, creio que seja válido pontuar alguns aspectos: (1) O silêncio acerca dos direitos dos proprietários cujas terras foram invadidas, sequer se falando de seus prejuízos e de suas situações fáticas, bastante sensíveis;  (2) Os seus direitos são claros, previstos na Constituição Federal (art.5º - XXII) e no Código Civil (art. 1228) e haveriam de ser concretizados segundo a legislação processual;  (3) Essa desatenção perdura nesta quarta oportunidade e, até aqui, esses proprietários estão sem as suas propriedades e sem  indenizações, malgrado não se tenha, em alguns casos, sequer analisado a invasão e fixado as suas características e consequências, o que já deveria ter sido efetivado a teor da lei e, em outros casos, já esteja superada a fase legalmente prevista e já exista ordem de reintegração expedida (isto é, questão já analisada será revista); (4) Mediações (muito conveniente e validamente previstas na lei - e isso é indubitável) se fazem por certo período e em certas condições e, essas circunstâncias já se esvaíram: fosse possível algum acordo, já teria ocorrido nesse ano que correu. Isso é relevante: a mediação é feita, mas não é lógico ou obrigatório nem esperar resultado indefinidamente, nem que chegue a alguma solução: não chegar também é um fim! E aí, cabe ao Judiciário julgar; (5) Em todo o Brasil há carência de estrutura para a realização de mediações e conciliações, o dizem milhares de decisões judiciais desde 2016, o que enevoa o futuro das providências previstas nesta decisão, não obstante a determinação enfática de criação de Comissões de Conflitos Fundiários nos tribunais: conseguirão nossos Tribunais, já às voltas com tanta demandas e necessidades, investir e operar esses novos trabalhos?; (6) Pelo objetivo declarado (mediar, passado tanto tempo) e pela necessidade estrutural (instalação e operação das comissões), nada acena em prol da solução almejada;  (7) A perdurar a invasão remanesce, por igual, a violação ao nosso arcabouço constitucional e legal, o que jamais é admissível até porque o Legislativo, ao qual cabe eventual alteração da norma, não sinalizou qualquer mudança, mesmo instado com veemência na decisão liminar proferida aos 31/12/2021. Vai daí, a louvável cautela judiciária, ao se alongar quase indefinidamente no tempo, poderá se transmudar em injustiça e ilegalidade, penso. Por fim, merece realce nesta importante decisão, notar que voltou a viger o regime legal para os despejos, isto é, voltamos ao império da Lei das Locações naquelas situações em que fora afastada (estava suspensa a aplicação da Lei nº 8.245/1991, art. 59, § 1º, I, II, V, VII, VIII e IX). E essa volta merece aplauso: afinal, exatamente a vigência dessa trintenária lei é que pacificou - como nunca se vira no país - as locações urbanas, a indicar, qual uma bússola, qual é o bom Norte: a vigência de leis justas, bem elaboradas na forma, na origem e no fundo, traz a efetiva paz social.   _____________ Jaques Bushatsky é advogado, foi Procurador do Estado de São Paulo e Juiz do TIT/SP por dois mandatos e chefiou a Procuradoria da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Presidente da Comissão de Locação e Compartilhamento de Espaços do IBRADIM - Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário, fundador e diretor da MDDI - Mesa de Debates de Direito Imobiliário. Autor da obra "Aspectos Principais do Aluguel Comercial" e coautor da obra "Locação Ponto a Ponto" publicada pelo IASP Instituto dos Advogados de São Paulo.
A intitulada Norma de Desempenho (NBR 15.575) trouxe imensurável avanço para o estabelecimento de prazos de garantia na construção civil e um norte para a responsabilidade civil na construção civil. Mas nem todos ainda estão cientes de que o Anexo D (Informativo), da Parte 1, da Norma de Desempenho, será integralmente substituído pelo "Projeto ABNT NBR 17.710 - Edificações - Garantias - Prazos recomendados e diretrizes", que se encontra em consulta nacional até o próximo dia 9/11/22. Os prazos mínimos de garantia para os elementos, componentes e sistemas do edifício habitacional estão em debate pela comunidade técnica, que apresentará novas diretrizes para o estabelecimento de condições e prazos de garantia. A NBR 17.710 ampliará as recomendações e descreverá uma gama maior de elementos e prazos. Em suma, é possível verificar a preocupação da comunidade técnica em tratar de forma mais exaustiva o tema dos prazos de garantia, com vistas a suprir as lacunas que surgiram a partir da abordagem do assunto pela NBR 15.575. De maneira mais didática, o texto em projeto dividiu os prazos de garantia em três tabelas. Na Tabela 1, foram tratados os prazos de garantia elencados pela legislação como obrigatórios. Tratam, basicamente, de falhas de solidez e segurança relacionadas às contenções, fundações, estruturas (sustentação) e estruturas de pisos e sistemas de cobertura. Em princípio, a Tabela 1 adota como legal o prazo de cinco anos, repetindo o prazo previsto no art. 618, do Código Civil, como atualmente vigente. Por sua vez, a Tabela 2 estabelece os prazos de garantia tecnicamente recomendados para os sistemas, componentes e equipamentos abrangidos pelas garantias oferecidas pelo incorporador, construtor ou prestador de serviço de construção. Nela foram tratadas, de maneira bem detalhada, os prazos recomendados para os diversos sistemas de piso, de vedações, de revestimentos, de esquadrias, muros, telhamento, hidráulicos, elétricos, dentre outros. A NBR 17.710 traz ainda uma terceira Tabela, que lista exemplificativamente as falhas aparentes, que devem ser identificadas já no ato da entrega da edificação. Tratando-se de falhas que podem ser facilmente confundidas com situações causadas pelo próprio usuário, a Tabela 3 enumera situações mais corriqueiras, com a preocupação de estabelecer critérios mais objetivos para a aferição da responsabilidade do construtor. Embora deixe claro tratar-se de rol meramente exemplificativo, percebe-se uma preocupação maior com falhas de acabamento que, de fato, podem facilmente ter origem no uso normal do imóvel, como lascamentos e manchas em pinturas e revestimentos, e que podem estar presentes em diversos sistemas da edificação, como em pisos, vedações, forros, sistemas hidráulicos, etc. Os interessados em contribuir devem participar da consulta pública e enviar sugestões ou críticas ao texto até o dia 9/11/22, diretamente pelo site da Associação Brasileira de Normas Técnicas - ABNT. O texto da NBR 17.710 também pode ser obtido no site do SindusconPR.
Por que devemos respeitar as regras? A questão é examinada na obra clássica do Professor Frederick Schauer, em sua obra "Playing By the Rules".  Segundo o Autor, "as regras definem o que está' aberto para a consideração daqueles que decidem, afastando do horizonte destes os fatores que foram suprimidos. Assim, as regras retiram parte do poder daqueles que decidem, vez que os fatores relevantes para a tomada de decisão já foram escolhidos"1. Em matéria tributária, o país concebeu um sistema tributário com regras de competência fixadas na Constituição e regras que estabelecem as hipóteses de incidência na legislação infraconstitucional, tudo para assegurar que a tributação não se desviaria da vontade popular expressada pelo parlamento. O Professor utiliza, em sua obra, um exemplo didático. Por que a legislação de trânsito utiliza regras como o "limite de velocidade é 80km/h" e não prescrição normativa como "não é seguro dirigir acima de 80km/h"? A primeira prescrição não deixa margem para o intérprete, enquanto a segunda contempla variados níveis de compreensão2. Em sede de Direito Tributário, as prescrições normativas são concebidas para eliminar ao máximo a intervenção do intérprete, justamente porque a margem de deliberação lida com valores constitucionais extremamente caros como liberdade e propriedade. É comum identificarmos casos em que as interpretações são feitas de forma além do que está dito na lei. Quando isso acontece, diversos efeitos perversos são identificados, como a ausência de segurança jurídica e os incentivos (ou desincentivos) a determinados comportamentos pelas partes envolvidas. No caso em questão, o debate versará sobre o entendimento de alguns Municípios sobre a possibilidade de cobrar o imposto ITBI quando determinado bem imóvel é integralizado em capital social de pessoa jurídica que permanece, por determinado período, sem receita operacional. Em decorrência desse posicionamento, alguns Tribunais já se manifestaram sobre a temática, conforme será a seguir abordado. Vejamos o que prevê a Constituição sobre a temática. O art. 156, § 2º, inciso I, da CF dispõe sobre a imunidade do ITBI em incorporação de bens ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital social. O texto constitucional adota um estilo detalhista e minudente justamente para excluir qualquer margem de apreciação por parte do intérprete. No entanto, já se pode observar divergência doutrinária. Por exemplo, há quem sustente, como o Professor Kiyoshi Harada, que "a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do §2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I"3. Dito de outra forma, a exceção prevista na parte final do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte do inciso. Dessa forma, reitera-se: a imunidade prevista na primeira parte do dispositivo é incondicional, desde que referente a bens para integralização de capital social4. Esta posição não deve ser desprezada, haja vista que no julgamento do Tema 796 pelo Supremo Tribunal Federal, o Relator, Min. Alexandre de Moraes, adotou o mesmo argumento. Disse o Ministro: "É dizer, a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do § 2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão e extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I"5. Porém, o objeto da presente reflexão reside em saber se uma empresa sem atividade está amparada pela imunidade. Na hipótese de não se admitir que a ausência de atividade autorize a fruição da imunidade, dever-se-ia passar ao questionamento seguinte: na ausência de norma expressa sobre a inatividade, estaria o intérprete autorizado a tributar de forma analógica ou se valendo de presunção? A resposta é evidentemente negativa, pois como já se disse, o exercício da tributação pressupõe a outorga de poder pelo parlamento. Onde não há concessão de competência, não há falar em tributação. Além disso, o Código Tributário Nacional é expresso ao vedar a tributação pelo uso da analogia (art. 108, § 1°). De qualquer modo, admitindo que se pudesse superar todos estes obstáculos, o passo seguinte do intérprete seria criar uma regra não escrita na Constituição, nem prescrita pelo Código Tributário Nacional. Neste momento, ao "criar a norma", o intérprete poderia escolher dois sentidos: (1) a ausência de atividade pressupõe o gozo da imunidade e (2) a ausência de atividade pressupõe o exercício de atividade imobiliária preponderante. Diante dos dois sentidos possíveis, qual seria o mais correto dentro das normas que orientam o sistema constitucional tributário? O art. 37 do CTN, por sua vez, explica a exceção prevista no dispositivo Constitucional acima mencionado. Quando a empresa for pré-existente à integralização do imóvel, aplica-se ao caso o prazo do §1º do art. 37. Quando iniciar suas atividades após a integralização (ou menos de dois anos antes dela), aplica-se ao caso o prazo do §2° do art. 37. Como estamos investigando a hipótese de uma sociedade sem atividade no período, aplica-se, justamente, no art. 37, §2º, do CTN. Vejamos um caso concreto. Determinado cidadão possui um terreno de sua propriedade, registrado em seu nome. Ou seja, quando da sua aquisição, recolheu normalmente o imposto ITBI. Com o intuito de, em momento oportuno, participar de permuta financeira com o referido terreno, o cidadão constitui uma SPE (Sociedade de Propósito Específico). Consequentemente, o imóvel é integralizado no contrato social. Como o cidadão ainda não possui previsão de participar na possível permuta financeira, a pessoa jurídica permanece sem receita operacional. Escoado o prazo previsto em lei, não se verificando qualquer receita na pessoa jurídica, é possível a cobrança de ITBI por parte do fisco? Essa é a pergunta a ser respondida. Conforme pode-se verificar nos referidos dispositivos, inexiste previsão ou mesmo menção à efetiva tributação do ITBI nos casos em que a pessoa jurídica tenha permanecido sem atividade operacional (inativa). Dessa forma, estamos diante do que, há muito, já é debatido perla hermenêutica jurídica: a imposição da "vontade do intérprete". Neste caso, está-se colocando em segundo plano os limites semânticos do texto, até mesmo da Constituição6. Dito de outro modo, o fisco opta por fazer uma "interpretação extensiva" do dispositivo legal, limitando a imunidade constitucional onde não há regra expressa. Em outras palavras, o fisco municipal tributa sem previsão legal. O resultado disso: (um)a subjetividade "criadora" de sentidos. Com isso, havendo adesão por essa interpretação que extrapola os limites semânticos da lei, corre-se o risco de criar uma jurisprudência possivelmente arbitrária, que impõe ao cidadão tributação sem autorização legislativa, o que contraria a legalidade tributária (art. 150, I, da Constituição). A jurisprudência dos Tribunais já vem se posicionando quanto à temática, ainda sem uniformidade. É o caso, por exemplo, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: a 16ª Câmara Cível do TJ/RJ possui posicionamento favorável à imunidade7, enquanto a 6ª Câmara Cível se manifesta em sentido oposto8. A 14ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua vez, possui entendimento que mantém a sua imunidade9. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no mesmo sentido, em decisão recente sobre o tema, posicionou-se favorável à imunidade10. O que nos chama a atenção no caso julgado pela Corte gaúcha foi a aplicação do art. 932 do CPC ao caso: Em Apelação interposta pela empresa contra sentença de improcedência em Ação Anulatória proposta. Em um primeiro momento, o TJ/RS proveu o recurso interposto pela empresa por maioria (2x1), declarando a nulidade do Auto de Lançamento. Como a apreciação jurisdicional não foi unânime, aplicou-se ao caso o art. 942 do CPC. Em decorrência disso, mais dois desembargadores participaram do julgamento. A conclusão dos julgadores foi, por maioria dos votos, dar provimento ao Recurso de Apelação e manter o entendimento de imunidade de ITBI (3x2). Diante dessas circunstâncias, pode-se verificar que essa interpretação extensiva praticada por alguns Municípios vem criando jurisprudência sem trazer segurança jurídica ao tema. Essas situações, por certo, geram externalidades, especialmente negativas. Com a adesão dessa temática por parte de alguns julgadores, o fisco acaba sentindo-se incentivado a insistir com tal interpretação legislativa, mesmo não sendo recepcionada pela maioria dos Tribunais e, muito menos, pela legislação vigente. Assim, "se, em um determinado tribunal, uma das câmaras julgadoras assumir um posicionamento sobre o tema X e outra posicionar-se em sentido contrário a respeito do mesmo tema, todos os interessados em causas semelhantes ver-se-ão incentivados a ir a juízo - tanto os que esperam um julgamento procedente quanto os que esperam um julgamento improcedente. A circunstância de o caso vir a ser julgado por uma ou outra câmara torna-se uma questão de sorte. Em havendo recurso, o sucesso na causa dependerá do sorteio (sorte!) da câmara que será designada para julgá-la"11. Além do aspecto jurídico, os incentivos atingem a tomada de decisão por parte dos agentes, especialmente do fisco. Esse, visualizando a insegurança jurídica criada pelos Tribunais, poderá pautar seu comportamento de forma a continuar insistindo nessa interpretação equivocada da lei12, notadamente porque não há custo para o tomador de decisão. Enquanto o contribuinte corre o risco de sucumbir e arcar com o ônus processual, o(a) secretário(a) da fazenda que orientar sua secretaria a insistir no erro não terá nenhuma repercussão se criar um passivo para o respectivo município. Esse exemplo explica muito a presença do Estado em mais da metade dos litígios que tramitam no país, segundo dados do CNJ. Portanto, seja por razões de eficiência econômica, seja por estrito cumprimento da Constituição, não há como defender uma posição que não encontra amparo legal e ainda por cima estimula a litigiosidade que no Brasil alcance níveis sem comparação no mundo13. ---------- 1 SCHAUER, Frederick. Playing by the Rules - A Philosophical Examination of Rule Based Decision- Making in Law and in Life. Oxford: Clarendon Press, 2002. p. 159. 2 Em seu texto, o professor utiliza o limite de velocidade norte americano de 50 milhas por hora. Adaptamos para o nosso limite de 80km/h para tornar mais clara a compreensão. SCHAUER, Frederick. Playing by the Rules - A Philosophical Examination of Rule Based Decision- Making in Law and in Life. Oxford: Clarendon Press, 2002. p. 4 3 HARADA, Kiyoshi. ITBI: Doutrina e Prática. 3 ed. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021, p. 143. 4 HARADA, Kiyoshi. ITBI: Doutrina e Prática. 3 ed. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021, p. 145. 5 STF, RE 796376, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 05/08/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-210 DIVULG 24/8/20 PUBLIC 25/8/20 6 STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a "letra da lei" é uma atitude positivista? Revista NEJ - Eletrônica. Vol. 15, n. 1, p. 158-173. Jan-abr 2010. 7 CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA DE LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO. ITBI. INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL COM TRANSFERÊNCIA DE PROPRIEDADE DE IMÓVEL. TRANSFERÊNCIA QUE NÃO SE CONCRETIZOU.  INCIDÊNCIA DO ARTIGO 156, §2º, I, DA CRFB/1988. NÃO SE PODE PRESUMIR QUE A INATIVIDADE DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA AUTORA CONFIGURA ILICITUDE.  RECONHECIMENTO DA IMUNIDADE DO ITBI QUE SE IMPÕE. EXTENSÃO DA IMUNIDADE AO OUTRO IMÓVEL. DECLARAÇÃO DE NULIDADE DA NOTA DE LANÇAMENTO 981/12. RECURSO DOS AUTORES PROVIDO. RECURSO DO MUNICÍPIO PREJUDICADO. O fato gerador do ITBI só ocorre no momento da transferência efetiva da propriedade do bem imóvel, com o respectivo registro no cartório imobiliário, o que não ocorreu na espécie. Entendimento do STF no sentido de que "ainda que hipoteticamente confirmada a ausência de atividade econômica, tal circunstância poderia em tese ser atribuída a uma série de eventos, sem que se possa concluir que em todo e qualquer caso possível haveria propósito de desvio ilícito da proteção constitucional". De fato, não restou comprovada nos autos nenhuma ilicitude perpetrada pela sociedade empresária. Recurso da 1ª apelante provido para declarar a nulidade do débito tributário indicado também na Nota de Lançamento nº 981/2012, referente ao ITBI do imóvel situado na Rua Gilberto Amado, 970, apto 102, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Prejudicado o recurso do município. (0013926-55.2014.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). LINDOLPHO MORAIS MARINHO - Julgamento: 21/5/19 - DÉCIMA SEXTA CÂMARA CÍVEL) 8 Direito Tributário. Execução fiscal. ITBI. R$ 26.849,54. Fato gerador. Lançamento do tributo. Execução fiscal. Embargos à execução. Pedido de anulação.  Rejeição. Recurso. Desacolhimento. Alegação de imunidade tributária não verificada. Transferência de bens para integralização de capital social. Incidência do art. 156, §2º, I, da CRFB/1988. Concessão de imunidade sob condição resolutiva de verificação da atividade preponderante. Porém, no período de verificação da atividade a empresa manteve-se inativa. Trecho da sentença: "A regra constitucional visa a facilitar a formação, extinção e incorporação de empresas, protegendo a livre iniciativa e não a mera transferência de titularidade de propriedade imobiliária, ou seja, a finalidade da norma constitucional é fomentar a atividade empresarial, constituindo incentivo ao desenvolvimento econômico nacional". Precedente: (...). A empresa se manteve inativa durante três anos a partir da aquisição do imóvel. Hipótese que não se coaduna com o objetivo almejado pelo constituinte, que foi o de estimular o desenvolvimento de atividades econômicas e sociais para o progresso do país. A imunidade tributária não pode ser um incentivo à ociosidade. (...) 0044213-64.2015.8.19.0001 Apelação Des. Ricardo Rodrigues Cardozo Julgamento:11/04/2017. Desprovimento do recurso. Aplicação do previsto no § 11 do art. 85 do CPC 2015, sendo o valor da condenação a título de honorários advocatícios majorado para mais 5% (cinco por cento) sobre o valor da condenação. (0335640-95.2014.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). NAGIB SLAIBI FILHO - Julgamento: 15/5/19 - SEXTA CÂMARA CÍVEL). 9 APELAÇÃO - AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL - ITBI - Pretensão à concessão de imunidade de ITBI diante da transmissão de bem imóvel para a integralização de capital social - Sentença de procedência - Pleito de reforma da sentença - Não cabimento - Imóvel transferido para a composição de capital social de empresa recém criada - Imunidade que é concedida à empresa que não tem como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição - Verificação da atividade preponderante da apelada que deve considerar os 03 (três) anos seguintes à aquisição dos bens - Empresa que permaneceu inativa desde a sua constituição - Fato que não induz à atividade preponderante que autorizaria a cobrança do tributo - Sentença mantida - APELAÇÃO e REEXAME NECESSÁRIO não providos. (TJ/SP; Apelação/Remessa Necessária 1022171-53.2018.8.26.0114; relator (a): Kleber Leyser de Aquino; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Público; Foro de Campinas - 2ª Vara da Fazenda Pública; data do julgamento: 23/7/20; data de registro: 23/7/20) 10 APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. ITBI. INCORPORAÇÃO DE BENS IMÓVEIS AO PATRIMÔNIO DE PESSOA JURÍDICA. AUSÊNCIA DE RECEITA OPERACIONAL. IMUNIDADE. POSSIBILIDADE. A imunidade tributária constante no art. 156, § 2º, inciso II, da CF, é condicional, sujeita à verificação da atividade preponderante da empresa pelo Fisco. Nesse caso, sendo verificado exercício de atividade preponderante de compra e venda de bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil, deve ser indeferida a imunidade relativa ao ITBI. Hipótese dos autos em que a empresa, porém, não exerceu atividade econômica no período de aferição, não existindo atividade operacional, o que não inviabiliza a concessão da imunidade, visto que não ocorreu a condição resolutiva prevista na legislação federal e estadual. APELAÇÃO PROVIDA. VOTO VENCIDO.(Apelação Cível, Nº 70084853431, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Newton Luís Medeiros Fabrício, Julgado em: 9/4/21) 11 PORTO, Antônio Maristello; GAROUPA, Nuno. Curso de análise econômica do direito. São Paulo: Atlas, 2020, p. 317. 12 PORTO, Antônio Maristello; GAROUPA, Nuno. Curso de análise econômica do direito. São Paulo: Atlas, 2020, p. 317. 13 Diagnóstico da litigiosidade tributária elaborado pelo CNJ, disponível aqui.
O art. 32, § 2º da lei 4.591/64 já passou por diversas transformações legislativas. Quando editada a Lei de Incorporação Imobiliária, o dispositivo aduzia que os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas "serão também averbáveis à margem do registro de que trata este artigo"1. Em 2001, com a edição da MP 2.221/01, o dispositivo foi alterado para determinar a irretratabilidade dos referidos instrumentos, bem como para conferir direito real oponível a terceiros e direito à adjudicação compulsória2. Ao ser convertida na lei 10.931/04, a redação foi brevemente alterada, sem grandes modificações3. O dispositivo cumpria bem o seu papel, sobretudo ressaltando (ainda que desnecessariamente em razão da obviedade) a irretratabilidade do contrato. Por isso causou alguma surpresa quando a MP 1.085/22, determinou a revogação do dispositivo. Alguns colegas, de maneira informal, afirmaram que talvez a ideia do legislador tenha sido adequar o art. 32 § 2º à lei 13.786/18. Isso porque a referida Lei (intitulada como 'Lei dos Distratos'), dentre as suas diversas inclusões, permitiu o exercício do retrato do contrato, com a possibilidade do exercício do direito de arrependimento pelo adquirente (art. 67-A, § 10º) e, portanto, o contrato não seria mais absolutamente irretratável, o que justificaria a revogação. Contudo, em nosso entendimento, não havia qualquer contrariedade entre os dispositivos porque, o art. 67-A, § 12º elucidava a questão declarando que "transcorrido o prazo de sete dias a que se refere o § 10º deste artigo sem que tenha sido exercido o direito de arrependimento, será observada a irretratabilidade do contrato de incorporação imobiliária, conforme o disposto no § 2º do art. 32". O sistema, em nossa opinião, era coeso. O fato é que após a edição da MP 1.085 e a revogação do art. 32 § 2º, parte respeitada da doutrina, a exemplo do Prof. Carlos E. Elias de Oliveira, passou a defender que os contratos referidos no dispositivo não seriam mais irretratáveis, mesmo após o transcurso do prazo do direito de arrependimento. Segundo o autor, teria sido decretado o "fim da irretratabilidade compulsória dos contratos de alienação das unidades autônomas" o que permitiria ao adquirente ficar "livre para resilir o contrato por motivos pessoais (como eventual emergência financeira), sem necessidade de justificativas"4. Respeitosamente, discordamos do posicionamento do colega Carlos Elias de Oliveira. Até porque, embora momentaneamente o art. 32 § 2º tenha sido revogado, nunca houve a revogação do art. 67-A, § 12º, que ainda determina que uma vez transcorrido o prazo conferido para o exercício do direito de arrependimento, o contrato é irretratável. Ademais, a irretratabilidade é de suma importância no âmbito da incorporação imobiliária e foi justamente o principal fundamento para a edição da intitulada Lei do Distrato. Retomemos e relembremos essa questão. É verdade que no âmbito da incorporação imobiliária, embora as partes, regra geral, estabeleçam a irretratabilidade da avença, com o passar dos anos, a jurisprudência passou a permitir a iniciativa unilateral de alguns adquirentes que, embora não apontassem culpa atribuível ao vendedor, buscavam a extinção do contrato de promessa de compra e venda. Na maioria dos casos, eram adquirentes que manifestavam à incorporadora o desejo de extinguir a avença em razão de dificuldades financeiras. A respeito do tema, José Osório de Azevedo Junior5 foi um dos primeiros a tratar da "questão particularmente difícil" para saber "se o próprio compromissário comprador que deixou de pagar o preço pode tomar a iniciativa de dar o contrato por resolvido e pedir a devolução das prestações pagas". A questão, de fato, não era simples de resolver. Se, por um lado, a promessa de venda e compra, assim como os demais contratos em geral é instrumento irretratável, não permitindo a mera desistência, o que fazer nas situações em que o adquirente não possui mais condições de prosseguir adimplindo as prestações? Nesse sentido, nos anos 1990, surgiram os primeiros acórdãos no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que passaram a admitir que mesmo sendo o inadimplemento fato imputável ao devedor, a ação poderia ser de sua iniciativa, porque a imputação seria de culpa e não dolo. Em voto de relatoria do próprio Des. José Osório de Azevedo Junior6, entendeu-se pela possibilidade de "vencimento antecipado do contrato" quando houvesse "motivo eticamente justificável" para a extinção contratual. No mesmo sentido, julgados do Superior Tribunal de Justiça também permitiam a iniciativa do adquirente para extinguir unilateralmente o contrato, com destaques para acórdãos de relatoria do Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior7 que, em sua obra8 também manifestou a possibilidade de o devedor propor ação para resolver o contrato quando fundamentasse o seu pedido na "[...] superveniente modificação das circunstâncias, com alteração da base objetiva do negócio. É o que tem sido feito com muita intensidade relativamente a contratos de longa duração para aquisição de unidades habitacionais, em que os compradores alegam insuportabilidade das prestações". Contudo, referidos julgados eram, nos anos 1990, quase inexpressivos e aplicados, na maioria das vezes, quando havia comprovada impossibilidade de cumprimento das obrigações financeiras dos adquirentes9. Com o passar dos anos, todavia, em algum desvio jurisprudencial, tornaram-se mais comuns as decisões judiciais que permitiam a extinção do vínculo contratual em razão de pleito unilateral formulado pelo adquirente não apenas quando este discordava dos valores envolvidos para retenção, mas, também, em situações em que o comprador se mostrava meramente insatisfeito com a aquisição. Em alguns casos, embora as provas indicassem que o comprador tinha recursos para prosseguir com a contratação, mesmo não havendo inadimplemento do incorporador, a ação era julgada procedente para extinguir o contrato, tal como se fosse uma faculdade dos contratantes seguirem vinculados ao contrato. Nesses termos, fácil identificar julgados que, a exemplo disso, permitiam, a 'resilição unilateral' do compromisso de compra e venda por 'conveniência do comprador'10. Assim, a jurisprudência, sobretudo a partir de 2009, passou a acolher o pedido do adquirente para a extinção do vínculo contratual, sem a necessidade de serem comprovados maiores fundamentos. Em determinada decisão judicial, chegou-se a dizer que "quanto ao desejo de rescindir o contrato, temos que este é garantido a qualquer parte integrante de um acordo, já que ninguém é obrigado a manter-se no cumprimento de um negócio ao qual não mais lhe interessa11". A respeito do tema e em razão dos casos que se avolumavam, algumas súmulas foram editadas. Nesse sentido, cite-se a Súmula 1 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo12, publicada em 2010 e a Súmula 543 do Superior Tribunal de Justiça13, publicada no ano de 2015. Tal como bem pontuado por Francisco Loureiro14, referidas súmulas não deveriam ser interpretadas como permissão para a extinção unilateral do vínculo contratual, como se todo contrato contivesse um direito potestativo de arrependimento sem prazo. Mas enquanto o mercado imobiliário atravessava o 'boom imobiliário' (2008 a 2013, principalmente), os julgados que determinavam a extinção do vínculo contratual sem fundamento não incomodavam sobremaneira os incorporadores: uma vez determinada a cessação contratual, havia enorme mercado de novos adquirentes buscando recomprar a coisa. Assim, além de reter parte do pagamento realizado pelo adquirente, revendiam o bem em bases superiores ao primeiro contrato. Contudo, a partir de 2014/2015, com o agravamento da crise no setor15, os pedidos de extinção contratual dispararam, sem que os incorporadores encontrassem novos interessados em readquirir o bem. A jurisprudência permissiva para a extinção do vínculo contratual passou a trazer maiores prejuízos financeiros às incorporadoras e comprometer o fluxo de caixa dos empreendimentos16. Como se pode imaginar, a possibilidade de o adquirente, após alguns meses da aquisição, simplesmente desistir (havendo ou não justificável motivação) do contrato enquanto a obra encontra-se em andamento, eleva sobremaneira o risco contratual do incorporador17. Na alocação de riscos desse contrato, o incorporador parte do pressuposto que o contrato é irretratável, cabendo apenas a resolução por inadimplemento das partes, com o consequente pagamento dos encargos e multas decorrentes do descumprimento. É a partir da irretratabilidade contratual que o incorporador se obriga perante toda uma coletividade para a construção de empreendimento e entrega de futuras unidades, porque pressupõe que receberá os valores definidos no contrato ao longo do curso da obra. Naturalmente, se a força obrigatória do pacto sofre mitigação, o risco contratual do incorporador é majorado demasiadamente. Se ao longo da construção, por exemplo, um terço ou a metade dos adquirentes resolve, pura e simplesmente, comunicar ao incorporador a desistência do vínculo, requerendo a devolução de parte dos valores pagos, além de o incorporador deixar de receber os valores prometidos pelos adquirentes e que seriam utilizados na execução da obra, ainda ficaria desprovido de recursos caso obrigado à devolução imediata de valores. Evidentemente que a mitigação da irretratabilidade do pacto desnatura a álea normal dos riscos a que o incorporador se sujeitou. Até porque a facilidade de rompimento do contrato permitiu que uma classe de adquirentes passasse a especular a aquisição imobiliária. Assim, quando deflagrada a crise do mercado imobiliário a partir de 2014, diversos compradores pleitearam o desfazimento do vínculo, não em razão de impossibilidade de adimplir o preço, mas por não julgar mais o contrato conveniente. Segundo Francisco Loureiro18, "[...] a jurisprudência se tornou cada vez mais permissiva, admitindo que promissários compradores pedissem a extinção do contrato não por impossibilidade superveniente, mas por mero desinteresse, convertendo hipótese inicial de resolução em resilição". Prevalecendo o entendimento que o referido contrato admite a resilição unilateral, a irretratabilidade do instrumento fica ameaçada e, consequentemente, a sustentação financeira da incorporação imobiliária. Como bem referido por Roberta Maia19, "a irretratabilidade é relevante aos pactos imobiliários justamente para impedir que o adquirente, após fazer contas, concluir que sairia mais barato inadimplir do que cumprir"20. Foi nesse sentido que a lei 13.786/18 foi editada, ou seja, com o objetivo de limitar os inúmeros pedidos de extinção dos contratos ausentes de fundamento, bem como reforçar a irretratabilidade do contrato, nos termos do já mencionado art. 67-A, § 12º da lei 4.591/64. Mas o agravamento da situação financeira dos adquirentes, sobretudo em tempos de pandemia, reascendeu a discussão. Embora exista forte corrente jurisprudencial que defende que as questões pessoais do devedor, seu empobrecimento, sua doença, sua perda de capacidade física ou psíquica, não são admitidas como fundamento para fins de exoneração obrigacional ou mesmo revisão da avença21, por outro lado, no âmbito da incorporação imobiliária, há diversos julgados que autorizam a extinção do contrato, quando o adquirente manifesta impossibilidade de cumprir a avença22. Para nós, o inadimplemento contratual das obrigações dos contratantes no contrato de promessa de compra e venda na incorporação imobiliária é bem definido, ou seja, descumprimento do pagamento do preço (obrigação de dar) e descumprimento relacionado à entrega e construção do empreendimento (obrigação de fazer). Em princípio, a eventual dificuldade do incorporador em seguir com a obra não lhe autoriza pedir a extinção do vínculo. Ultrapassado o prazo de carência e tendo se comprometido a executar a obra, compete ao incorporador entregar as unidades, ainda que tenha que obter crédito extraordinário perante instituições financeiras ou adotar outras medidas (que não comprometam, claro o patrimônio de afetação). Se a mão de obra encareceu, se os insumos para a construção tiveram preços majorados ou se a incorporadora passa por dificuldades financeiras, nada disso, regra geral23, pode alterar a obrigação de entrega da coisa. Para nós, a perda ou diminuição da capacidade financeira empresarial ou o aumento da taxa de esforço no cumprimento obrigacional não podem ser considerados fundamentos para a resolução ou revisão do contrato por onerosidade excessiva24. Da mesma forma, a alegação de dificuldade financeira do adquirente, também em princípio, não lhe permite ter a iniciativa de pleitear a extinção do vínculo. Descumprido o contrato e estando em mora o adquirente, a pretensão para a extinção da promessa será do incorporador, credor da obrigação. Isso porque, ainda que o adquirente esteja em mora, o credor pode manifestar o interesse em manter o vínculo, inclusive entregando a unidade ao adquirente, mas cobrando a dívida via ação judicial correspondente. O fato é que mesmo antes da edição da MP 1.085, sempre houve corrente doutrinária que entendia que em caso de dificuldade para o prosseguimento do pagamento das parcelas do preço, estando ou não em mora, o adquirente poderá ter a iniciativa de propor ação de resolução contratual, desde que comprove que não tem mais condições financeiras de adimplir sua obrigação. O fundamento para tal resolução seria o vencimento antecipado do contrato (anticipatory breach)25 que também evitaria o agravamento do prejuízo do adquirente com a demora no pleito resolutório, além de ser medida que prestigiaria a boa-fé26. Nos contratos em geral, o direito brasileiro vem admitindo o incumprimento antecipado do contrato tal como nos revelam os estudos de Ruy Rosado de Aguiar Júnior27 e Judith Martins-Costa28. O instituto, especificamente na perspectiva do compromisso de compra e venda de imóveis, é analisado por Luiz Philipe Tavares de Azevedo Cardoso. Para o autor, em razão da função social do contrato, o adquirente que se encontra em "impossibilidade relativa" para prosseguir com o pagamento, poderia propor a ação de resolução, estando ou não inadimplente29. Em síntese: o contrato perdeu sua função social ao se deparar um dos contratantes com uma impossibilidade relativa de continuar honrando os pagamentos e, assim, obter definitivamente o bem a que se visava, como também para o outro contratante, que se vê diante de situação de provável ausência de pagamento do que lhe era devido, trazendo-lhe prejuízos evidentes, consistentes na ausência da remuneração correspectiva à prestação que se obrigou, fazendo-o ver frustrada também a finalidade contratual para o que se propusera. Luiz Philipe Tavares de Azevedo Cardoso30 ainda ressalva que "se é o próprio devedor que o alega, sua declaração de inadimplir deve vir acompanhada de alguma impossibilidade de prestar. Se não, sua conduta configura mero arrependimento, violação direta do pacta sunt servanda". Francisco Eduardo Loureiro31 também registra que o fundamento para permitir a resolução do contrato por iniciativa do devedor não é a inconveniência do promitente comprador com o contrato firmado, mas, sim, a comprovada impossibilidade de cumprir a obrigação. Ademais, nesse sentido, o magistrado sugere nova forma de interpretação para a Súmula 543, do STJ32. Muito recentemente, o Superior Tribunal de Justiça permitiu que adquirente de imóvel, que embora adimplente, mas tendo comprovado sua incapacidade para prosseguir no cumprimento da obrigação, tomasse a iniciativa para resolver o contrato de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária por quebra antecipada do contrato, mas sujeitando-se às consequências da lei 9.514/97 pela sua conduta culposa33. Não é objetivo deste artigo tratar da controversa questão envolvendo a possibilidade (ou não) de extinção de contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária. Contudo, verifica-se que o STJ admitiu a possibilidade de o devedor ter a iniciativa para pleitear a extinção do contrato com fundamento na alegação que não teria condições em prosseguir no pagamento, desde que respeitado o rito da lei 9.514/97. Em Portugal, o Supremo Tribunal de Justiça também confere a possibilidade de o contrato ser resolvido antes do prazo quando o promitente comprador apresenta "recusa inequívoca e categórica em cumprir", hipótese em que "a mora converte-se em incumprimento definitivo" e "assiste então, ao promitente comprador o direito de resolver o contrato-promessa [...]"34. Em outro julgado mais recente, o mesmo tribunal confirmou que "a recusa (ou declaração) séria, certa, segura e antecipada de não cumprir (ou o comportamento inequívoco demonstrativo da vontade de não cumprir ou da impossibilidade ante do tempo de cumprir) equivale ao incumprimento (antes do termo), dispensando a interpelação admonitória"35. Naturalmente que o inadimplemento antecipado do contrato na hipótese de empobrecimento implica em atribuição de culpa para o adquirente. Assim, ainda que não esteja em mora, ou seja, mesmo não tendo havido o descumprimento contratual, o instituto do vencimento antecipado pode dar legitimidade para que o adquirente obtenha a resolução do contrato. Contudo, a perda da sua capacidade financeira e consequente impossibilidade de cumprir sua obrigação, tal como já verificado anteriormente, é questão subjetiva do próprio adquirente. Não caberá, portanto, exoneração do vínculo sem culpa, mas, sim, resolução culposa. Assim, nessa hipótese, o adquirente está sujeito às consequências da lei 4.591/64, no que diz respeito ao descumprimento contratual do promitente comprador e aos percentuais legais da cláusula penal (art. 67-A). Para nós, reiteramos que as questões subjetivas do adquirente, a princípio, não importam em redução da cláusula penal, devendo ser aplicadas as consequências referidas. Aliás, justamente em razão de a lei 13.786/18 ter regulado as consequências para a resolução de contrato de promessa compra e venda na incorporação imobiliária, é que se defende a superação da Súmula 543, do Superior Tribunal de Justiça36. Em resumo: na incorporação imobiliária, a manutenção do vínculo é muito relevante para o desenvolvimento da obra, a considerar que os valores pagos pela coletividade são utilizados justamente na construção da edificação. O arrependimento posterior ao prazo legal não confere ao adquirente a possibilidade resilir unilateralmente o contrato. A dificuldade financeira do adquirente pode levá-lo ao inadimplemento absoluto e, nessa hipótese, a resolução culposa do contrato seguirá às consequências da lei 13.786/18. Justamente nesse sentido, parece-nos mais do que acertada a decisão legislativa final que, no apagar das luzes, em razão de emenda apresentada no Senado, resolveu por manter o art. 32, § 2º, da lei 4.591/64, o que, num silêncio eloquente, significa a manifestação cabal da irretratabilidade do referido instrumento e sua importância para a incorporação imobiliária. ---------- 1 O texto original do art. 32, § 2º determinava: "Os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas, serão também averbáveis à margem do registro de que trata êste artigo". 2 O texto do art. 32, § 2º, quando da edição da MP 2.221/2001 dispunha: "Os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas são irretratáveis e, uma vez registrados, conferem direito real oponível a terceiros, atribuindo direito a adjudicação compulsória perante o incorporador ou a quem o suceder, inclusive na hipótese de insolvência posterior ao término da obra". 3 Na edição da Lei 10.931/2004, a redação ficou assim ajustada: "Os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas são irretratáveis e, uma vez registrados, conferem direito real oponível a terceiros, atribuindo direito a adjudicação compulsória perante o incorporador ou a quem o suceder, inclusive na hipótese de insolvência posterior ao término da obra". 4 Segundo o autor: "[...] Revoga-se dispositivo que previa a irretratabilidade dos contratos de alienação de unidades autônomas, norma que se endereçava tanto ao adquirente quanto ao incorporador. Com essa revogação, fica aberto o debate para a retratação do contrato, seja por parte do adquirente, seja por parte do incorporador. Tal nos parece salutar, pois as condições negociais para a retratação serão ajustadas pelas partes, com estipulação de multas. Além disso, o Poder Judiciário tenderá a coibir resilições unilaterais meramente oportunistas das incorporadoras (como as destinadas a revender o imóvel por um preço maior), pois o abuso de direito é um obstáculo à resilição unilateral (artigos 187 e 473 do Código Civil). De mais a mais, com a revogação em pauta, o adquirente fica livre para resilir o contrato por motivos pessoais (como eventual emergência financeira), sem necessidade de justificativas. Antes da revogação, o cabimento da resilição unilateral era objeto de controvérsia". OLIVEIRA, Carlos E. Elias. Análise detalhada da Medida Provisória 1.085/2021 e sugestões de ajustes. Disponível aqui. Acesso em 14.06.2022. 5 AZEVEDO JÚNIOR, José Osório. Compromisso de compra e venda. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 205. 6 Nos termos do julgado: "[...] no caso dos autos, contudo, é certo que o autor não comprovou a impossibilidade da prestação, em termos técnico-jurídicos. Caso contrário, seria viável, em tese, o afastamento de sua responsabilidade, nos termos do artigo 865, 1ª parte, do CC. Assim, fica-se com a afirmação inicial de que o inadimplemento ocorreu por fato imputável ao devedor. Mas a imputação é de mera culpa ao contratar. Não há qualquer sinal de dolo por parte dos autores. Resulta claro dos autos que a negativa de pagamento se deu em razão de empecilhos econômicos e não com finalidades escusas de causar dano ao vendedor, ou por mera malícia de não pagar porque não quer, mesmo tendo meios para tanto, sem risco de ruína. De qualquer forma, a culpa é suficiente para deixar o devedor em situação de responsabilidade. Mas responsabilidade atenuada, sempre que possível, pois resulta claro de todo o sistema do Código de Defesa do Consumidor - e particularmente de seu artigo 53 - que um de seus objetivos é evitar que uma aquisição pouco amadurecida possa levar o adquirente ao desastre econômico". (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível n. 38.024.4/7, j. 18/06/1998, Boletim AASP 2.079). 7 Vide, por exemplo: "[...] a nulidade de pleno direito da cláusula de decaimento, que prevê a perda da totalidade das prestações pagas pelo promissário comprador em caso de inadimplemento, também se reconhece quando a ação é de iniciativa do comprador" (Superior Tribunal de Justiça, REsp 109.331, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, j. 24/02/1997). No mesmo sentido: "O compromissário comprador que deixa de cumprir o contrato em face da insuportabilidade da obrigação assumida tem o direito de promover ação a fim de receber a restituição das importâncias pagas. Embargos de divergência conhecidos e recebidos, em parte". (EREsp 59.870/SP, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 10/04/2002, DJ 09/12/2002, p. 281). 8 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução). 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 2004. p. 165. 9 Nesses termos, vide "O compromissário comprador que deixa de cumprir o contrato em face da insuportabilidade da obrigação assumida tem o direito de promover ação a fim de receber a restituição das importâncias pagas. Embargos de divergência conhecidos e recebidos, em parte". (EREsp 59.870/SP, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 10/04/2002, DJ 09/12/2002, p. 281). 10 "[...] a lei consumerista autoriza a resilição do compromisso de compra e venda por conveniência do comprador (artigos 6º, V, 51, II, 53 e 54). No mesmo sentido vem a Súmula 1 desta corte" (TJSP; Apelação 1037516-86.2014.8.26.0506; Relator (a): Galdino Toledo Júnior; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro de Ribeirão Preto - 10ª Vara Cível; Data do Julgamento: 27/11/2018; Data de Registro: 14/12/2018). 11 TJSP. Processo n. 1075104-84.2014.8.26.0100. 23ª Vara Cível do Foro Central. Analisei a referida decisão em GOMIDE, Alexandre Junqueira. Tempos de incertezas. Fim da vinculação das partes aos contratos? Migalhas. Publicado em 10/12/2015. Disponível aqui. Acesso em: 11 jul. 2021). 12 Súmula 1. "O compromissário comprador de imóvel, mesmo inadimplente, pode pedir a rescisão do contrato e reaver as quantias pagas, admitida a compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário vendedor, assim como com o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem". 13 Súmula 543: "Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador - integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento". 14 Segundo o autor: "Com respaldo em entendimento pretoriano consolidado em duas súmulas de jurisprudência (543 do STJ e 1 do TJSP), passou a se entender, de modo equivocado, que o promitente comprador, ao seu único e exclusivo critério, tem a opção entre executar ou denunciar (desistir) do contrato [...]" (LOUREIRO, Francisco. Alguns aspectos dos contratos de compromisso de venda e compra de unidades autônomas futuras e o Código de Defesa do Consumidor. In: AMORIM, José Roberto Neves; ELIAS FILHO, Rubens Carmo. O direito e a incorporação imobiliária. São Paulo: [s.n.], 2016. Disponível aqui. Acesso em: 13 set. 2021. p. 15). Em outro artigo, o mesmo autor destacou "[...] não se tolera, por exemplo, que determinado promitente comprador, solvente e que reúna recursos para honrar com o pagamento do saldo devedor, simplesmente desista da execução do contrato e peça a sua resolução, porque o negócio deixou de ser economicamente atraente, em virtude da depreciação do preço de mercado atual do imóvel, em confronto com o preço convencionado no momento da celebração, devidamente atualizado". (LOUREIRO, Francisco. Compromisso de compra e venda de unidades autônomas: distinção entre impossibilidade de cumprimento e desistência do adquirente, à luz das Súmulas 543 do STJ e 1 do TJSP. Opinião jurídica 4: direito imobiliário. São Paulo: Secovi-SP, 2016. p. 39). Ainda o mesmo autor, em outra oportunidade, afirmou que "[...] os verbetes da Súmula 1 do TJSP e da Súmula 543 do STJ podem criar a falsa impressão de que o promitente comprador tem o direito potestativo e imotivado de simplesmente denunciar de modo unilateral o contrato de promessa de venda e compra, se este não for mais de seu interesse". (LOUREIRO, Francisco. Três aspectos atuais relativos aos contratos de compromisso de venda e compra de unidades autônomas futuras. In: GUERRA, Alexandre Daranhan de Mello (coord.) Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2018. vol. 2. p. 716). 15 No ano de 2015, o volume de empréstimos para aquisição e construção de imóveis caiu 33%, em comparação a 2014, e teve queda de 36% nas unidades contratadas. Ver mais em: CRÉDITO para casa própria tem queda de 33% em 2015, mostra Abecip. ABECIP na mídia. Publicado em 26/01/2016. Disponível aqui. Acesso em: 10 ago. 2019. 16 André Abelha e Olivar Vitale advertem que em 2015 o índice de pedidos para extinção do contrato (amigável ou judicial) superava 40%, ou seja, de cada cem contratos firmados, quarenta eram extintos por iniciativa dos adquirentes. (ABELHA, André; VITALE, Olivar. Súmula 453 do STJ: por que revisá-la? Revista IBRADIM de Direito Imobiliário. n. 5. dezembro de 2020. p. 29). 17 Como bem referido por Roberta Mauro Medina Maia, "[...] uma vez resolvido o contrato -, estando em ascensão o valor do metro quadrado no contexto anterior à crise iniciada em 2014, o incorporador depositava em juízo o valor das parcelas pagas pelo adquirente, se necessário fosse, após delas deduzir o montante a ser retido em virtude da cláusula penal, e na sequência, alienava a unidade a terceiros. No entanto, a partir de 2014, com o início da crise econômica no país, de modo generalizado, o mercado imobiliário desaqueceu, e o valor do metro quadrado desvalorizou-se. Com isso, diversos adquirentes de unidades autônomas, mesmo adimplentes, optaram por desistir do negócio, por não mais considerá-lo economicamente vantajoso, impondo aos incorporadores que com eles celebrassem o distrato de tais unidades, ou seja, novo pacto, destinado ao desfazimento do anterior". (MAIA, Roberta Mauro Medina. Irretratabilidade e inexecução das promessas de compra e venda: notas sobre a Lei 13.786/2018. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (coord.). Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios. vol. I. Rio de Janeiro: Processo, 2020. p. 557). 18 LOUREIRO, Francisco Eduardo. Incorporação imobiliária e contrato de compromisso de compra e venda em tempos de pandemia da COVID-19. In: MALFATTI, Alexandre David; GARCIA, Paulo Henrique Ribeiro; SHIMURA, Sérgio Seiji (coord.). Direito do Consumidor: reflexões quanto aos impactos da pandemia de Covid-19. Edição especial de 30 anos de vigência do CDC. vol. 2. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2020. p. 530. 19 MAIA, Roberta Mauro Medina. Irretratabilidade e inexecução das promessas de compra e venda: notas sobre a Lei 13.786/2018. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (coord.). Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios. vol. I. Rio de Janeiro: Processo, 2020. p. 554. 20 Ainda segundo a autora: "[...] reduzida a expectativa de auferir lucro com o negócio, era mais conveniente distratá-lo, perdendo até 25% (vinte e cinco por cento) das parcelas pagas em benefício da incorporadora (promitente vendedora), do que ultimar a aquisição do imóvel, suportando a depreciação do metro quadrado e assumindo o custo do condomínio e IPTU de unidade que provavelmente ficaria desocupada: em razão da crise, o estoque de imóveis vagos subiu consideravelmente, fato que contribuiu também para a redução do valor dos aluguéis". (MAIA, Roberta Mauro Medina. Irretratabilidade e inexecução das promessas de compra e venda: notas sobre a Lei 13.786/2018. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (coord.). Inexecução das obrigações: pressupostos, evolução e remédios. vol. I. Rio de Janeiro: Processo, 2020. p. 560). 21 Há corrente jurisprudencial firme cujo entendimento é no sentido de que situações tais como crise financeira, doença ou desemprego não são consideradas fatos que permitem a revisão. A esse exemplo, já se decidiu que "O contrato de financiamento imobiliário se enquadra como tipicamente oneroso e comutativo, sabendo perfeitamente as partes, e de antemão, as obrigações pelas quais se responsabilizam. Logo, sujeitá-lo à aplicação incondicional de correspondência aos recursos do devedor implicaria transformá-lo num contrato aleatório. O agente financeiro passaria a ser uma espécie de securitizador das contingências pessoais a que está sujeito o contratante, o que evidentemente levaria ao desequilíbrio da relação negocial". (TJSP, Apelação Cível 1033949-54.2017.8.26.0114; Relator (a): Gilberto dos Santos; Órgão Julgador: 11ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas - 7ª Vara Cível; Data do Julgamento: 19/07/2018; Data de Registro: 20/07/2018). No mesmo sentido: (TJSP, Apelação Cível 1000921-25.2019.8.26.0438; Relator (a): Maria de Lourdes Lopez Gil; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro de Penápolis - 3ª Vara; Data do Julgamento: 26/11/2019; Data de Registro: 26/11/2019); (TJSP; Apelação Cível 1001548-62.2017.8.26.0191; Relator (a): Miguel Brandi; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Privado; Foro de Ferraz de Vasconcelos - 2ª Vara; Data do Julgamento: 13/11/2019; Data de Registro: 18/11/2019). 22 "[...] Constitui entendimento sedimentado neste Tribunal o direito do promitente comprador rescindir o contrato em decorrência de falta superveniente de condições financeiras, assegurado, neste caso, o retorno ao status quo ante e a retenção de percentual à promitente vendedora de forma a fazer frente aos prejuízos sofridos com gastos de administração, publicidade e pelo tempo de ocupação do bem [...]" (TJSP; Apelação Cível 1013435-98.2018.8.26.0032; Relator (a): Rodolfo Pellizari; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Araçatuba - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/06/2020; Data de Registro: 30/06/2020). No mesmo sentido: COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA - Resolução contratual - Desistência do adquirente por dificuldades financeiras - Possibilidade - Inteligência da Súmula 01 deste E. Tribunal de Justiça - Sentença que reconhece o direito dele de reaver o preço, com retenção, pela alienante, de 20% do que foi pago - Recurso dos autores pretendendo a redução para 10% - Descabimento - Valor fixado na sentença que se afigura razoável para ressarcir os prejuízos da ré - Redução que não se justifica - Recurso desprovido. (TJSP; Apelação Cível 1001417-54.2018.8.26.0320; Relator (a): Marcus Vinicius Rios Gonçalves; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Limeira - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/05/2020; Data de Registro: 13/05/2020) 23 Dizemos regra geral porque, a depender da extraordinariedade do evento, também o incorporador poderia pleitear a revisão do contrato, com fundamento no art. 317, do Código Civil. 24 Havendo patrimônio de afetação e ocorrendo a decretação de falência ou insolvência civil do incorporador, a comissão de representantes também poderá optar em alienar as acessões construídas ou destituir o incorporador (art. 31-F, da Lei 4.591/1964). 25 Como bem apontado por Joana Farrajota, o vencimento é tradicionalmente apontado como "[..] verdadeiro ponto de viragem na vida do crédito, na medida em que corresponde ao momento em que este se torna exigível e, portanto, em que a obrigação deva ser cumprida [...] A doutrina da anticipatory breach vem desafiar essa concepção, afirmando que pode haver incumprimento tanto antes como depois do vencimento da obrigação". Ao tratar da referida teoria no direito inglês, aponta o paradigmático caso Hochster v. de la Tour responsável por influenciar a ordem jurídica inglesa e permitir que a doutrina majoritária entenda que haverá "rejeição clara e definitiva do contrato, realizada seja através de uma recusa de cumprimento seja através da adopção de um comportamento que torne o cumprimento muito difícil ou impossível, antes do vencimento da obrigação, configura uma situação de incumprimento antecipado, conferindo à contraparte o direito de exercer as faculdades que a lei reserva para o incumprimento". (FARRAJOTA, Joana. A resolução do contrato sem fundamento. Coimbra: Almedina, 2015. p. 68 e seguintes). A respeito do tema na doutrina brasileira, cite-se, ainda, SCHREIBER, Anderson. Revisitando a tríplice transformação do adimplemento. In: TERRA, Aline de Miranda Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz (coord.). Inexecução das Obrigações. Pressupostos, evolução e remédios. vol. II. Rio de Janeiro: Processo, 2021. p. 1-40. 26 Mais do que uma medida de boa-fé, João Calvão da Silva afirma que o devedor teria a obrigação de tornar evidente por fatos a intenção e a possibilidade de cumprir pontualmente, sob pena de violar a legítima expectativa ou confiança do credor no adimplemento da prestação. Assim, não apenas o devedor poderia pedir o vencimento antecipado, comprovando que não irá adimplir, como também o credor poderia fazê-lo: "não há razão para manter o credor vinculado, até o vencimento, a uma relação jurídica que, em virtude de declaração séria, certa e segura, ante diem, de não cumprir do devedor". (SILVA, João Calvão da. Sinal e contrato-promessa. 14. ed. Coimbra: Almedina, 2018. p. 128). 27 AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução). 2. ed. Rio de Janeiro: Aide, 2004. p. 123 e seguintes. 28 Segundo Judith Martins-Costa "O chamamento da figura do inadimplemento antecipado, em caráter excepcional (porque excepciona o princípio da pontualidade), exige a presença de três requisitos, todos eles cumulativos e de obrigatória presença, a saber: (a) tratar-se de uma violação grave do contrato, caracterizadora de uma 'justa causa' à resolução; (b) haver plena certeza de que o cumprimento não se dará até o vencimento; (c) agir culposamente o devedor, ao declarar que não vai cumprir, ou ao se omitir quanto à execução do contrato, permanecendo inerte de modo que nada, em seu comportamento, revele a disposição para a prática dos atos de execução". (MARTINS-COSTA, Judith. A recepção do incumprimento antecipado no direito brasileiro: configuração e limites. Revista dos Tribunais. vol. 885. julho de 2009. p. 34). 29 "[...] Em síntese: o contrato perdeu sua função social ao se deparar um dos contratantes com uma impossibilidade relativa de continuar honrando os pagamentos e, assim, obter definitivamente o bem a que se visava, como também para o outro contratante, que se vê diante de situação de provável ausência de pagamento do que lhe era devido, trazendo-lhe prejuízos evidentes, consistentes na ausência da remuneração correspectiva à prestação que se obrigou, fazendo-o ver frustrada também a finalidade contratual para o que se propusera". CARDOSO, Luiz Philipe Tavares de Azevedo. Inadimplemento antecipado do contrato no direito civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 175. 30 CARDOSO, Luiz Philipe Tavares de Azevedo. Inadimplemento antecipado do contrato no direito civil brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2015. p. 42. 31 "A realidade é que o entendimento dos Tribunais, consolidado em centenas ou milhares de Acórdãos e súmulas de jurisprudência, ao afirmarem o cabimento da resolução do contrato de compromisso de compra e venda por iniciativa do promitente comprador inadimplente, partem da premissa da impossibilidade de cumprimento pelo adquirente, e não de sua mera inconveniência. [...] Disso decorre que não se tolera, por exemplo, que determinado promitente comprador, solvente e que reúna recursos para honrar com o pagamento do saldo devedor, simplesmente desista da execução do contrato e peça a sua resolução, porque o negócio deixou de ser economicamente atraente, em virtude da depreciação do preço de mercado atual do imóvel, em confronto com o preço convencionado no momento da celebração, devidamente atualizado". (LOUREIRO, Francisco. Três aspectos atuais relativos aos contratos de compromisso de venda e compra de unidades autônomas futuras. In: GUERRA, Alexandre Daranhan de Mello (coord.) Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2018. vol. 2. p. 718). 32 A sugestão de interpretação da Súmula 543, do STJ, por Francisco Loureiro é a seguinte: "O Compromissário comprador de imóvel, mesmo inadimplente, invocando e demonstrando impossibilidade superveniente do pagamento do preço, que não se confunde com arrependimento ou desinteresse, pode pedir a resolução do contrato e reaver as quantias pagas, admitidas a compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário vendedor, assim como com o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem". (sublinhado no original). (LOUREIRO, Francisco. Três aspectos atuais relativos aos contratos de compromisso de venda e compra de unidades autônomas futuras. In: GUERRA, Alexandre Daranhan de Mello (coord.) Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura, 2018. vol. 2. p. 722). 33 Nesse sentido, RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO DE CONTRATO COM PEDIDO DE RESTITUIÇÃO DE VALORES PAGOS. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL (LOTE) GARANTIDA MEDIANTE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. AUSÊNCIA DE CULPA DO VENDEDOR. DESINTERESSE DO ADQUIRENTE. 1. Controvérsia acerca do direito do comprador de imóvel (lote), adquirido mediante compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia, pedir a resolução do contrato com devolução dos valores pagos, não por fato imputável à vendedora, mas, em face da insuportabilidade das prestações a que se obrigou. 2. A efetividade da alienação fiduciária de bens imóveis decorre da contundência dimanada da propriedade resolúvel em benefício do credor com a possibilidade de realização extrajudicial do seu crédito. 3. O inadimplemento, referido pelas disposições dos arts. 26 e 27 da Lei 9.514/97, não pode ser interpretado restritivamente à mera não realização do pagamento no tempo, modo e lugar convencionados (mora), devendo ser entendido, também, como o comportamento contrário à manutenção do contrato ou ao direito do credor fiduciário. 4. O pedido de resolução do contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária em garantia por desinteresse do adquirente, mesmo que ainda não tenha havido mora no pagamento das prestações, configura quebra antecipada do contrato ("antecipatory breach"), decorrendo daí a possibilidade de aplicação do disposto nos 26 e 27 da Lei 9.514/97 para a satisfação da dívida garantida fiduciariamente e devolução do que sobejar ao adquirente. 5. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. (REsp 1867209/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/09/2020, DJe 30/09/2020). 34 Supremo Tribunal de Justiça, Recurso de Revista n. 08264, Data do acórdão: 07/01/1993. Rel. Sampaio da Silva. 35 Supremo Tribunal de Justiça, Recurso de Revista n. 4913/05, Data do acórdão: 02/04/2010. Rel. Oliveira Rocha. Ainda no âmbito do direito português, Joana Farrajota manifesta que "[...] a maioria da doutrina e jurisprudência nacionais, reconhecendo que a recusa antecipada de cumprimento afecta o regular funcionamento do contrato, é sensível à necessidade de facultar ao credor instrumentos para reagir a esta perturbação antes mesmo do vencimento da obrigação em causa, permitindo-lhe reajustar os planos inicialmente concebidos". (FARRAJOTA, Joana. A resolução do contrato sem fundamento. Coimbra: Almedina, 2015. p. 68 e seguintes). 36 Nesse sentido, vide CHALHUB, Melhim Namem; GOMIDE, Alexandre Junqueira. Resolução de promessas de venda no contexto da incorporação imobiliária. Evolução legislativa e precedentes. Revista IBRADIM de Direito Imobiliário. Ano 3. Dezembro 2020. n. 5. p. 174-190 e ABELHA, André; VITALE, Olivar. Súmula 453 do STJ: por que revisá-la? Revista IBRADIM de Direito Imobiliário. n. 5. Dezembro de 2020. p. 27-48.
Recentemente, escrevemos sobre a incorporação de casas isoladas ou geminadas à luz da nova redação do art. 68 da Lei de Incorporação Imobiliária dada pela lei 14.382/20221. Na ocasião, tratou-se dos aspectos gerais desta nova forma de incorporação imobiliária que tem como objetivo o desenvolvimento de bairros planejados sem que seja constituído o condomínio edilício. Passadas algumas semanas, tem-se a notícia do Primeiro Registro de Incorporação Imobiliária de Casas Isoladas do Brasil2! Esse é um marco relevantíssimo para um novo capítulo no direito imobiliário brasileiro. A um só tempo, o art. 68, reformulado pela lei14.382/2022, ganha vida e traz segurança jurídica aos incorporadores, adquirentes e registradores. O R.4 da Matrícula 107.550 do Registro de Imóveis da Comarca de Tatuí de São Paulo dá conta da incorporação de 450 unidades isoladas com destinação residencial. O projeto imobiliário Nova Tatuí Mais é fruto da nova redação do art. 68 da lei 4.591/64.   O empreendimento imobiliário é da Pacaembu Construtora S.A, que celebrou seus 30 anos de história dedicados a projetos imobiliários de interesse social no Estado de São Paulo e que com este projeto dá o primeiro passo para incorporação de casas isoladas. Já no objeto da incorporação fica evidenciado que não haverá condomínio edilício. Afinal, a regra legal tratada pelo art. 68 dispõe justamente sobre o desenvolvimento imobiliário de unidades isoladas ou geminadas, sem a relação condominial. Em atenção ao §1º do art. 68, o conjunto imobiliário não tem área comum, sendo que todas as áreas de lazer e vias públicas estão conectadas com a cidade, permanecendo sob os cuidados da administração pública municipal. O empreendimento Nova Tatuí Mais está enquadrado como programa de interesse social, no âmbito do Programa do Governo Federal Casa Verde e Amarela, atual programa habitacional sucessor do Programa Minha Casa Minha Vida. Essa incorporação foi originária de um loteamento recentemente registrado, denominado Tatuí Caguassú. O registro do loteamento consta do R.3 da matrícula n. 107.550. Portanto, a realização desta incorporação apenas foi possível como decorrência da edição da Lei n. 14.382/2022, o que revela a importância desta modificação legislativa para o planejamento empresarial e desenvolvimento imobiliário nacional. O Oficial de Registro de Imóveis procedeu com a análise cuidadosa dos requisitos estabelecidos pelo legislador no âmbito do art. 68, a fim de que todas as informações e documentos exigidos constassem no Memorial de Incorporação, com a clareza e objetividade necessárias ao registro e bom desenvolvimento do empreendimento. A esse respeito, veja-se a descrição da metragem de cada lote e a área de construção da casa, bem como as informações relacionadas ao Quadro NBR 12.271. É relevante destacar que a incorporadora, embora dispensada da apresentação da declaração que fixa o prazo de carência ou denúncia (art. 32, alínea "n"), apresentou voluntariamente a referida declaração quando do registro do Memorial de Incorporação. Esta conduta revela a prudência da incorporadora, sendo certo que a possibilidade de ser apresentada a declaração de carência também foi reconhecida como legítima pela 1ª Jornada de Direito Notarial e Registral3. Em linha com o parágrafo 3º do art. 68, a incorporadora sujeitou a incorporação ao patrimônio de afetação, conforme Av. n. 5 da matrícula n. 107.550. A averbação do patrimônio de afetação traz segurança aos adquirentes e ao incorporador, além de permitir a utilização do Regime Especial de Tributação - RET pela incorporadora. Com isso, o incorporador ganha eficiência tributária, na medida em que a totalidade de suas receitas estarão sujeitas à uma alíquota unificada de 4%, compreendendo os impostos e contribuições federais IRPJ, CSLL, PIS e COFINS. A notícia do primeiro registro de incorporação imobiliária de casas isoladas é muito significativa para o setor da construção civil. Eis que agora a lei toma o seu espaço na vida prática de inúmeros incorporadores Brasil afora. Esses empreendedores poderão planejar suas atividades com mais um novo modelo de negócio imobiliário. Essa mudança propiciada pelo art. 68 traz versatilidade, segurança e clareza quanto às regras legais da incorporação de casas. A prateleira de opções dos desenvolvedores imobiliários ganha mais uma ferramenta. Ao lado da incorporação imobiliária tradicional, que originará o condomínio edilício, loteamento urbano, desmembramento, condomínio de lotes etc. tem-se, agora, a figura da incorporação de casas. Assim, entendemos que o desenvolvimento imobiliário de bairros planejados viverá um novo capítulo na história do direito imobiliário brasileiro. Esse é apenas o primeiro de inúmeros empreendimentos que serão objeto de registro. __________ 1 Link para acesso ao texto: A nova incorporação de casas isoladas ou geminadas. 2 Essa é a primeira incorporação que se teve notícia nas pesquisas realizadas com outros registradores de imóveis e com a colaboração de associações do setor. 3 Enunciado da 1ª Jornada de Direito Notarial e Registral. n. 6007: "Na incorporação imobiliária prevista no art. 68 da lei 4.591/64, a dispensa do prazo de carência é faculdade do incorporador, que poderá fixá-lo a fim de exercer eventual direito de denúncia".
A despeito das controvérsias que cercam o tema em referência, gostaríamos de compartilhar informações e reflexões sobre situações cotidianas de grande interesse para a indústria da construção civil, sobretudo para aqueles que se dedicam à atividade de incorporação imobiliária. No que importa para o tema que pretendemos enfrentar, é importante relembrar que a obrigação de pagar as despesas de condomínio era regulamentada pelos arts. 4º, 9º e 12 da lei 4.591/64, e passou a ser disciplinada, após 10 de janeiro de 2003, pelos arts. 1.333; 1.334, I e § 2º, 1.336, I e 1.345, do novo Código Civil (lei 10.406/02). Emerge dos mencionados dispositivos que pode ser considerado condômino não só o proprietário do imóvel (inclusive o promitente vendedor) indicado na matrícula correspondente, mas também, a ele equiparados, o promitente comprador e o cessionário de direito à aquisição, inexistindo na lei, que é a fonte primária do direito, distinção clara quanto à responsabilidade de cada um deles pelo pagamento das despesas condominiais. Diante da lacuna legislativa existente, cabe à jurisprudência estabelecer os parâmetros aplicáveis em cada situação, levando em conta as particularidades do caso concreto, motivo pelo qual ainda persistem muitas dúvidas sobre a questão. E nesse contexto em que prevalecem dúvidas e diferentes interpretações, impõe-se a atuação do Superior Tribunal de Justiça para tentar minimizar a insegurança jurídica que ainda ronda a questão da responsabilidade pelo pagamento das despesas condominiais, na medida em que uma das principais funções da Corte Superior é, justamente, buscar a uniformização da jurisprudência aplicável a determinados assuntos. Por ocasião do julgamento do recurso especial representativo de controvérsia 1.345.331/RS, realizado em 8/4/15 e relatado pelo Eminente Ministro Luis Felipe Salomão, a segunda seção do Superior Tribunal de Justiça, levando em conta as peculiaridades do caso concreto1, consolidou o entendimento (Tema Repetitivo 886) de que a imissão na posse é essencial para que o promitente comprador seja responsabilizado pelo pagamento das despesas condominiais, conforme retratado na ementa do acórdão abaixo reproduzida, para a situação discutida naquela demanda: PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. CONDOMÍNIO. DESPESAS COMUNS. AÇÃO DE COBRANÇA. COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA NÃO LEVADO A REGISTRO. LEGITIMIDADE PASSIVA. PROMITENTE VENDEDOR OU PROMISSÁRIO COMPRADOR. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. IMISSÃO NA POSSE. CIÊNCIA INEQUÍVOCA. 1. Para efeitos do art. 543-C do CPC, firmam-se as seguintes teses: a) O que define a responsabilidade pelo pagamento das obrigações condominiais não é o registro do compromisso de compra e venda, mas a relação jurídica material com o imóvel, representada pela imissão na posse pelo promissário comprador e pela ciência inequívoca do condomínio acerca da transação. b) Havendo compromisso de compra e venda não levado a registro, a responsabilidade pelas despesas de condomínio pode recair tanto sobre o promitente vendedor quanto sobre o promissário comprador, dependendo das circunstâncias de cada caso concreto. c) Se ficar comprovado: (i) que o promissário comprador se imitira na posse; e (ii) o condomínio teve ciência inequívoca da transação, afasta-se a legitimidade passiva do promitente vendedor para responder por despesas condominiais relativas a período em que a posse foi exercida pelo promissário comprador. 2. No caso concreto, recurso especial não provido. (REsp 1.345.331/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, DJe 20/4/15) Mesmo se tratando de recurso especial representativo de controvérsia, é relevante ressaltar que tanto na alínea "b" do item 1 da ementa, quanto no item 2, a própria segunda seção teve o cuidado de registrar a importância de se avaliar as especificidades de cada caso concreto para se aferir se a transferência da posse, gozo ou disponibilidade do bem ao terceiro adquirente, com base nos fatos e provas de cada demanda, é questão fundamental para o julgamento que estiver sendo realizado. A ressalva feita, para além de demonstrar zelo, confirma que temperamentos existem às teses firmadas, inclusive no âmbito do próprio Superior Tribunal de Justiça, diante de circunstâncias especiais que enquadrem outros casos concretos como exceções às referidas teses, em decorrência de suas particularidades fáticas. Por caracterizar exemplo recente de interpretação e relativização das teses firmadas no REsp 1.345.331/RS, merece destaque o acórdão proferido no julgamento do recurso especial 1.847.734/SP, realizado em 29/3/22 e relatado pelo Eminente Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, pelo qual a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça definiu que o promitente comprador deve pagar as taxas condominiais a partir do momento no qual as chaves estavam à sua disposição, quando houver recusa ilegítima em recebê-las. A ementa estabelece: "RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INEXIBILIDADE DE DÉBITO. DESPESAS CONDOMINIAIS. ENTREGA DAS CHAVES. RECUSA. MORA. RESPONSABILIDADE. ADQUIRENTE DO IMÓVEL. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cinge-se a controvérsia a definir a parte responsável pelo pagamento das despesas condominiais quando há recusa do adquirente do imóvel em receber das chaves. 3. O promitente comprador passa a ser responsável pelo pagamento das despesas condominiais a partir da entrega das chaves, tendo em vista ser o momento em que tem a posse do imóvel. Precedentes. 4. A recusa em receber as chaves constitui, em regra, comportamento contrário aos princípios contratuais, principalmente à boa-fé objetiva, desde que não esteja respaldado em fundamento legítimo. 5. O adquirente deve pagar as taxas condominiais desde o recebimento das chaves ou, em caso de recusa ilegítima, a partir do momento no qual as chaves estavam à sua disposição. 6. Recurso especial não provido." Demonstrando sensibilidade às particularidades do caso concreto, o Eminente Ministro Relator, no voto condutor, ponderou que "a resistência em imitir na posse (e de receber as chaves) configura mora da parte adquirente, pois deixou de receber a prestação devida pelo alienante (no caso, a construtora). Nessa circunstância, o art. 394 do CC/2002 deixa claro que se considera em mora o credor que não quiser receber o pagamento e/ou a prestação no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer." O recente precedente mencionado reforça a plausibilidade da tese de que a disponibilidade da posse já é suficiente para que o adquirente passe a pagar as despesas condominiais, nos casos em que a ausência de entrega das chaves da unidade decorrer de falta de quitação integral do preço convencionado. Com efeito, é comum, em promessas de compra e venda de unidades incorporadas, a inserção de cláusulas contratuais dispondo: (i) que o termo inicial da responsabilidade do adquirente pelo pagamento de contribuições condominiais coincide com a data da assembleia geral de instalação do condomínio; (ii) que a obra será considerada concluída pela concessão do respectivo "habite-se"; e (iii) que a incorporadora exercerá regularmente o direito de retenção das chaves previsto no art. 52 da lei 4.591/64 até o recebimento integral do preço ou assinatura de contrato de financiamento. Daí decorre que o fato posse, conforme convenção contratual, nem sempre coincide com o termo inicial de o comprador suportar as despesas de condomínio, pois o recebimento das chaves da unidade, já pronta, disponível e reservada, pode ocorrer bem depois da conclusão da obra, da expedição do "habite-se" e da instalação do condomínio, por fato decorrente de culpa exclusiva do comprador. Isso porque muitas vezes, finalizada a obra, expedido o "habite-se" e instalado formalmente o condomínio, o adquirente incorre em mora ou inadimplemento total relativo ao pagamento da parcela final do preço, não sendo imitido na posse da unidade. Para estes casos concretos específicos, em que o incorporador comprova a ocorrência cumulativa dessas três relevantes particularidades destacadas no parágrafo anterior, parece-nos inteiramente defensável, lícita e razoável, em termos de direito obrigacional, a disposição contratual pela qual o comprador se obriga a satisfazer o pagamento das contribuições condominiais a partir da instalação formal do condomínio, ato subsequente ao "habite-se", pois desde aquela data há plenas condições para o exercício da posse2. Se a entrega das chaves da unidade não ocorre naquele momento, isso se deve à vontade do adquirente ou à existência de parcelas do preço pendentes de pagamento, o que permite o exercício regular do direito de retenção das chaves pelo incorporador que está assegurado no art. 52 da lei 4.591/64. É importante ter em mente que não se pode mesmo confundir a conclusão do empreendimento com a entrega das chaves das unidades a cada um dos adquirentes, na medida em que apenas a primeira depende de esforços exclusivos da construtora para sua caracterização, enquanto a segunda está condicionada ao efetivo cumprimento, pelo adquirente, das obrigações contratuais que assumiu como condição para aquisição do imóvel. A confiança na tese ora defendida, que já vem sendo reconhecida em vários juízos e tribunais do país quando confirmada a ocorrência cumulativa das particularidades que a distinguem, reside, principalmente, nos argumentos de: (i) possibilidade de exercício da posse pelo adquirente adimplente desde a data de instalação do condomínio, sempre que ciente o condomínio da existência do contrato; (ii) necessidade de prevalência da vontade das partes, diante de uma disposição contratual válida e eficaz; (iii) impossibilidade de beneficiar o contratante inadimplente em detrimento daquele que está em dia com suas obrigações contratuais - a mora do adquirente caracteriza a retenção das chaves prevista no art. 52 da lei 4.591/64 como exercício regular de um direito previsto em lei - sob pena de subversão da lógica que rege o princípio da causalidade e de estímulo ao comportamento contraditório; e (iv) coerência da disposição contratual com o estabelecido no art. 395 do Código Civil, segundo o qual "Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado." Nesse contexto, e por força do princípio da causalidade, entendemos que o adquirente de unidade, mesmo quando não imitido efetivamente na posse por não ter pago a integralidade do preço ajustado (ou seja, por culpa exclusiva sua), deve também responder pela obrigação de pagamento das despesas condominiais desde a data que lhe era possível receber as chaves do imóvel, pelos memos motivos jurídicos invocados pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do recurso especial 1.847.734/SP, em que houve recusa injustificada do adquirente ao recebimento das unidades. Assim como ocorreu no acórdão acima mencionado, existem outros litígios em que a data da disponibilidade da posse deve se sobrepor à data de efetiva imissão para que sejam corretamente solucionados, em razão de suas especificidades fáticas comprovadas. O entendimento em referência guarda plena coerência com o recente acréscimo do art. 67-A na Lei de Incorporações (lei 4.591/64), por meio da "Lei dos Distratos" (lei 13.786/18), tendo recebido o aludido dispositivo a seguinte redação: "Art. 67-A . Em caso de desfazimento do contrato celebrado exclusivamente com o incorporador, mediante distrato ou resolução por inadimplemento absoluto de obrigação do adquirente, este fará jus à restituição das quantias que houver pagado diretamente ao incorporador, atualizadas com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, delas deduzidas, cumulativamente: I - a integralidade da comissão de corretagem; II - a pena convencional, que não poderá exceder a 25% (vinte e cinco por cento) da quantia paga. § 1º Para exigir a pena convencional, não é necessário que o incorporador alegue prejuízo. § 2º Em função do período em que teve disponibilizada a unidade imobiliária, responde ainda o adquirente, em caso de resolução ou de distrato, sem prejuízo do disposto no caput e no § 1º deste artigo, pelos seguintes valores: I - quantias correspondentes aos impostos reais incidentes sobre o imóvel; II - cotas de condomínio e contribuições devidas a associações de moradores; (...)" E como vários juízos e tribunais já vêm, com sensibilidade, reconhecendo essas distinções na análise de casos concretos, parece-nos válido o esforço coletivo para que o Superior Tribunal de Justiça afete oportunamente algum recurso especial versando sobre o tema para que seja julgado como representativo de controvérsia, objetivando que seja fixada a tese de validade da disposição contratual que atribui ao adquirente da unidade a obrigação de pagamento das despesas condominiais desde a data em que disponibilizada a posse, nos casos em que a efetiva imissão não ocorra ou seja retardada por ato exclusivo do comprador.
Introdução  A lei 14.382/2022 deu nova redação ao art. 68 da Lei de Incorporação Imobiliária, conferindo tratamento legal adequado à incorporação de casas isoladas ou geminadas. Embora já existisse a previsão legal em seu texto original, havia uma lacuna legislativa que gerava insegurança à sua aplicação prática. Essa falta de clareza foi corrigida pela nova redação. Trata-se, efetivamente, de uma nova forma de incorporação imobiliária, que tem como característica central o desenvolvimento de bairros planejados sem que seja constituído o condomínio edilício. Neste breve texto, trataremos apenas dos pontos centrais do novo art. 68 da lei 4.591/64. A incorporação imobiliária de casas isoladas ou geminadas em lotes de terreno: O desenvolvimento de conjuntos imobiliários O traço característico deste negócio imobiliário tratado pela nova redação do art. 68 é justamente a alienação de lotes urbanos com o acréscimo da construção das unidades habitacionais sem a formação de um condomínio. A concepção do projeto imobiliário diz respeito, essencialmente, a criação de bairros planejados, em que é incompatível a instituição do condomínio edilício, porque não se conseguiria administrar a convivência desta coletividade sob o regime condominial e, ao mesmo tempo, integrá-lo a cidade de maneira estruturada e orgânica. A novidade do art. 68 autoriza que uma das pessoas indicadas no art. 31 art. da lei 4.591/64 ou 2º-A da lei 6.766/79 promova a incorporação imobiliária, sem que dela resulte a formação de um condomínio edilício. As áreas e vias públicas por ele abrangidas se manterão como integrantes do domínio público e não estarão submetidas a um regime condominial. Como se percebe, a atividade do incorporador estará conectada com o próprio planejamento urbanístico das cidades, de maneira que não se trata apenas de uma mera incorporação imobiliária com a criação de uma célula condominial que será acoplada na cidade. Mas existirá uma interface com toda a comunidade adjacente que é integrada a esse novo bairro planejado que se desenvolve, agora, sob o manto da incorporação imobiliária. Esse modelo de negócio empresarial é comum no ambiente dos Programas Habitacionais do Governo Federal, em especial, no âmbito do Programa Casa Verde e Amarela, atual programa habitacional sucessor do Programa Minha Casa Minha Vida. Nesses programas habitacionais onde o empreendimento é implantado em grandes glebas, o empreendedor usualmente desenvolve a concepção do projeto imobiliário sob a roupagem de Loteamento Urbano, porém, agrega a comercialização da unidade residencial como elemento indissociável, uma vez que não seria possível acessar a linha de crédito habitacional, Sistema Financeiro de Habitação ("SFH"), pelo mutuário se não houvesse a comercialização da habitação ao consumidor final. Vale destacar que a incorporação de casas não se destinará apenas aos programas habitacionais, mas poderá ser utilizada em qualquer contexto de desenvolvimento imobiliário, desde que atendidas as regras constantes do art. 68 e, ainda, não necessariamente precisa ser de destinado à habitação, podendo ser aplicável seu regramento também aos estabelecimentos não residenciais, como àqueles de uso misto. A incorporação de casas manterá a integração das áreas públicas junto à municipalidade. As áreas e vias públicas como bens públicos autênticos se juntarão funcionalmente à cidade1. O resultado dessa operação urbanística consiste na geração de áreas que são privativas dos adquirentes e no provimento de áreas públicas, tais como as vias de circulação, logradouros públicos e equipamentos urbanos. Esses bens, efetivamente, passam ao domínio do Município, nos termos do art. 22 da lei 6.766/79 e integram o conjunto de bens da coletividade. O desenvolvimento desta incorporação não pressupõe a prévia promoção do parcelamento do solo pelo empreendedor, de modo que pode promovê-la em loteamento ou desmembramento já previamente implantado. Além disso, é possível a promoção dessa nova modalidade de negócio imobiliário como uma decorrência natural do planejamento empresarial do incorporador, quando da concepção e estruturação deste conjunto imobiliário. Os espaços que integram as áreas institucionais, vias públicas, áreas de lazer, permanecerão sob os cuidados da Administração Pública, não cabendo às unidades originadas da incorporação instituída pelo art. 68 o rateio de despesas pela conservação de tais áreas, ressalvados casos específicos em que sejam desenvolvidos loteamentos de acesso controlado com a criação de associações2. Portanto, a nova redação do art. 68 dada pela lei 14.382/2022 tem clara inclinação para o desenvolvimento de conjuntos imobiliários planejados, deixando evidente a sua correlação com o direito urbanístico das cidades, já que as vias e áreas públicas, aliada aos próprios equipamentos urbanos, ficarão sob o domínio público. Memorial de Incorporação É o registro do memorial de incorporação que confere a habilitação para o incorporador levar a cabo sua atividade empresarial consubstanciada na alienação de lotes vinculados à construção das unidades durante o desenvolvimento do empreendimento. Os documentos que deverão ser apresentados no âmbito do memorial de incorporação desta modalidade de negócio imobiliário são aqueles constantes do art. 32 da lei 4.591/64 e não tem relação com os documentos tratados pelo art. 18 da lei 6.766/79, que dizem respeito ao registro do parcelamento do solo. Dada a particularidade de não serem formadas propriedades comuns, já que as áreas verdes, vias e equipamentos públicos já foram transferidos ao domínio público no registro do parcelamento de solo, o legislador excepcionou os documentos do art. 32 da lei 4.591/64 que não precisam ser apresentados. No ato de registro do memorial, o incorporador deverá indicar a metragem de cada lote, assim como a área de construção de cada casa. Porém, está dispensado da apresentação dos documentos constantes das alíneas e, i, j, l e n, nos termos do parágrafo 2º do art. 68. Aqui vale destacar que algumas alíneas, embora tenham sido dispensadas pelo legislador, poderão ser úteis ao incorporador e aos adquirentes. Assim, é possível que se apresente, por exemplo, a declaração de que trata a aliena "n" do art. 32, que fixa prazo de carência para confirmação ou denúncia da incorporação. Aliás, a sua apresentação revela uma conduta prudente do incorporador. O legislador foi cuidadoso para que o memorial de incorporação seja tão completo quanto necessário à consecução deste negócio imobiliário, dispensados os documentos que não serão apresentados, porque incompatíveis com as características desta incorporação. O Oficial de Registro de Imóveis deve exercer o controle destes de documentos para permitir a regularidade da incorporação de casas, mas é preciso reconhecer que, neste primeiro momento, será importante a atuação conjunta e cooperativa do Oficial de Registro de Imóveis junto aos incorporadores, a fim de que não seja obstado o próprio desenvolvimento imobiliário que foi prestigiado pelo novo art. 68. Registro da Incorporação, patrimônio de Afetação e o RET O parágrafo 3º do art. 68 trata sobre o registro do memorial de incorporação na matrícula de origem em que tiver sido assentado o registro do parcelamento do solo, vinculando determinados lotes ou a sua totalidade à construção das casas. O legislador deixou expresso que esta incorporação também poderá ser submetida ao patrimônio de afetação, estabelecido pelo art. 31-A e art. 2º da lei n. 10.931/2004, trazendo segurança aos adquirentes e ao próprio incorporador. A sujeição desta incorporação ao regime do patrimônio de afetação se dá pelo fato de ter sido caracterizada a atividade como incorporação imobiliária. Logo, fica evidente o tratamento legal, nos termos do art. 2º, II e art. 31-A da Lei n. 10.931/2004, com as mudanças promovidas na lei 4.591/643. O patrimônio de afetação tem como objetivo central segregar os riscos diretamente atrelados ao empreendimento4. Os ativos segregados ficam afetados à finalidade do desenvolvimento do empreendimento e, para tanto, são afastados dos riscos e obrigações relativos às demais atividades que não digam respeito ao objeto de afetação5. A técnica da afetação visa permitir o atingimento das finalidades da incorporação, evitando que os bens sejam desvirtuados ou alcançados por execuções de credores não vinculados ao patrimônio afetado6-7. Ao mesmo tempo, resguarda os interesses de toda a rede de contratos em torno da operação imobiliária, contribuindo para o fomento da atividade da construção civil ao tempo em que se protegem os adquirentes e demais credores. Uma vez permitida a afetação da incorporação imobiliária de casas, é natural que se reconheça a possibilidade de utilização do Regime Especial de Tributação - RET, desde que tenha sido averbado o patrimônio de afetação na matrícula da incorporação, nos termos do §3º do art. 68 da lei 4.591/64. O RET não é um tributo propriamente, mas uma forma de recolhimento aglutinado de tributos federais pelo pagamento de uma alíquota predefinida pela legislação quanto à receita mensal recebida. Essa sistemática de tributação é exclusiva àquelas incorporações imobiliárias que tenham sido submetidas ao patrimônio de afetação. Com a adoção do RET, o incorporador usufruirá de uma alíquota unificada para pagamento da totalidade de suas receitas mensais, no montante de 4% e que envolve os impostos e contribuições federais IRPJ, CSLL, PIS e COFINS, enquanto no Lucro Presumido esta alíquota é de 6,73%, de maneira que existe uma maior eficiência tributária com a adoção do RET. O RET possui semelhanças como lucro presumido e não admite a utilização de prejuízos fiscais, tampouco compensações ou deduções. O RET da incorporação vigerá até o recebimento integral do valor das vendas das unidades que compõe o memorial de incorporação, independentemente da data em que ocorra a sua comercialização8. Emolumentos: registros, averbações e o art. 237-A da lei 6.015/73 O legislador também foi atento quanto aos emolumentos. Assim, cuidou de submeter a incorporação de casas ao regramento previsto no art. 237-A da lei 6.015/73, que tem como objetivo a redução de custos atrelados ao desenvolvimento imobiliário, sem descuidar do respeito a formalidade dos atos registrais, bem como sem onerar demasiadamente o empreendedor e o adquirente e, ainda, sem atentar contra a qualidade e a justa remuneração dos serviços dos registradores. Desta maneira, considerando o contexto do registro do parcelamento do solo e mesmo desta incorporação do conjunto imobiliário, o legislador estabeleceu que a cobrança será feita como ato único, e não como múltiplos atos, com fundamento no art. 237-A da Lei de Registros Públicos, garantindo-se o desenvolvimento imobiliário economicamente sustentável, já que a cobrança como múltiplos atos inviabilizaria financeiramente a incorporação de casas. Conclusão  Esse artigo teve como objetivo analisar brevemente a incorporação de conjuntos imobiliários à luz da nova redação do art. 68 da lei 4.591/64, dada pela lei 14.382/2022, com destaque para os principais aspectos legais desta nova modalidade de incorporação, bem como tratou da sua interface com a Lei do Parcelamento do Solo e Lei de Registros Públicos. Bibliografia ABELHA, André. Direito imobiliário: reflexões atuais. Porto Alegre: Paixão, 2021. CHALHUB, Melhim Namem. Da Incorporação Imobiliária. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. MIRANDA, Victor Vasconcelos. TAKEISHI, Sandra Caparelli. Incorporação Imobiliária: O Planejamento Contratual, as suas Garantias e os Riscos da Recuperação Judicial do Incorporador. 4ª ed. Junho/2020. São Paulo: Revista IBRADIM de Direito Imobiliário, 2020. p. 249-273. NIEBUHR, Pedro. Parcelamento do Solo Urbano in: Curso de Direito Imobiliário. Coordenador Marcus Vinícius Motter Borges. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Os Direitos do Compromissário Comprador diante da Falência ou Recuperação Judicial do Incorporador de Imóveis. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais | vol. 76/2017 | p. 173 - 193 | abr. - jun. / 2017 | DTR\2017\1648. __________ 1 NIEBUHR, Pedro. Parcelamento do Solo Urbano in: Curso de Direito Imobiliário. Coordenador Marcus Vinícius Motter Borges. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021 p. 305. 2 A possibilidade de estabelecimento de loteamentos de acesso controlado veio à tona com a modificação implementada pela Lei n. 13.465/2017, que alterou a redação do art. 2º, inserindo o §8º, na Lei n. 6.766/79. No entanto, para sua correta utilização faz-se necessária autorização municipal. Confira-se: art.2º, §8º: "Constitui loteamento de acesso controlado a modalidade de loteamento, definida nos termos do § 1o deste artigo, cujo controle de acesso será regulamentado por ato do poder público Municipal, sendo vedado o impedimento de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente identificados ou cadastrados". 3 Art. 2º A opção pelo regime especial de tributação de que trata o art. 1º será efetivada quando atendidos os seguintes requisitos: II - afetação do terreno e das acessões objeto da incorporação imobiliária, conforme disposto nos arts. 31-A a 31-E da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964. Art. 31-A A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes. 4 CHALHUB, Melhim Namem. Da Incorporação Imobiliária. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p.85. 5 ABELHA, André. Direito imobiliário: reflexões atuais. Porto Alegre: Paixão, 2021. Passim. 6 Em idêntico sentido Cf.: SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Os Direitos do Compromissário Comprador diante da Falência ou Recuperação Judicial do Incorporador de Imóveis. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais | vol. 76/2017 | p. 173 - 193 | abr. - jun. / 2017 | DTR\2017\1648. 7 Cf.: MIRANDA, Victor Vasconcelos. TAKEISHI, Sandra Caparelli. Incorporação Imobiliária: O Planejamento Contratual, as suas Garantias e os Riscos da Recuperação Judicial do Incorporador. 4ª ed. Junho/2020. São Paulo: Revista IBRADIM de Direito Imobiliário, 2020. p.249-273. Passim. 8 Havia grande discussão fiscal acerca do momento em que se encerrava o RET. Para encerrar a controvérsia, o legislador inseriu pela lei n. 13.970/2019 o Art. 11-A, que dispõe: "O regime especial de tributação previsto nesta Lei será aplicado até o recebimento integral do valor das vendas de todas as unidades que compõem o memorial de incorporação registrado no cartório de imóveis competente, independentemente da data de sua comercialização, e, no caso de contratos de construção, até o recebimento integral do valor do respectivo contrato".
quinta-feira, 28 de julho de 2022

O que muda no recurso especial?

1. Introdução No dia 15/7/22, foi publicada a EC 125/22, fruto da aprovação da proposta de EC 39/21, pela Câmara Federal, após prévia aprovação no Senado. Tal emenda modificou o art. 105, da CF/88, acrescentando novas regras ao juízo de admissibilidade do recurso especial. Trata-se de medida que contou com forte apelo de membros do Poder Judiciário, especialmente do próprio STJ, pois confiam que as novas regras auxiliarão a Colenda Corte a gerir melhor o problema relacionado ao grande volume de recursos que todo ano ascende ao Tribunal Superior. O objetivo do presente artigo é analisar, em termos gerais, as motivações que levaram a promulgação da EC 125/22, as novidades efetivamente implementadas ao juízo de admissibilidade do recurso especial e, a partir disso, refletir sobre os possíveis impactos que as novas regras trarão na condução dos processos judiciais doravante. 2. A motivação da proposta de EC 39/21, que originou a EC 125/22 A proposta de EC 39/21 teve como objetivo primordial reduzir o número de recursos especiais que chegam ao STJ e contou com amplo apoio dos ministros integrantes da Corte. O ministro Humberto Martins, atual presidente do STJ, em entrevista recente, assentou que "a aprovação da PEC contribui para a missão do tribunal e para o melhor funcionamento de todo o sistema de Justiça, pois possibilita ao STJ exercer de forma mais efetiva o seu verdadeiro papel de firmar teses jurídicas para pacificar o entendimento quanto às leis federais".1 Vale registrar que, dada a função constitucional do STJ - de processar e julgar em última instância os recursos especiais2 voltados contra acórdãos dos Tribunais de Justiça, proferidos em violação a expressa disposição de lei Federal, ou que conduzam a interpretação da lei de modo diverso da conferida por outro tribunal -3, a implementação de um requisito de admissibilidade mais rigoroso ao recurso especial, que, na prática, restringe (talvez até drasticamente) esse exercício constitucional da Corte Superior, somente poderia ser implementada mediante proposta de EC. Lição, aliás, que o legislador trabalhista, ao introduzir o inconstitucional art. 896-A, §1º na CLT, não se atentou4. A proposta de EC 39/21 foi aprovada pelos deputados federais no último dia 13/7, e, no último dia 15/7, foi publicada a EC 125/22, da qual se originou, tornando vigente as adequações que vamos abordar no presente artigo. 3. Da série de medidas anteriores que também visaram combater a 'crise' dos recursos nos Tribunais Superiores Não é a primeira vez que o legislador constituinte estabeleceu regras com vistas a reduzir o trabalho dos Tribunais Superiores. Aliás, podemos com tranquilidade dizer que a própria criação do STJ, por força da CF/88, a rigor, foi uma medida com esse viés, uma vez que  pensada para reduzir o volume de recursos que à época tramitavam exclusivamente perante o STF, o qual, desde a reforma constitucional de 1926, reunia a competência para processar e julgar recursos interpostos, tanto contra acórdãos que perpetrassem violações a norma constitucional quanto infraconstitucional5. Até poderíamos retroceder mais e registrar que, na famigerada Carta Constitucional Militar de 1969, por meio da EC 7/77, já existia o requisito da "arguição de relevância"6, também filtro de admissibilidade subjetivo para o então recurso extraordinário e que, ironicamente, por não ter sido considerado compatível com os ideais democráticos da CF/88, acabou sendo revogado na ocasião de sua promulgação, como bem ressalta Bruno Dantas: "A arguição de relevância veio a ser totalmente eliminada do sistema com a promulgação da Constituição de 1988. Diante da pecha de antidemocrático, o instituto sucumbiu à sede de mudança que guiava o constituinte de 1988. A ideia de que o produto dos vinte e um anos de ditadura militar deveria ser, tanto quanto possível, banido do cenário nacional foi determinante para o ocaso da arguição de relevância"7 Mas, olhando novamente para o cenário normativo pós CF/88, não há como deixar de citar a grande inspiração da EC em estudo, o requisito da "repercussão geral" aos recursos extraordinários, introduzido no ordenamento jurídico por meio da EC 45/04. A partir de sua vigência, os recursos extraordinários, para serem admitidos perante o STF, passaram a ter de demonstrar em seu bojo que conduziam à apreciação da Corte Suprema temas com "repercussão geral"8, compreendidos como aqueles que demandassem interesses além das partes litigantes, com ampla repercussão social, jurídica, política ou econômica. O legislador infraconstitucional, ao longo das últimas décadas, também municiou o Poder Judiciário com instrumentos processuais que objetivassem reduzir o volume de recursos distribuídos nos Tribunais Superiores. Nesse contexto, merece destaque a lei 11.418/06, responsável por introduzir os artigos 543-A, B e C, ao CPC/73, os quais, por sua vez conferiram maiores contornos ao requisito de admissibilidade da "repercussão geral" e ainda introduziram no ordenamento jurídico, perante o STJ, a figura dos julgamentos de recursos especiais repetitivos. Por meio dessa sistemática de julgamento, o STJ passou a poder selecionar recursos que veiculassem temas bastante debatidos no judiciário e com pretérita construção jurisprudencial da Corte (daí o termo 'repetitivos', e não 'ineditivos', como em obra específica já tivemos a oportunidade de ressaltar9) e, por meio de um único julgamento de mérito, firmar orientação jurisdicional que deveria doravante ser seguida pelos magistrados de todo o país ao julgarem processos semelhantes. Ainda dentro do contexto normativo infraconstitucional, muito importante citar também o CPC de 2015 (lei 13105/15), que, em uma benfazeja evolução do sistema processual anterior, refinou o modelo de julgamentos repetitivos, estabelecendo efeito vinculante para suas decisões10 e até mesmo implementou um verdadeiro 'sistema de precedentes', na medida em que introduziu no ordenamento jurídico as figuras do incidente de assunção de competência11 e, no âmbito regional, do incidente de resolução de demandas repetitivas12. Há quem entenda - este autor inclusive - que, a rigor, a demanda por melhor controle do fluxo de recursos direcionados ao STJ, a qual motivou a edição da EC ora em estudo, já estaria bem equacionada com essas reformas introduzidas pelo CPC de 2015. Sem contar as mais recentes medidas regimentais adotadas pela Corte Superior, tais como a análise mais criteriosa dos requisitos 'clássicos' de admissibilidade13, pelo órgão veiculado a presidência, no momento de autuação do recurso especial, ou mesmo a implementação do "plenário virtual"14 órgão por meio do qual, desde 201615, a Corte Superior passou a concentrar o julgamento de agravos internos e embargos de declaração. A aparente equalização da crise dos recursos especiais pôde ser constatada inclusive pelos dados mais recentes do próprio STJ, divulgados no último 01 de julho16, ocasião na qual noticiava-se que a Corte conseguira, no primeiro semestre de 2022, julgar uma quantidade maior de recursos do que o número de novas distribuições. Segundo a matéria, teriam sido registrados 296.224 processos julgados, contra 208.118, de processos distribuídos. Uma taxa de 142% de cumprimento da meta do CNJ! Um feito e tanto, e que, a rigor, parecia transmitir a ideia de que, enfim, o problema estaria solucionado ou ao menos bem encaminhado. Ainda assim, entretanto, prosseguiu-se a tramitação da proposta de EC 39/21, culminando com sua aprovação e publicação da consequente EC 125/22. De modo que, concordemos ou não, é fato que agora as novas regras de admissibilidade para o recurso especial "estão entre nós" e todos os operadores do Direito, em especial os que militam perante o STJ, terão de se adaptar ao novo paradigma. Confira a íntegra do artigo.  _____ 1 _________, Notícias STJ - "Câmara dos Deputados aprova texto definitivo da PEC da Relevância", publicado em 14/7/22, link: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/14072022-Camara-dos-Deputados-aprova-texto-definitivo-da-PEC-da-Relevancia.aspx - acesso realizado em 16/07/22. 2 Art. 105, III, da CF. 3 E, claro, ainda que em menor frequência, contra acórdãos que julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal, nos termos do art. 105, III, "b", da CF/88. 4 Trata-se de dispositivo cujo caput foi inserido na Consolidação das Leis do Trabalho em 2001, por meio da Medida Provisória 2.226/01 e que depois ganhou maiores contornos em 2017, por meio da edição da lei 13.467/17. Referidas normas estabeleciam, sem amparo na Constituição Federal, que o Tribunal Superior do Trabalho somente poderia conhecer e julgar 'Recursos de Revista' que discutissem teses que oferecessem 'transcendência', sendo tal conceito compreendido pela própria lei como aquele que gerasse reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica. Para maiores detalhes sobre esse polêmico requisito de admissibilidade dos 'Recursos de Revista', recomendamos a leitura do artigo jurídico de Ricardo Calcini e Murilo Soares, junto ao repositório Consultor Jurídico. 5 José Afonso da Silva sustentava que a chave para a crise do recurso extraordinário passava "por uma reforma constitucional, no capítulo do Poder Judiciário Federal, com o fim de redistribuir competências e atribuições dos órgãos judiciários da União" SILVA, José Afonso da. Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1963, p. 454. 6 art. 119, §1º, da CF/69 dispunha: "§ 1º As causas a que se fere o item III, alíneas a e d, deste artigo, serão indicadas pelo Supremo Tribunal Federal no regimento interno, que atenderá à sua natureza, espécie, valor pecuniário e relevância da questão federal". 7 DANTAS, Bruno. Repercussão geral: perspectivas histórica, dogmática e de direito comparado: questões processuais. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. 8 Art. 102, §3º, da CF. 9 GONZALEZ, Anselmo Moreira, "Repetitivos ou 'Ineditivos'? Sistematização dos Recursos Especiais Repetitivos", Ed. JusPodivm - 2020 - São Paulo. 10 Art. 927 e incisos, do CPC/15. 11 Art. 947, do CPC/15. 12 Artigo 976, do CPC/15. 13 Ex: tempestividade, poderes de representação, preparo, prequestionamento, óbices a súmula 7 e 83, STJ. 14 vide. art. 184-A, do RISTJ. 15 Data na qual entrou em vigor a Emenda Regimental nº 27/16, que introduziu o art. 184-A, parágrafo único e incisos, ao RISTJ. Para mais detalhes, recomenda-se a leitura do artigo jurídico disponibilizado no repositório jurídico Migalhas, acessível aqui. 16 Cide Notícia STJ - "STJ Encerra primeiro semestre de 2022 julgando quase 90 mil processos a mais do que os distribuídos" - acessível aqui, matéria do próprio STJ de 2022.
Os operadores do Direito (ao menos, em grande parte) buscam, a todo o momento, uma maior segurança jurídica das decisões judiciais proferidas, especialmente no que diz respeito aos Tribunais Superiores. Por exemplo, quanto maior o grau de segurança e de previsibilidade jurídica proporcionada pelo sistema, mais azeitado o fluxo de relações econômicas. A relação entre segurança, previsibilidade e funcionamento do sistema é razão determinante para a tomada de decisão entre os players do mercado1. No mercado imobiliário, essa premissa não é diferente. Nessa busca constante por uma maior segurança jurídica, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, recentemente, no REsp n. 1.958.062/RJ, que a sociedade de propósito específico (SPE) com patrimônio de afetação, próprio para um determinado empreendimento imobiliário, não se sujeita aos efeitos da ação de recuperação judicial. Tal decisão é fundamental para trazer maior segurança ao mercado imobiliário e beneficia, diretamente, o consumidor final (adquirente da unidade imobiliária, por exemplo) que terá a garantia e a segurança de que o empreendimento fruto daquela SPE não sofrerá os efeitos da recuperação judicial. Para melhor entendermos a decisão proferida, dois pontos devem ser elucidados ao leitor, como o conceito de SPE e sua finalidade; e o conceito de patrimônio de afetação e suas consequências jurídicas. A prática imobiliária já nos mostra no cotidiano que cada negócio imobiliário usualmente é representado por uma empresa individualizada, de forma a destacar e separar os seus resultados, em consonância às suas características e particularidades, sendo recomendada a estruturação por meio das popularmente chamadas SPEs (Sociedades de Propósito Específico), uma para cada empreendimento2. Essa modalidade permite que pessoas e/ou empresas que não possuem, habitualmente, relação societária, possam criar uma empresa para cumprir determinada atividade específica. Sua grande vantagem (além dos benefícios tributários) é a possibilidade de individualizar a receita, as despesas e as responsabilidades inerentes à atividade a ser executada. Como bem dissertam Alexandre Tadeu Navarro Pereira Gonçalves e Rodrigo Antonio Dias, a SPE é empresa "destinada para uma obra ou uma operação específica, que já nasce com objeto e prazo de duração pré-determinados, visando exclusivamente o cumprimento daquele objeto, inclusive com a eventual participação de outros investidores ou parceiros"3. Dessa forma, os riscos da operação ficam segregados das obrigações próprias das demais empresas e negócios, dos sócios pessoas físicas (ou jurídicas) e das demais SPEs. E é essa segregação que, reduzindo os riscos da operação, permite uma maior facilidade na obtenção de recursos junto às instituições financeiras, maior flexibilidade junto aos fornecedores e prestadores de serviços de cada empresa. Essa concepção trazida das SPEs possui relação direta com a ideia de afetação, trazida pelos artigos 31-A a 31-F da lei 4.591/64. Melhim Namem Chalhub dispõe que o conjunto de direitos e obrigações de um empreendimento imobiliário fique segregado, tendo a exclusiva finalidade de conclusão da obra e entrega das unidades aos futuros adquirentes4. A partir dessa mesma ideia de segregação (também existente no conceito de SPE já trabalhado no presente artigo), vem o conceito de "patrimônio de afetação", que visa proteger a incorporação afetada contra os riscos patrimoniais de outros negócios da empresa incorporadora, para que seus eventuais insucessos em outros negócios não interfiram na estabilidade econômico-financeira da incorporação afetada5. Essa é a ideia trazida no art. 31-A da lei 4.591/64. No que diz respeito à temática específica do presente artigo, qual seja, a incidência (ou não) dos efeitos da recuperação judicial da incorporadora em face da SPE constituída que está executando empreendimento sob o regime de afetação, passemos agora às devidas considerações. O regime de afetação foi inserido na Lei da Incorporação (Lei n. 4.591/64) em 2004, pela lei 10.934. Por isso, não existe menção expressa sobre o procedimento da recuperação judicial, que foi instituído em nosso ordenamento jurídico no ano seguinte, pela lei 11.101/2005. A Lei da Incorporação, no entanto, faz menção expressa ao processo falimentar no art. 31-F: "Os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação". Para Melhim Namem Chalhub, a inexistência de expressa menção ao processo de recuperação judicial na legislação específica (Lei n. 4.591/64) não compromete a subsistência das incorporações imobiliárias afetadas, que poderão prosseguir sua atividade com autonomia protegidas pelo regime da incomunicabilidade, que vincula suas receitas à execução da obra e liquidação do passivo do empreendimento imobiliário e veda seu direcionamento para fins diversos dessa destinação6. Essa concepção está muito bem descrita no voto do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, nos autos do REsp n. 1.958.062/RJ: "No referido julgado, ainda que não se tenha proclamado a absoluta impossibilidade de submissão das SPEs com patrimônio de afetação ao regime de recuperação judicial, ficou assentado que o patrimônio afetado não pode ser contaminado pelas outras relações jurídicas estabelecidas pelas sociedades do grupo (...)". No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, em 2018, a Quinta Câmara Cível analisou caso semelhante, em que também foi reconhecida a impossibilidade de comunicação do patrimônio envolvido no processo de recuperação judicial e os empreendimentos submetidos à afetação7. Pode-se concluir, por conseguinte, que as sociedades de propósito específico que não administram patrimônio de afetação podem utilizar o instrumento da recuperação judicial. Nestes casos, conforme elucidou o Superior Tribunal de Justiça, impossibilita-se a utilização da consolidação substancial (art. 69-J da lei 11.101/2005), tendo em vista que a sociedade de propósito específico "tem sua razão de ser na execução de um objeto social único, evitando a confusão entre o seu caixa e as obrigações dos diversos empreendimentos criados pela controladora", não se mostrando possível a reunião de ativos e passivos com os das outras sociedades do grupo. A dúvida paira, entretanto, sob as sociedades de propósito específico que administram patrimônio de afetação, mas que possuem outros bens existentes em seu patrimônio total. Embora esta hipótese não seja recorrente na prática, há a possibilidade de que o patrimônio de afetação seja apenas parte do patrimônio total de uma SPE. Neste caso, respeitada a segregação patrimonial do patrimônio de afetação, torna-se possível o acesso de sociedade de propósito específico à recuperação judicial. Isso porque o art. 50 da lei 11.101/05 cita diversos meios de recuperação judicial, que, em negociação coletiva entre devedor e credores, poderão ser utilizados para reestruturação da atividade empresária. A análise deverá ser feita, portanto, casuisticamente; rememorando-se, todavia, que o patrimônio de afetação, em qualquer destas hipóteses, deverá ser segregado e não se sujeitará aos efeitos da recuperação judicial. __________ 1 FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. 2 GONÇALVES, Alexandre Tadeu Navarro Pereira; DIAS, Rodrigo Antonio. Tributação das Operações Imobiliárias. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 283. 3 GONÇALVES, Alexandre Tadeu Navarro Pereira; DIAS, Rodrigo Antonio. Tributação das Operações Imobiliárias. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 283. 4 CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 95. 5 CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 95. 6 CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 144. 7 AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CRÉDITOS ORIUNDOS DE CONTRATOS EM QUE FOI CONSTITUÍDO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO. AUSÊNCIA DE SUJEIÇÃO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. 1. No presente caso, recai a controvérsia sobre a sujeição (ou não) de créditos oriundos de contratos em que se constituiu patrimônio de afetação sobre empreendimentos de empresa em recuperação judicial. 2. Nesse contexto, ao que se extrai da análise da legislação aplicável e das alegações vertidas pela parte recorrente, impõe-se a manutenção do entendimento do Juízo de Origem de que, em observância aos princípios norteadores tanto da Lei nº 4.591/1964 quanto da Lei nº 11.101/2005, os créditos objetos dos autos não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, mesmo perante a inexistência de Sociedade de Propósito Específico e que não se tenha previsão específica para os casos de recuperação judicial na Lei nº 11.101/2005. 3. Cumpre salientar que, por força do art. 43, VII, da Lei nº 4.591/1964, pela vulnerabilidade dos adquirentes, do interesse social envolto e do grande risco para a economia popular, são os adquirentes das unidades autônomas que têm o poder de deliberar acerca do patrimônio de afetação, através de assembléia geral de adquirentes, aplicando-se, analogicamente ao caso concreto, o artigo 119, IX, da Lei n° 11.101/2005. 4. Outrossim, em respeito ao instituto do patrimônio de afetação e a toda conotação social e econômica que o envolve, deve ser conferido às recuperandas a utilização dos recursos do patrimônio geral da empresa para a conclusão das obras. 5. Nesse contexto, conclui-se que, ao não serem incluídos os bens afetados aos efeitos da recuperação judicial, preza-se pela observância e busca dos objetivos da Lei nº 11.101/2005, em especial o princípio da relevância do interesse dos credores. 6. Assim, deve ser mantida em sua integralidade a decisão recorrida, no sentido da não sujeição dos créditos decorrentes de contratos com patrimônio de afetação aos efeitos do instituto da Recuperação Judicial. - AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (Agravo de Instrumento, Nº 70078064995, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Lusmary Fatima Turelly da Silva, Julgado em: 18-12-2018).
No dia 25 de maio, a Câmara de Vereadores aprovou projeto de lei que simplifica a venda de imóveis pertencentes à Prefeitura do Rio. O projeto vai para sanção ou veto do Prefeito Eduardo Paes nos próximos dias. De acordo com os levantamentos realizados, há um acervo de mais de oito mil imóveis da Prefeitura do Rio subutilizados ou sem qualquer uso para a administração pública. Desse número total, mil imóveis estão nos cadastros imobiliários sob titularidade do Estado da Guanabara mesmo passados quase cinquenta anos da sua extinção pela fusão com o Estado do Rio de Janeiro. Outra grande parte possui cadastro impreciso, com endereços inexistentes, o que dificulta a identificação ou a própria localização do imóvel.  O acúmulo desse patrimônio imobiliário decorre de diversos artifícios legais: extinção de órgãos públicos, cobranças de dívidas fiscais, herança jacente, áreas desapropriadas ou remanescentes de desapropriação, renúncia à propriedade por particulares, dentre outros. Com essa quantidade exorbitante de imóveis e a perspectiva de fluxo frequente de recebimento de novos ativos na sua carteira, a Prefeitura do Rio pode ser considerada um player relevante no mercado imobiliário carioca, com foco patrimonialista ou rentista, mas que não recolhe impostos como os cidadãos comuns, concorrendo, assim, de forma desigual com a iniciativa privada. A bem da verdade, esse quadro não é um caso específico da Prefeitura Carioca e são inúmeros os exemplos Brasil afora de milhares de imóveis públicos abandonados ou subutilizados. Na grande maioria das vezes, esses ativos são alvo de invasão, depredação ou estão em processo de deterioração, criando vazios urbanos que geram perda de valor para todo o seu entorno. É o reflexo do próprio Estado como violador do princípio da função social da propriedade. A União Federal, detentora de mais de seiscentos mil imóveis, no início de 2019 deu início a um trabalho de diagnóstico e avaliação preliminar dos ativos imobiliários subutilizados sob sua gestão. O objetivo era identificar ativos com potencial econômico que, sem qualquer uso para administração pública, fossem capazes de monetização e, uma vez transferidos à iniciativa privada, vetores de transferência de riquezas. O resultado foi a edição da Medida Provisória nº 915, convertida na lei federal 14.011/20, a qual trouxe importantes inovações quanto a racionalização da gestão e desburocratização na venda do patrimônio imobiliário da União. O Projeto de lei complementar 42/21 da Câmara Municipal guarda semelhanças com a legislação federal acima citada, ao transpor para o bojo dos procedimentos da alienação de ativos imobiliários municipais, o mecanismo da Proposta de Aquisição de Imóveis - PAI. Por meio da PAI municipal, qualquer particular poderá apresentar à Prefeitura Carioca uma proposta de aquisição de um ativo imobiliário de sua titularidade. O simples ato de transferir, por venda, um imóvel municipal ao particular, gera relevantes e imediatos resultados positivos econômicos e sociais. Representa corte de despesas e geração de receitas diretas para o Município, dentre elas, aumento da arrecadação municipal com a incidência do ITBI sobre as vendas, do IPTU sobre o imóvel transferido ao particular e do ISS sobre o empreendimento imobiliário a ser desenvolvido, seja sobre as obras de construção ou mesmo a atividade comercial desenvolvida no local. O impacto no dia a dia dos cariocas será inegável com geração de empregos e renda através da contratação de inúmeros profissionais envolvidos direta e indiretamente na indústria da construção civil, além da possibilidade de revitalização de áreas degradadas ou em processo de desvalorização, como acontece, por exemplo, na região do Centro do Rio. A desburocratização na venda desses ativos e redução do tamanho do estado gerará desenvolvimento urbano, econômico e social para toda a região onde o imóvel alienado está inserido. Importante registrar, contudo, que o projeto de lei proposto não altera o procedimento de venda de um ativo imobiliário municipal, cujos trâmites procedimentais devem ser fielmente observados até que um imóvel municipal seja ofertado em certame público. Além disso, a apresentação da PAI no formato do projeto de lei não gera qualquer obrigação de venda ao ente público, cuja análise de conveniência e oportunidade quanto à venda é inarredável. Portanto, são inúmeros os benefícios do projeto de lei complementar 42/21 para a Cidade Maravilhosa. Estamos na torcida para que sua sanção pelo Prefeito Eduardo Paes seja em breve!
O presente autor, em outros textos publicados nesta coluna, já trouxe aos leitores alguns conceitos da teoria chamada de Análise Econômica do Direito. No presente texto, é possível dizer que a decisão mais adiante indicada poderá, em maior ou menor grau, gerar incentivos. Por mais que o modelo teórico de compreensão da escolha humana adotado pela AED ainda seja o tradicional, ou seja, o da escolha mais racional, segundo o qual as pessoas são agentes racionais que buscam a maximização de sua utilidade (bem-estar ou riqueza), na prática, pode-se aplicar o modelo da racionalidade limitada1. Dessa forma, a partir da capacidade humana de obter e processar informações, será possível tomar decisões efetivamente maximizadoras da sua utilidade. A partir dessa premissa, entende-se que, com o recente julgamento da Décima Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (que será mais adiante indicado), a forma de atuação por parte dos Municípios poderá ser alterada, especialmente no que se refere às cobranças de IPTU. Dessa forma, é suma importância tratar de temática muito relevante para a prática do Direito Imobiliário, qual seja, da Ação de Adjudicação Compulsória Inversa. É inegável que adquirir e vender um imóvel é um processo complexo e repleto de obrigações atribuídas a ambas as partes (compradora e vendedora). A mais importante delas, certamente, é a de pagamento do peço estipulado (respeitando as condições estipuladas) por parte do comprador. O vendedor, por sua vez, também possui obrigação fundamental: a de entregar o bem imóvel ao respectivo adquirente após a quitação do valor pactuado entre as partes. Em outras palavras, uma vez adimplido integralmente o valor do imóvel pactuado, surge a obrigação do vendedor de outorgar a escritura definitiva de compra e venda, instrumento hábil para ser levado ao registro para fins de efetivar a transferência do domínio do imóvel ao comprador, nos termos do art. 1.245 do Código Civil. Havendo recusa do vendedor em realizar a outorga da escritura, o comprador poderá requerer, em juízo, que seja suprida a manifestação de vontade por meio da ação de adjudicação compulsória, conforme previsto no art. 1.418 do Código Civil. A sentença da ação de adjudicação compulsória, ao transitar em julgado, valerá como título aquisitivo para fins de registro e transferência da propriedade. Porém, em algumas situações, o comprador (através do instrumento de promessa de compra e venda, por exemplo) se abstém ou cria obstáculos para a transmissão do bem para o seu nome. Os motivos para esse comportamento são os mais variados. No entanto, pode-se dizer que os principais seriam, justamente, o não pagamento dos impostos diretamente relacionados à aquisição do imóvel, como o ITBI (a ser pago no momento da transmissão), e o IPTU. Os autores Eduardo R. Vasconcelos de Moraes e Fernando Flamini Cordeiro já trataram desse assunto no dia 12/12/20192. O referido texto serviu como inspiração para que, neste, fosse possível dar um passo adiante. No último dia 24/03/2022, a Décima Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, julgou recurso de apelação interposto pelo Município de Porto Alegre em desfavor de sentença proferida nos autos de ação de adjudicação compulsória inversa que visava o seguinte: i) a procedência da ação com a expedição de mandado judicial ao Cartório de Registro de Imóveis competente para transferência da propriedade do bem objeto da referida ação; e ii) que fosse aplicado o efeito ex tunc aos efeitos da transferência de propriedade. Ou seja, que retroagissem à data da venda do imóvel realizada em 2008 e que fossem declarados inexistentes os débitos de IPTU junto ao Município de Porto Alegre desde o referido ano de 2008. Consequentemente, tais débitos de IPTU seriam redirecionados única e exclusivamente aos réus/promitentes compradores: APELAÇÃO CÍVEL. ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA. AÇÃO DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA INVERSA. PEDIDO DE DECLARAÇÃO DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO DE IMPOSTO PREDIAL E TERRITORIAL URBANO EM NOME DA PARTE PROMITENTE VENDEDORA. PEDIDO ACOLHIDO. CADASTRO JUNTO À SECRETARIA MUNICIPAL DA FAZENDA, COM A INDICAÇÃO DO POSSUIDOR E PROMITENTE COMPRADOR COMO CONTRIBUINTE PRIMÁRIO EM RELAÇÃO AO IPTU. NECESSIDADE DE OBSERVÂNCIA DA HIERARQUIA DOS CONTRIBUINTES. SENTENÇA CONFIRMADA. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível, Nº 50001524520208216001, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Julgado em: 24-03-2022) Ao analisar o recurso, a Décima Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul identificou que o que estava sendo discutido na referida ação judicial, não se tratava de transferir ao Município a responsabilidade contratual existente entre terceiros do pagamento do IPTU (assumida em relações privadas das quais não fez parte) mas, sim, de reconhecer o equívoco do Município no direcionamento da cobrança de IPTU à parte autora/promitente vendedora. Isso porque, como bem esclarecido no acórdão, dispunha, o Município, nos cadastros da Secretaria da Fazenda Municipal, a indicação do contribuinte primário em relação ao IPTU do imóvel objeto da lide. Dito de outro modo, os nomes dos réus/promitentes compradores já constavam nos cadastros da Secretaria da Fazenda Municipal. Dessa forma, foram julgados procedentes os pedidos da parte autora, no que diz respeito à expedição de mandado judicial ao Cartório de Registro de Imóveis competente para transferência da propriedade do bem objeto da referida ação e no que se refere à aplicação de efeito ex tunc aos efeitos da transferência de propriedade, especialmente no que se refere à isenção da cobrança do IPTU por parte da parte demandante/promitente vendedora. Portanto, o que se pretende no presente artigo é trazer ao leitor um passo adiante do que foi trazido pelos autores Eduardo R. Vasconcelos de Moraes e Fernando Flamini Cordeiro, em 2019. Através de tal posicionamento jurisprudencial trazido e debatido no presente artigo, pode-se vislumbrar uma possível mudança de comportamento por parte dos Municípios. Ou seja, a expectativa é de que, agora, mantenham sempre atualizados seus cadastros de contribuintes, afim de ser necessário e devido o redirecionamento das cobranças aos promitentes compradores e não, simplesmente, ao proprietário, nos termos do art. 34 do CTN. _____________ 1 PORTO, Antônio Maristello; GAROUPA, Nuno. Curso de análise econômica do direito. São Paulo: Atlas, 2020, p. 134.   2 Disponível aqui.
quinta-feira, 5 de maio de 2022

Marco legal das garantias

Encontram-se em tramitação no Congresso Nacional a MP 1.085/21, que dispõe sobre a modernização do sistema de registros públicos, mediante criação do Sistema Eletrônico de Registros Públicos (SERP), e altera a lei das incorporações imobiliárias, e o PL 4.188/21, que propõe aperfeiçoamentos no regime jurídico dos direitos reais de garantia, entre outras normas destinadas à melhoria do ambiente de negócios. Trata-se de ampla e profunda reformulação legislativa, no contexto da qual destacam-se, por sua especial relevância, normas de proteção dos adquirentes de imóveis pelo regime da incorporação imobiliária e de ampliação do campo de aplicação da alienação fiduciária de bens imóveis em garantia. No primeiro caso, a MP 1.085/21 introduz alterações na lei 4.591/64, deixando claro que o registro do Memorial de Incorporação opera a constituição de tantos direitos de propriedade quantas sejam as frações ideais do terreno onde será construído o conjunto imobiliário. É como ensina Caio Mário da Silva Pereira, ao salientar que a grande conquista da lei 4.591 "foi a criação de direito real, instituído em favor dos adquirentes de unidades, como também do incorporador, com o registro da incorporação" (destaques do autor)1. Essa é a razão pela qual o art. 32, suas alíneas e parágrafos, da Lei 4.591/1964, alinhados aos fundamentos do sistema registral (lei 6.015/1973, art. 225), preveem a qualificação  das frações ideais como objeto de propriedade da espécie condomínio especial (que o Código Civil denomina condomínio edilício), que, por serem dotadas de individualidade autônoma,2 são passíveis de alienação independente de anuência dos demais condôminos-adquirentes, em oposição à espécie condomínio geral, pro indiviso, no qual as frações ideais conferem ao condômino direito difuso em proporção a certa fração sobre o totalidade do bem, vedada sua alienação sem anuência dos demais condôminos (CC, arts. 504, 1.314 e ss).3 Embora se saiba, por elementar, que só é legalmente possível alienar direitos reais imobiliários que estejam qualificados no Registro de Imóveis como direito de propriedade, desenvolveu-se em um ou outro estado da federação a prática de só se considerar constituída essa espécie de propriedade após o término da construção, mediante "averbação" do "habite-se", e não mediante registro da divisão do terreno em frações, por efeito do Memorial de Incorporação. É como se só viessem a existir direitos de propriedade autônomos sobre as frações e acessões depois do "habite-se", pois antes os direitos dos adquirentes seriam diluídos sobre o todo, na proporção adquirida, sob regime do condomínio geral, pro indiviso. Esse estado de vulnerabilidade jurídica a que essa interpretação lança os adquirentes justificou as alterações promovidas pela MP 1.085/21 como forma de pôr fim aos riscos a que estes ficavam expostos, preservando seus direitos reais individuais desde a aquisição das frações ideais e assegurando o exercício das suas prerrogativas. Nesse sentido, a MP 1.085 dá nova redação aos arts. 32 e 43, suas alíneas e parágrafos da lei 4.591/64, que (i) reafirmam a função do registro da Incorporação como modo de constituição da propriedade autônoma sobre as frações ideais de terreno; (ii) dispõem sobre sua blindagem contra penhora por dívidas estranhas ao empreendimento; (iii) vinculam as frações do terreno e acessões do incorporador ao pagamento de suas dívidas relativas ao empreendimento; e (iv) disciplinam o procedimento de substituição do incorporador pela comissão de representantes dos adquirentes, nas situações de crise previstas na lei, e dispõem sobre a averbação da ata de destituição no Registro de Imóveis, a inscrição do condomínio no CNPJ; entre outras alterações da lei 4.591/64 relativas aos efeitos da constituição desses direitos reais de propriedade pelo Registro da Incorporação. De outra parte, o PL 4.188/21 contempla ampla e profunda proposta de modernização do regime dos direitos reais de garantia. No contexto dessa proposição, avulta a regulamentação do registro do contrato de alienação fiduciária da propriedade superveniente de bens imóveis, como forma de aproveitamento do grande potencial econômico do mercado imobiliário residencial urbano para garantia de múltiplas operações de crédito. A proposição é justificada pela necessidade de definir tratamento legal peculiar para essa garantia, e é motivada pela sua efetividade, demonstrada na prática pela sua efetividade como elemento catalisador do crescimento do mercado de crédito imobiliário, que quintuplicou a participação desse setor no Produto Interno Bruto nos últimos vinte anos4. Compreende-se melhor a necessidade de regulamentação da matéria à vista de cotejo entre os regimes jurídicos próprios da alienação fiduciária e da hipoteca. Com efeito, pela hipoteca o devedor dá o imóvel em garantia, mas conserva consigo a propriedade, podendo, portanto, constituir novas hipotecas, em graus sucessivos (CC, art. 1.476),5 mas, diferentemente, pela alienação fiduciária, o devedor fiduciante se demite da propriedade, transmite-a ao credor fiduciário em caráter resolúvel e se torna titular de direito de reaquisição (CC, arts. 1.361 e ss, e lei 9.514/1997, art. 22). Dada essa peculiar configuração, o poder jurídico do devedor fiduciante em relação ao imóvel alienado fiduciariamente se limita a, alternativamente, (i) alienar fiduciariamente a propriedade superveniente, que vier a adquirir quando implementada a condição mediante cumprimento da obrigação garantida (CC, art. 1.361, § 3º)6, ou (ii) caucionar (empenhar) seu direito aquisitivo7. A matéria está regulada no Código Civil, e já estava prevista anteriormente no Código de 1916, mas sua relativa complexidade justifica intervenção legislativa para disciplinar seus efeitos. É que o contrato de alienação fiduciária da propriedade superveniente, embora válido entre as partes, só terá eficácia depois de implementada a condição a que se subordina e a prioridade erga omnes do direito do credor fiduciário é determinada pela data do seu registro no Registro de Imóveis. Assim, o credor garantido por propriedade fiduciária sobre futura propriedade (propriedade superveniente) só estará protegido contra risco de preterição por outros gravames, eventualmente constituídos enquanto pendia a condição, se registrar seu contrato logo após sua celebração.[8] Esse registro é um dos atos destinados à conservação do direito eventual desse credor fiduciário, permitidos pelo art. 130 do Código Civil, e constitui "medida ajustada ao sistema registral imobiliário e direcionada à promoção de segurança jurídica, pois os efeitos de sua pactuação atingirão terceiros que eventualmente contratarem com o titular do direito real de aquisição [devedor fiduciante]," como observa Jéverson Luís Bottega.9 E, além da proteção do direito eventual previsto na norma codificada, o art. 167, I, 29, da lei de Registros Públicos prevê o registro da "venda condicional", da qual a alienação fiduciária em garantia é espécie.10 Não obstante, não raras vezes a efetivação desse registro é obstaculizada com fundamento em que não existe para ele referência específica no rol do art. 167 da LRP,11 e para pôr fim a essa objeção o art. 13 do PL 4.188/21 preconiza a inclusão dos §§ 3º e 4º no art. 22 da lei 9.514/97, deixando claro que esse contrato é passível de registro desde a data de sua celebração. Essa proposição visa, assim, conferir efetividade à regra do art. 1.361, § 3º, do Código Civil, mas em vez de identificar o contrato tal como nela qualificado, isto é, alienação fiduciária da propriedade superveniente, o identifica como alienação fiduciária do imóvel já alienado fiduciariamente,12 contrariando os arts. 1.228, 1.240 e 1.361, § 3º, do Código Civil, que restringem o poder jurídico do fiduciante, ao impedir a alienação ou oneração por quem não seja proprietário,13 não se justificando tal inovação incompatível com o sistema, sobretudo por já existir solução para a situação, como demonstra a emenda nº 21 ao Projeto de Lei 4.188/2021 ao propor adequação da redação do § 3º do art. 22 da lei 9.514/97 ao conceito estabelecido pelo § 3º do art. 1.361 do Código Civil.14 Merece atenção também a proposta de inclusão dos §§ 5º ao 10 no mesmo art. 22 da mesma Lei 9.514/1997, que visam disciplinar a coexistência dos direitos do credor garantido por propriedade fiduciária atual e do credor garantido por propriedade fiduciária superveniente, em relação aos efeitos da sub-rogação do credor fiduciário que pagar a dívida do devedor fiduciante comum. A hipótese é de sub-rogação legal regulada pelo art. 346, I, do Código Civil,15 mas o Projeto remete equivocadamente ao art. 31 da Lei 9.514/1997,16 que trata de sub-rogação do fiador ou do terceiro interessado, tornando-se necessária sua adequação mediante remissão ao art. 346, I, do Código Civil, o que comporta supressão de excessos, simplificação e condensação do texto em dois parágrafos.17 A inobservância da correspondência entre essas proposições do PL 4.188/21 e os diversos institutos jurídicos do Direito Privado a que se vinculam se repete em outras partes do projeto, e traz à baila a exigência de rigor conceitual e terminológico na formulação de texto legal, recomendando revisitação dos requisitos de uniformidade e coerência estabelecidos pela Lei Complementar 95/1998, especialmente pelo seu art. 11, incisos e parágrafos.18 A atenção a esses requisitos é especialmente relevante diante da amplitude e diversidade da reformulação normativa proposta, envolvendo a constituição, execução e extinção de direitos reais, notadamente de garantias, entre as quais se encontram (i) a possibilidade de recarregamento da hipoteca ou da garantia fiduciária, pelo qual essa garantia acolha novas operações de crédito; (ii) o tratamento legal especial para financiamento de moradia, notadamente o que exonera o devedor inadimplente da responsabilidade de pagamento do saldo devedor remanescente, se o produto do leilão não for suficiente para satisfação integral do crédito; (iii) a execução hipotecária extrajudicial no âmbito do Registro de Imóveis; (iv) a tipificação do contrato de administração fiduciária de garantias, mediante inclusão do art. 853-A entre as várias espécies de contrato do reguladas pelo Código Civil, entre outras proposições. Esses são apenas alguns dos temas que integram a ampla reformulação legislativa proposta pela Medida Provisória 1.085/2021 e pelo Projeto de Lei 4.188/2021. Seu alcance social e econômico é evidente e justifica sem dúvida alguma a alteração do panorama normativo vigente, com a necessária adequação do conteúdo normativo das propostas aos requisitos de coerência e unidade do sistema de que trata a lei complementar 95/98, de forma a conferir efetiva melhoria do ambiente de negócios, a partir da atualização do direito civil patrimonial, da modernização dos sistemas de registros públicos, e da proteção do consumidor nas incorporações imobiliárias. ______________ 1 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Condomínio e incorporações. 14. ed. rev., atual. e ampl. Atualizadores: Sylvio Capanema de Souza e Melhim Namem Chalhub. Rio de Janeiro: Forense, 2020, pp. 284/285.   2 Segundo Afrânio de Carvalho, a existência legal dos imóveis é determinada pela identificação no Registro de Imóveis com "sua representação escrita como individualidade autônoma, com o seu modo de ser físico, que o torna inconfundível e, portanto, heterogêneo em relação a qualquer outro". CARVALHO, Afrânio de. Registro de imóveis. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 247. 3 Discorremos sobre as funções do Memorial de Incorporação em nossa obra Incorporação Imobiliária (GenForense, 6. ed., item 2.1.1). 4 Dados do Banco Central do Brasil e da ABECIP - Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança indicam que a participação do crédito imobiliário no Produto Interno Bruno nacional quintuplicou nos últimos vinte anos, tendo saltado de 1,9% em 2001 para 9,8% em 2021. 5 Código Civil: "Art. 1.476. O dono do imóvel hipotecado pode constituir outra hipoteca sobre ele, mediante novo título, em favor do mesmo ou de outro credor." 6 Código Civil: "Art. 1.361. (...). § 3º A propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária." "Art. 1.420. Só aquele que pode alienar poderá empenhar, hipotecar ou dar em anticrese; só os bens que se podem alienar poderão ser dados em penhor, anticrese ou hipoteca. § 1º A propriedade superveniente torna eficaz, desde o registro, as garantias reais estabelecidas por quem não era dono." 7 A constituição de garantias reais sobre a propriedade superveniente era prevista no art. 756 do Código Civil de 1916, como leciona Pontes de Miranda: "durante o tempo em que a condição suspensiva pende, o direito ao direito futuro - o direito expectativo - é transferível, empenhável (caucionável), arrestável, penhorável e herdável (salvo condição de vida); bem como suscetível de ser garantido por fiança, hipoteca e penhor." PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. São Paulo: RT, 12. ed., 2012, § 545, nºs 6 e 9, e § 2.420. No mesmo sentido, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, 20. ed. rev. e atual. por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro: Forense, 2004, v. I, p. 566. Tratamos da matéria em nosso Alienação Fiduciária-Negócio Fiduciário. Rio de Janeiro: GenForense, 7. ed., 2021, pp. 162 e ss. 8 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, revista e atualizada por Maria Celina Bodin de Moraes.  Rio de Janeiro: Editora Forense, 20. ed., 2004, v. I, p. 566. 9 BOTTEGA, Jéverson Luís. Qualificação registral imobiliária à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Conhecimento Editora, 2021, p. 140. 10 Lei 6.015/73: "Art. 167. No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos: I - o registro: .... 29) da compra e venda pura e da condicional." 11 Nesse sentido: "Suscitação de dúvida registral. Registro de instrumento particular de confissão de dívida e constituição de alienação fiduciária de bem imóvel em garantia. Propriedade superveniente. Invalidade. O oficial do registro imobiliário tem sua atuação delimitada pelo princípio da tipicidade, de modo que são registráveis os títulos e atos previstos em lei. A alienação fiduciária de bem imóvel em garantia é passível de registro, diferentemente da alienação fiduciária sobre a denominada 'propriedade superveniente', nos termos do art. 167, inc. I, 35, da lei de registros públicos. Circunstância dos autos em que inviável o registro por se tratar de propriedade superveniente". (TJ-RS, 18ª Câmara Cível, Apelação 70069852457, rel. Des. João Moreno Pomar, j. 25.8.2016). 12 Projeto de lei 4.188/2021 (art. 13, que propõe a inclusão dos §§ 3º e 4º no art. 22 da Lei 9.514/1997: "Art. 22. (...). § 3º A alienação fiduciária de imóvel já alienado fiduciariamente, quando realizada pelo mesmo fiduciante do primeiro negócio jurídico, é admitida a registro imobiliário desde a data de sua celebração e a sua eficácia fica condicionada à aquisição do imóvel pelo fiduciante na forma prevista no adquirida pelo fiduciante em decorrência da resolução da propriedade fiduciária nos termos do disposto no art. 25, torna eficaz a transferência da propriedade fiduciária ao credor desde o seu registro." 13 Em relação ao bem móvel infungível, § 2º do art. 2º da Lei 4.728/1965, com a redação dada pela Lei 10.931/2004, tipifica esse contrato como ilícito penal, ao sujeitar "o devedor que alienar, ou der em garantia a terceiros, coisa que já alienara fiduciariamente em garantia, ficará sujeito à pena prevista no art. 171, § 2º, I, do Código Penal." 14 Emenda 21 ao Projeto de Lei nº 4.188/2021: Art. 22. (...). § 3º A alienação fiduciária da propriedade superveniente, adquirida pelo fiduciante, é suscetível de registro no Registro de Imóveis desde a data de sua celebração, tornando-se eficaz a partir do cancelamento da propriedade fiduciária anteriormente constituída." 15 Código Civil: "Art. 346. A sub-rogação opera-se, de pleno direito, em favor: I - do credor que paga a dívida do devedor comum." 16 Lei 9.514/1997: "Art. 31. O fiador ou terceiro interessado que pagar a dívida ficará sub-rogado, de pleno direito, no crédito e na propriedade fiduciária. Parágrafo único.  Nos casos de transferência de financiamento para outra instituição financeira, o pagamento da dívida à instituição credora original poderá ser feito, a favor do mutuário, pela nova instituição credora." 17 "§ 4º Caso deixe de exercer a faculdade de pagar a dívida comum e sub-rogar-se no crédito e na propriedade fiduciária em curso, assegurada pelo art. 346, I, do Código Civil, o credor garantido pela propriedade superveniente se sub-roga de pleno direito, desde a data do registro de que trata o § 3º, no crédito do fiduciante correspondente à importância que restar do produto de eventual venda do imóvel na forma prevista no art. 26-A, art. 27 ou art. 27-A, observado o disposto no art. 33-H." "§ 5º O inadimplemento de qualquer das obrigações garantidas pela propriedade fiduciária faculta ao credor declarar vencidas as demais, inclusive aquelas compreendidas na sub-rogação de que trata o parágrafo anterior, devendo cientificar o devedor fiduciante desse vencimento na intimação de que trata o § 1º do art. 26." 18 Mesmo que pareça prosaico ou ingênuo o interesse pelo rigor terminológico na formulação do texto legal, mas tendo presente que a redação de algumas leis sinaliza certo desprezo pela necessidade de adequação das palavras ao conteúdo normativo, convém revisitar os requisitos da Lei Complementar 95/1998: "Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas: I - para a obtenção de clareza: a) usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja legislando. (.). II - para a obtenção de precisão: (.): b) expressar a ideia, quando repetida no texto, por meio das mesmas palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente estilístico; c) evitar o emprego de expressão ou palavra que confira duplo sentido ao texto. (.): g) indicar, expressamente o dispositivo objeto de remissão, em vez de usar as expressões 'anterior', 'seguinte' ou equivalentes."
Aquisições de ativos imobiliários suscitam uma série de questões jurídicas particulares. Além de aspectos comerciais e transacionais, que envolvem desde a realização de auditoria técnica e jurídica até a negociação de cláusulas e condicionantes cada vez mais sofisticadas, a depender do caso, partes e advogados devem estar atentos se determinada aquisição de ativos imobiliários é sujeita ou não à notificação ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). A essa complexidade acresce o fato de que o gênero "ativo imobiliário" tem inúmeras espécies, que podem se aproximar ou se afastar, a depender de suas características, do que podemos considerar uma empresa ou partes dela. Shopping centers, galpões logísticos, lajes comerciais e fazendas já em operação, para dar alguns exemplos, são ativos bem diferentes de um terreno vazio e sem construção ou benfeitoria, onde se pretende um dia construir algo. Como o impacto concorrencial de cada tipo de aquisição é diferente, faz sentido tratá-las como se fossem a mesma coisa para fins concorrenciais? A Lei de Defesa da Concorrência (lei 12.529/11) prevê que aquisições de ativos com efeitos no Brasil devem ser notificadas ao CADE caso sejam caracterizadas como atos de concentração, desde que os participantes da transação, incluindo nesse conceito os grupos econômicos, atinjam os critérios de faturamento mínimos de R$ 75.000.000,00 e R$ 750.000.000,00 no ano anterior ao ato de concentração. Os requisitos que caracterizam determinada aquisição imobiliária como um ato de concentração de notificação obrigatória não estão detalhados em leis, nem estão previstos nas resoluções do CADE, o que coloca as empresas do mercado imobiliário sob uma exposição indesejável desde o ponto de vista jurídico e econômico, sendo mais um vetor de "risco Brasil", o que ao nosso sentir deveria ser evitado. O remédio é não é de difícil solução: regras claras e que não exponham a necessidade de notificações irrazoáveis que envolvam todo o tipo negócio jurídico imobiliário, sob pena de onerar o mercado e o próprio órgão regulador desnecessariamente. Na prática, o assunto é tratado à luz das particularidades de cada aquisição específica, razão pela qual a jurisprudência atualizada do CADE é de suma importância. As decisões mais recentes do CADE sobre o tema indicam que aquisições imobiliárias devem ser notificadas, se os players atingirem o critério mínimo de faturamento, quando o imóvel: (i) puder ser considerado como um ativo produtivo para o adquirente (e não necessariamente produtivo por si só); e/ou (ii) minimamente guarde relação com a atividade econômica a ser nele desenvolvida. A caracterização de um imóvel como um ativo produtivo, conforme decisões recentes, leva em consideração alterações e/ou incrementos da oferta de bens ou serviços ao mercado pelo adquirente do imóvel. Contudo, é importante ressalvar que, segundo precedente recente, o fato de haver inoperabilidade imediata do imóvel ou necessidade de investimentos significativos para torná-lo produtivo não afastaria a necessidade de notificação à autoridade antitruste. Cabe aqui o questionamento, com um exemplo extremo: por que a compra de um imóvel onde será erguido um prédio é mais relevante do ponto de vista concorrencial do que a compra de todos os materiais e serviços para sua construção e operação, já que todos a rigor são necessários para o resultado almejado? Pontos que mereceriam maior especificação estão relacionados à conceituação da relação que o imóvel deve guardar com a atividade a ser nele desenvolvida pelo adquirente. Os casos a seguir ilustram o argumento: Adentrando ainda mais na seara imobiliária, não apenas aquisições de imóveis, segundo a interpretação do CADE, podem suscitar a necessidade de notificação. Por exemplo, em 2016, o CADE aplicou multa de aproximadamente R$ 400.000,00 (quatrocentos mil) por consumação de operação imobiliária sem notificação ao CADE (gun jumping), em caso envolvendo contrato de locação de frigorífico pelo prazo de 5 (cinco) anos1. Nesse caso, o CADE entendeu que a locação geraria o aumento da capacidade produtiva da locadora ainda que o imóvel permanecesse de propriedade de terceiro. Diante das potenciais consequências, que podem incluir multas de até R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões) e a nulidade da operação, parece natural que o risco envolvido tenda a levar ainda a mais submissões de atos de concentração ao CADE, consolidando a orientação e reproduzindo a lógica de julgados anteriores. Entretanto, algumas reflexões são necessárias para melhor otimização de recursos e tempos do CADE e do setor privado. Andaria bem o CADE com uma orientação criteriosa e formal a respeito do tema, estabelecendo uma regra precisa e objetiva, sem a necessidade de as empresas realizarem elocubrações acerca de questões específicas dos casos concretos, como ocorre em atos de concentração, na medida isso serviria apenas como balizador, já que cada caso guarda as suas particularidades. A nosso ver, para uma análise concorrencial adequada, a regra deveria considerar não apenas "o que se pretende fazer" com o imóvel, mas a sua real condição. Ainda que se possam comparar determinados imóveis a empresas para fins concorrenciais, essa premissa não é verdadeira para toda e qualquer aquisição imobiliária. Tal qual indicado acima, o terreno é apenas uma parte integrante do conjunto de ativos necessários para um projeto imobiliário, seja ele de natureza comercial ou residencial. Apesar de o setor imobiliário ter se tornando um dos que mais notificam operações ao CADE, usualmente não são identificadas complexibilidades ou sensibilidades do ponto de vista estritamente concorrencial nessas operações. Por isso, pode ser salutar considerar a concessão de alguns waivers como ocorre nos Estados Unidos2. A depender do caso, em especial quando não há aquisição de elementos de empresa ou negócios produtivos (por exemplo, um terreno não-operacional), nem uma vocação predestinada do imóvel, poderia o CADE dispensar as partes de notificar determinados negócios imobiliários. A despeito do volume de transações imobiliárias notificadas ao CADE, que tende a crescer em face dos recentes precedentes trazidos anteriormente, no melhor conhecimento dos autores, até o momento não houve imposição de remédios em operações estritamente imobiliárias porque, via de regra, trata-se de um mercado que possui competitividade nata e com vários players em atuação, sobretudo, em função das regulações municipais e estaduais que fazem do mercado imobiliário um mercado com espaço para uma grande diversidade empresarial. Portanto, ao evitar uma enxurrada nociva de casos a serem notificados que possuem pouco ou nenhum impacto concorrencial, o CADE poderá focar em casos importantes que poderiam até mesmo não ser notificadas em razão dos critérios previstos na legislação brasileira que, ilustrativamente, desconsideram o valor da operação. Outra alternativa seria a definição via resolução, desde que autorizada por lei, de parâmetros escalonados que simplificasse a vida das partes e do CADE, identificando critérios objetivos de concentração de acordo com definições de mercado relevantes disponibilizadas pelo CADE e respectivos dados para cálculo da participação (e.g.: área bruta locável, quantidade de checkouts, número de unidades e metros quadrados de área construída), considerando de forma fundamental o espaço geográfico de influência aplicável, pois nada mais lógica, a utilização desse critério num país com dimensões continentais e dinâmicas competitivas locais bastante distintas. Na mesma linha, uma aquisição de terra nua e imóveis sem construção, a nosso ver, não deveria ter sequer a obrigação de ser notificada. De acordo com uma série de pareceres recentes e similares do CADE que aprovaram sem ressalva aquisições imobiliárias (com, na maioria das vezes, concentrações de mercado inferiores a 10%), algumas sugestões de alteração de política antitruste poderiam ser consideradas pelo CADE, eventualmente após a realização de consulta pública3. Por exemplo: a)    aquisições imobiliárias que gerassem concentração de mercado inferior a 5% em todos os mercados relevantes analisados fossem dispensadas de notificação; b)    aquisições imobiliárias que gerassem concentração de mercado entre 5-10% em pelo menos um dos mercados relevantes analisados fossem simplesmente comunicadas ao CADE para que este, em entendendo cabível, exercesse a faculdade que lhe é conferida pelo artigo 88, parágrafo 7º da lei 12.529/11; e c)    aquisições imobiliárias que gerassem concentração de mercado superior a 10% em qualquer dos mercados relevantes analisados seguissem o regime normal atual de notificação prévia, segundo os ritos sumário ou ordinário à luz do caso concreto. Neste modelo proposto, caso as partes deixassem de notificar ou comunicar suas aquisições imobiliárias, o CADE levaria em consideração tal aspecto na dosimetria das multas por gun jumping em razão de abuso de exercício de direito pelas partes. Assim, combinam-se incentivos de maior eficiência de mercado e correção das premissas econômicas de cada operação imobiliária. O tema proposto merece atenção e ao nosso sentir deve ser objeto de uma regulação que traga regras claras e coerentes ao mercado imobiliário. Procuramos trazer reflexões na busca de soluções que - aplicadas particularmente a aquisições imobiliárias - gerariam economias para os setores afetados e permitiriam que o CADE pudesse concentrar seus servidores na análise de casos realmente relevantes do ponto de vista concorrencial. _______________ 1 Procedimento Administrativo de Apuração de Ato de Concentração nº 08700.007160/2013-27. Representadas: JBS S.A., Tinto Holding Ltda., Unilav Industrial Ltda., Flora Produtos de Higiene e Limpeza Ltda. e Tramonto Alimentos S.A. Voto do Conselheiro Relator Márcio de Oliveira Júnior assinado em: 22/08/2016. 2 Federal Trade Commission, Subchapter H, Rules under the HSR Act of 1976, 16 CFR § 802.2 - Exemption Rules, certain acquisitions of real property assets. Disponível aqui. Acesso: 7 de abril de 2022. 3 São exemplos de atos de concentração recentes aprovados em rito sumário por gerar concentração de mercado inferior a 10%: (i) Ato de Concentração nº 08700.002640/2021-10 (CSHG Renda Urbana FII e Makro Atacadista S.A.); (ii) Ato de Concentração nº 08700.006043/2020-75 (Gafisa S.A. e Taperebá Empreendimentos Imobiliários Ltda.); (iii) Ato de Concentração nº 08700.004322/2020-02 (Gafisa S.A. e Apogee Empreendimento Imobiliário S.A); e (iv) Ato de Concentração nº 08700.004430/2021-58 (Best Center Empreendimentos e Participações S.A. e Altsa Property - Gestão De Ativos S.A.).
A lei existe para gerar paz e estabilidade social. Quando ela não produz tais efeitos precisa ser adequada. Nesta perspectiva é que foi publicado o art. 54 da lei 13.097/15, preenchendo uma lacuna que afligia a toda sociedade brasileira. Antes de existir tal dispositivo, a lógica estabelecida para as contratações imobiliárias era irracional. Exigia-se de quem pretendia adquirir um imóvel a obrigação de realizar uma via crucis infindável, consideradas as diversas competências jurisdicionais, no intuito de tentar desvendar a existência de alguma ação judicial contra o vendedor tendente a gerar efeitos perante o negócio jurídico que se pretendia realizar, sem que fosse possível alcançar a segurança esperada, pois a apresentação de certidões dos distribuidores forenses não assegurava, na plenitude, a inexistência de processo ou de citação regular. De um lado tínhamos o vendedor tentando alienar seu imóvel, mas sem informar eventual demanda pela qual respondia (desatendida aí, por si só, a boa fé), e, do outro, o comprador tentando, apoiado nos mecanismos que até então lhe eram oferecidos, desvendar um mistério. Tal busca, além de retardar a realização do negócio, era muito onerosa. O custo do Direito, consequentemente, era demasiadamente acentuado para o objeto investigado (alcance de informações fidedignas). Qual foi, então, a evolução implementada neste processo de busca de informações visando a uma contratação imobiliária segura? Aplicar a lógica que proclama Dormientibus non succurrit jus (o Direito não socorre aos que dormem). Ao invés de repassar à sociedade o custo da investigação, passou-se a exigir uma proatividade de quem deseja alcançar a oponibilidade do seu interesse, publicizando-o na matrícula do imóvel. Se alguém tem alguma pretensão envolvendo um imóvel deve lhe conferir publicidade para que esteja protegido. Não o fazendo, terá para si o ônus de provar que um adquirente de imóvel não estava de boa-fé. Toda ação tem uma reação: averbando seu interesse terá a presunção de fraude para alegar, cancelando um registro de transmissão se não houver patrimônio para resguardar a ação; não averbando, terá de provar a fraude na negociação. Assim, foi necessário estabelecer a ideia de concentrar em um único órgão a informação necessária para uma contratação imobiliária segura, reduzindo a assimetria da informação e tornando o custo do Direito menor, gerando uma maior eficiência econômica. Nesta nova lógica todos ganham. O mecanismo hoje requerido é que se averbe um interesse na matrícula do imóvel e, para isso, a Lei ocupou-se até mesmo de prever uma despesa básica correspondente (ver art. 56, §1º da lei 13.097/15, ou art. 98, §1º, IX do Código de Processo Civil). Quem optar por não publicizar seu interesse na matrícula do imóvel assume para si o ônus de provar que houve fraude na alienação do mesmo. É evidente a transformação e a evolução. Fraude poderá ser caracterizada quando ocorrer uma alienação de imóvel contra interesse previamente publicizado na matrícula, e não quando não houver a demonstração deste interesse. Possível correlacionar a matéria com os princípios da rogação ou instância, do protocolo e da inércia.   Com efeito, restou estabelecido, hoje, o ônus legal do interessado em publicizar seu interesse, e não mais um ônus para a sociedade de ter que realizar amplas investigações e buscas de diversas certidões, em inúmeros órgãos e jurisdições, até porque estas buscas não garantiam absolutamente o negócio. Ressalta-se, o propósito da Lei é o de permitir a ordem e a estabilidade social, o que vem sendo alcançado pela inovação para o Direito e para a Economia, decorrente do art. 54 da lei 13.097/15. Na prática, já se percebe como o Poder Judiciário, em especial a Justiça Laboral, vem acertadamente enfrentando a questão. Relevante destacar recente julgado do Tribunal Superior do Trabalho (TST - ROT: 16793420185090000, Relator: Alexandre De Souza Agra Belmonte, Data de Julgamento: 18/05/2021, Subseção II Especializada em Dissídios Individuais, Data de Publicação: 21/05/2021), através do qual, em apertada síntese, o Tribunal manteve decisão que julgou procedente a ação rescisória em homenagem à segurança jurídica, respeitando quem, desvestido de má-fé, ainda buscou informação no ambiente próprio, no caso, o Registro de Imóveis, e não encontrou publicizado interesse jurídico contraditório algum sobre o imóvel, apresentado por quem demandava contra o seu proprietário. Segundo consta do decisum, reportando-se ao art. 54, parágrafo único da legislação em evidência, "5. Com o aludido dispositivo da Lei 13.097/2015 consagrou-se o princípio da concentração dos atos registrais, com vistas a conferir maior segurança jurídica àquele que adquire um imóvel de boa-fé, uma vez que exige que todas as informações sobre o bem constem na sua matrícula, inviabilizando qualquer pretensão futura de decretação de ineficácia do negócio calcada em elemento estranho ao registro.". Pondera-se que o princípio da concentração - salvo nas exceções previstas no §1º do art. 54 da lei 13.097/15 (arts. 129 e 130 da lei 11.101/05 e nas hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independa de registro imobiliário) e quando da incidência do art. 185 do Código Tributário Nacional (norma com status de lei complementar) -, servirá para afastar os efeitos deletérios de situações ocultas ou clandestinas, não protegidas porque não publicizadas pelo modo como a Lei hoje considera essencial para a proteção da sociedade. Vale lembrar que o Código de Processo Civil, em 2006, quando do advento da lei 11.382, fomentou a aplicação do Princípio da Concentração, através do art. 615-A. A partir deste momento o credor passou a ter a faculdade de averbar a distribuição da execução de modo a prevenir a fraude à execução. Com a criação da certidão premonitória - e aqui, pedimos vênia para utilizarmos a feliz nomenclatura atribuída a este ato pelo insigne Registrador Sérgio Jacomino - o quadro mudou, antecipando os efeitos dessa presunção antes mesmo da citação do devedor/executado. Logo, o exequente não precisa aguardar o aperfeiçoamento da penhora, podendo, desde a instrução da ação de execução, antes mesmo da citação, assegurar a publicidade do seu interesse. Até mesmo quando da distribuição de ação de conhecimento é possível noticiar um interesse na matrícula, exigindo manifestação judicial específica (art. 54, IV da lei 13.097/15). Posteriormente, em 2010, com a edição da súmula 375 do STJ, solidificou-se em plenitude o Princípio da Concentração que, em conjunto com a referida súmula, tem permeado os decisórios da Corte superior, sendo a orientação jurisprudencial consolidada, como se percebe da leitura da ementa a seguir reproduzida: AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL - AUTOS DE AGRAVO DE INSTRUMENTO NA ORIGEM - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEU PROVIMENTO AO RECLAMO. INSURGÊNCIA DA PARTE AGRAVADA. 1. Segundo a orientação jurisprudencial consolidada nesta Corte, o reconhecimento da fraude à execução exige a anterior averbação da penhora no registro do imóvel ou a prova da má-fé do terceiro adquirente, consoante se depreende da redação da Súmula n. 375/STJ e da tese firmada no REsp repetitivo de n. 956.943/PR 1.1 Hipótese dos autos em que o Tribunal de origem, ante a inexistência de prévia penhora ou anotação de execução na matrícula do imóvel, reconheceu a ocorrência de fraude à execução, a partir de presunção de má-fé do terceiro adquirente. 2. Agravo interno desprovido. - (AgInt no AREsp 1016096/PR, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 30/08/2021, DJe 02/09/2021). Finalmente, com a chegada do novo Código de Processo Civil ampliaram-se as possibilidades de publicização de interesses jurídicos na matrícula de um imóvel, cabendo ao exequente optar por dois tipos distintos de averbação: a da distribuição da execução, a partir da obtenção da certidão do ajuizamento do feito, nos termos do inciso XI do artigo 799 do CPC; ou, ainda, a da admissão da execução, nos termos do artigo 828. A lógica que hoje está estabelecida é mais simples, gera maior eficiência (jurídica e econômica) e segurança: um interesse jurídico sobre um imóvel precisa estar publicizado no ambiente próprio (Registro de Imóveis) para alcançar oponibilidade perante terceiros. Simples assim. O registro é antitético da clandestinidade. Quem não deu a conhecer seu interesse averbando a existência de uma ação na matrícula do imóvel assume para si o ônus de provar que o adquirente da propriedade não estava de boa-fé. Terá que realizar prova suficiente em juízo visando à desconstituição dos efeitos de um registro de transmissão. Desse modo, ao contrário do que sustentava o vetusto entendimento (revogado), o art. 54 da Lei nº 13.097/15 não fragiliza o instituto da fraude à execução, mas, pelo contrário, colabora com ele quando elucida, com precisão, que não se deve transferir à sociedade o custo e o ônus de realizar a busca de certidões outras que não apenas a da matrícula do imóvel, o que vai ao encontro da tão esperada desburocratização. Neste sentido, a Medida Provisória nº 1.085/2021 também tratou de otimizar as formas de expedição de certidões, visando ofertar maior eficiência e celeridade aos contratos em questão. Importante ressaltar, para concluir, sobre a vedação ao retrocesso. Neste sentido, deve ser enaltecida a decisão ora apresentada pela compreensão de que o melhor para o Brasil é conferir o máximo de efetividade ao dispositivo em evidência. Os interesses em jogo não são corporativos, mas da sociedade brasileira, a qual esperava o aperfeiçoamento da legislação agora experimentado
A relevância do corretor de imóveis ao mercado imobiliário é inquestionável. Na incorporação imobiliária, quando pensamos a respeito do corretor, somos remetidos imediatamente ao profissional que trabalha no estande de vendas para a intermediação das unidades do empreendimento. Mas antes dessa atuação, o corretor de imóvel possivelmente também intermediou a comercialização do terreno que foi destinado à incorporação imobiliária. Há corretores de imóveis especializados justamente em buscar terrenos para que os incorporadores desenvolvam empreendimentos imobiliários. Esses corretores não oferecem apenas terrenos que já estão aptos para o desenvolvimento de um empreendimento, mas também têm a capacidade de agrupar terrenos (de proprietários diferentes) que possam ser destinados à incorporação imobiliária. O que se objetiva no presente e breve estudo é saber quando será efetivamente devida a comissão de corretagem pelo negócio entabulado entre o incorporador e o proprietário do terreno. A questão torna-se interessante porque mesmo que o incorporador se interesse pelo imóvel apresentado, diversos fatores alheios à vontade das partes concorrem para a consecução do empreendimento. Embora a localização e outras características do imóvel sejam excelentes, inúmeras outras questões influem para o sucesso da incorporação imobiliária. É relevante, assim, ao incorporador, estudar as restrições para construção na legislação urbanística local, avaliar as eventuais contrapartidas que poderão ser determinadas pelos órgãos públicos, investigar a respeito de questões ambientais do terreno, verificar os custos para o desenvolvimento do projeto, obter aprovação do projeto, dentre outras questões. Todavia, as avaliações acima referidas e a obtenção de aprovação do projeto perante o órgão municipal possuem custo elevado, de modo que é muito comum, no âmbito da incorporação imobiliária, que as partes, antes de incorrer em tais gastos, resolvam firmar instrumento particular de promessa de venda e compra, contrato preliminar em que prometem seguir com o negócio definitivo, a depender dos resultados positivos dos referidos estudos e caso o incorporador obtenha a permissão para construir. Assim, considerando que o incorporador quer ter segurança jurídica para poder iniciar as investigações de viabilidade do empreendimento, imprescindível que as partes firmem contrato, ainda que preliminar e declaradamente em caráter de promessa, para constituir algum vínculo jurídico. Como bem referido por Gustavo Tepedino e Carlos Nelson Konder1: [...] reputa-se legítima a prática de as partes celebrarem contrato preliminar com elementos indefinidos, que serão especificados pelas negociações futuras ou, na falta de acordo superveniente, pelos critérios jurídicos de integração contratual, sem prejuízo à sua execução específica. Compreende-se, assim, a necessidade de contratos preliminares em negócios de elevada complexidade, afigurando-se, por vezes, como mecanismo estratégico em contratações nas quais boa parte do conteúdo contratual é deliberadamente postergada para negociações e ajustes futuros [...] Justifica-se, nesse cenário, a estipulação do preliminar, com a presença de todos os elementos essenciais de validade, enquanto parte de seu conteúdo é deixada para futura gestão, em boa-fé, pelos contratantes. Contudo, diante de uma série de incertezas a respeito da viabilidade do contrato, é natural que o contrato preliminar possua cláusula que permita ao incorporador não seguir com o contrato, dentre elas a inviabilidade técnica ou financeira do empreendimento ou o apontamento de riscos jurídicos nos documentos apresentados pelos vendedores, após a intitulada due diligence. Nesse sentido, é corriqueiro o emprego de cláusula contratual em que as partes determinam que a exclusivo critério do incorporador, o contrato poderá ser resolvido de pleno direito (em prazo determinado ou não) quando, exemplificadamente, (i) o projeto pretendido não seja aprovado pela municipalidade ou quando a sua aprovação requer onerosas contrapartidas; (ii) restar comprovado que o terreno possui limitações urbanísticas ou ambientais; (iii) o custo para a implantação do empreendimento superar o valor previsto pelo incorporador ou (iv) qualquer outra situação que possa impossibilitar a viabilidade técnica ou financeira para a execução da obra pretendida. As situações acima descritas são normalmente qualificadas pelas partes nos contratos de promessa de compra e venda como condições resolutivas embora, tecnicamente, por permitirem ao incorporador não seguir com o negócio, correto seria intitulá-las cláusulas resolutivas expressas2. Além de a cláusula resolutiva expressa permitir aos contratantes não seguir com o contrato em definitivo, também confere a facilidade de admitir a resolução do contrato de pleno direito (art. 474, do Código Civil), ou seja, sem a necessidade de confirmação de pronunciamento pelo Poder Judiciário, embora essa questão ainda seja controversa na jurisprudência3. Segundo Aline Valverde Terra4, a cláusula resolutiva expressa é, em definitivo, manifestação evidente da autonomia privada, atribuindo às partes a liberdade de, ao criar o vínculo jurídico, estabelecer em que situações ele poderá ser desfeito, desde que conduzam à incapacidade de a relação obrigacional promover o resultado útil programado. Assim, ao contratar, as partes podem antever os principais riscos envolvidos no contrato, declarando que, na sua ocorrência, o contrato, mediante manifestação do credor, resolve-se sem a necessidade da propositura de uma ação judicial. Embora a cláusula resolutiva expressa seja muito frequentemente utilizada para extinguir o contrato em razão do inadimplemento absoluto, sua função extrapola tal situação. Nesses termos, as partes podem redistribuir os riscos para situações em que sequer exista culpa atribuível à contraparte. Esse relevante instrumento de gestão do risco contratual confere ampla liberdade às partes, nas relações civis, para extinguir o contrato em razão não apenas do descumprimento da contraparte, mas, também, em razão da verificação de fatos e eventos que os contratantes reputem suficientes para a resolução contratual. Nesse sentido, resta a pergunta. Ainda que o corretor tenha sido diligente na sua função, conseguindo aproximar as partes, e que dessa atuação tenha resultado a assinatura de um contrato preliminar, a formalização desse negócio jurídico necessariamente impõe o pagamento da corretagem? Ora. Se, após a investigação técnica e auditoria jurídica, o incorporador verificar que não há impedimentos para seguir com a obra, tendo, por exemplo, obtido a aprovação do projeto pretendido pela prefeitura sem impedimentos ou contrapartidas onerosas, tendo formalizado o contrato definitivo com o proprietário do imóvel (escritura de compra ou permuta), o resultado útil do corretor foi alcançado e a comissão de corretagem é devida, nos termos do art. 725, do Código Civil. A questão é mais controversa quando, mesmo após formalizado o instrumento particular de promessa de compra e venda, o incorporador resolve fazer uso da cláusula resolutiva expressa para extinguir o vínculo contratual, porque o resultado das investigações técnicas e da auditoria jurídica revelaram questões que oneram excessivamente ou impossibilitam a consecução da obra, na forma pretendida. Na lição do Des. Antônio Carlos Mathias Coltro5, [...] é aleatório o contrato (de corretagem) porque o corretor depende da sorte de seu trabalho para ter direito ao recebimento da corretagem, aí estando o risco da atividade em virtude do qual a remuneração do corretor depende da ocorrência de uma condição suspensiva, que consiste na realização do negócio6. Como bem referido por Gustavo Tepedino7, [...] o objeto do contrato de corretagem não é o serviço do corretor em si mesmo considerado, mas o resultado desse serviço, que, por sua vez, não se reduz à conclusão do negócio pretendido, melhor se identificando como a eliminação, por parte do corretor, de qualquer obstáculo à sua celebração. Nesse sentido, ainda que o corretor tenha realizado a aproximação das partes, participado ativamente das tratativas, tendo obtido diversos documentos às partes e atuado diligentemente para a formalização do instrumento particular de promessa de compra e venda, a comissão de corretagem pode não ser devida, caso o resultado útil não seja obtido pelas partes. É necessário, como bem referido por Gustavo Tepedino8, que seja identificada a causa do contrato de corretagem, seja no que tange à exigibilidade da remuneração devida, seja no que concerne à aplicação da disciplina compatível com o contrato. E a causa da corretagem, no âmbito da incorporação imobiliária, é justamente que incorporador e dono do terreno firmem não apenas um contrato preliminar, mas que obtenham o resultado útil com o contrato definitivo. A causa do contrato de corretagem de um contrato de compra e venda de uma casa já construída difere completamente da aquisição de um terreno pretendido para o desenvolvimento de um empreendimento imobiliário, que requer uma série de investigações para confirmar a viabilidade construtiva. Justamente por isso que antes de formalizar o vínculo contratual com o corretor, o responsável pelo pagamento da comissão (normalmente o proprietário do terreno) estipula que a comissão de corretagem somente será devida caso o negócio jurídico pretendido não seja desfeito pelo incorporador, reputando o resultado útil da corretagem como a formalização definitiva do contrato. As demandas judiciais que envolvem a pretensão do corretor de obter a comissão de corretagem mesmo após a extinção do vínculo contratual do incorporador e dono no terreno têm sido frequentes nos tribunais. Em tais situações, caso a dilação probatória demonstre que a incorporadora resolveu extinguir o vínculo jurídico de forma motivada, ou seja, porque questões técnicas e jurídicas comprovaram a inviabilidade do empreendimento, o que autoriza o uso da cláusula resolutiva expressa, a comissão de corretagem não é devida, porque não obtido o resultado útil. Na jurisprudência, podemos destacar julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo9 em que se determinou que a comissão de corretagem somente seria devida caso houvesse aprovação do projeto pretendido pela incorporadora e a efetiva concretização do negócio jurídico definitivo. No âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça10, também há diversos julgados que determinam que a comissão de corretagem somente é devida se houver a conclusão efetiva do negócio. Naturalmente há maior segurança jurídica quando as partes estão diante de um contrato com pouca incompletude e cláusulas adequadas e claras a respeito dos principais riscos envolvendo o negócio jurídico. Se a promessa de venda e compra permite expressamente a resolução do vínculo contratual em razão da cláusula resolutiva expressa, retirando-se a eficácia do contrato por questões delimitadas no contrato, a ocorrência de tais fatos permite a extinção do vínculo e, naturalmente, o resultado útil da corretagem não é alcançado. Bem definida essa questão, o contrato de corretagem também pode estabelecer expressamente que o corretor apenas receberá se tal resultado útil for obtido, o que facilita a resolução do conflito, pelo julgador. Por outro lado, nem sempre os contratos de compra e venda são elaborados com o uso da cláusula resolutiva expressa ou estabelecem claramente a possibilidade de o incorporador (ou o vendedor) não seguir com o contrato. Também é corriqueiro que o vínculo jurídico com o corretor não seja formalizado por escrito, o que traz dificuldades ao julgador para saber qual a comissão devida e quem efetivamente foi o contratante. Diante da ausência de contrato de corretagem ou da insuficiência de informações no texto contratual, temos, para nós, que o recebimento da comissão, no negócio jurídico firmado entre incorporador e dono do terreno, fica condicionado à formalização do negócio jurídico definitivo (e não preliminar). Da mesma forma, no silêncio do contrato, alcançado o resultado útil, regra geral, o pagamento da comissão competirá a quem propõe ao corretor intervir na negociação, tal como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça11. Assim, na incorporação imobiliária e no âmbito do contrato firmado entre incorporador e dono do terreno, a melhor interpretação à obtenção do resultado útil é a efetiva formalização do negócio jurídico e, caso o incorporador exerça licitamente o direito conferido na cláusula resolutiva expressa, a extinção do contrato não gera ao corretor a comissão de corretagem. __________ 1 TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson. Qualificação e disciplina do contrato preliminar no Código Civil Brasileiro. In: BARBOSA, Henrique; SILVA, Jorge Cesa Fereira da (coord.). A evolução do Direito Empresarial e Obrigacional. v. 2. São Paulo: Quartier Latin, 2021. p. 37-38. 2 A respeito das distinções entre a cláusula resolutiva expressa e a condição resolutiva, bem como seu correto emprego nos contratos de compra e venda, vide: TERRA, Aline Miranda Valverde. Condição resolutiva, condição suspensiva ou cláusula resolutiva expressa, eis a questão. Migalhas. Publicado em 07/10/2021. Disponível aqui. Acesso em: 11 out. 2021. 3 De fato, a dispensa do proununciamento judicial para a resolução do contrato é questão ainda controversa na jurisprudência. Contudo, em 2021, o Superior Tribunal de Justiça, revendo seu posicionamento mais recente, entendeu pela possibilidade de resolução do contrato de maneira extrajudicial. (REsp 1789863/MS, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 10/08/2021, DJe 04/10/2021). 4 TERRA, Aline de Miranda Valverde. Cláusula resolutiva expressa. Belo Horizonte: Fórum, 2017. p. 35. Ainda segundo a autora "[...] entende-se legítima a pactuação pelos contratantes, com base na autonomia privada, de cláusulas resolutivas por meio das quais se estabeleça a resolução da relação obrigacional diante da verificação ou constatação de qualquer outro evento, além desses que interferem diretamente no programa econômico do contrato e que conformam, portanto, a cláusula resolutiva expressa, desde que não se trate de eventos qualificados como condição". (Idem, p. 69, nota de rodapé n. 174). 5 COLTRO, Antônio Carlos Mathias. Contrato de corretagem imobiliária. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 32. 6 No mesmo sentido, como bem referido por Maria Helena Diniz: "[...] na mediação o serviço é prometido como meio para a consecução de certa utilidade; o proprietário do bem a ser vendido, ao contratar o corretor, não objetiva o serviço por ele prestado, mas o resultado útil, que é a obtenção da vontade do contratante para a conclusão do negócio. Logo, apenas quando se verifica tal utilidade é que o corretor terá direito à remuneração. O serviço do mediador somente traduzirá valor econômico quando resultar no acordo para a efetivação do contrato, que constitui a finalidade de seu trabalho. [...]". (DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. v. III. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 394). 7 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 144. 8 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 144. 9 "Apelação Cível. Comissão de corretagem. Embargos à execução. Execução de título extrajudicial fundada em contrato denominado 'Instrumento Particular de Opção de venda e Compra com permuta e outras avenças', mediante o qual a compradora, após aprovação do projeto pela Prefeitura, poderá optar pela compra dos imóveis ofertados pelos vendedores. Sentença de improcedência dos embargos. A controvérsia dos autos cinge-se em saber se a comissão de corretagem é devida, considerando que o contrato previa, expressamente, que a comissão só seria devida após o comprador optar pela compra, que, por sua vez, só ocorreria se aprovado o projeto pela Municipalidade. Cláusula 'sucess fee'. Projeto que ainda não foi aprovado pela Prefeitura. Comissão de corretagem que ainda não é devida. Para a execução iniciada pelo exequente, o título deveria ser certo, líquido e exigível. No caso, o valor ainda não é exigível, pois a condição para o recebimento da comissão ainda não ocorreu. Observo que, caso o projeto não seja aprovado, de forma definitiva, ou a compradora não se manifeste, por este ou outro motivo, na compra dos imóveis em questão, a comissão não será devida, pois, nessa hipótese, haverá desistência, e, não, arrependimento. Recurso provido para acolher os embargos à execução e extinguir a execução". (TJSP; Apelação Cível 1017350-54.2018.8.26.0001; Relator (a): Morais Pucci; Órgão Julgador: 35ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional I - Santana - 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/01/2022; Data de Registro: 24/01/2022). 10 Nesse sentido: "CIVIL. CORRETAGEM. COMISSÃO. COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. NEGÓCIO NÃO CONCLUÍDO. RESULTADO ÚTIL. INEXISTÊNCIA. DESISTÊNCIA DO COMPRADOR. COMISSÃO INDEVIDA. HIPÓTESE DIVERSA DO ARREPENDIMENTO. 1. No regime anterior ao do CC/02, a jurisprudência do STJ se consolidou em reputar de resultado a obrigação assumida pelos corretores, de modo que a não concretização do negócio jurídico iniciado com sua participação não lhe dá direito a remuneração. 2. Após o CC/02, a disposição contida em seu art. 725, segunda parte, dá novos contornos à discussão, visto que, nas hipóteses de arrependimento das partes, a comissão por corretagem permanece devida. Há, inclusive, precedente do STJ determinando o pagamento de comissão em hipótese de arrependimento. 3. Pelo novo regime, deve-se refletir sobre o que pode ser considerado resultado útil, a partir do trabalho de mediação do corretor. A mera aproximação das partes, para que se inicie o processo de negociação no sentido da compra de determinado bem, não justifica o pagamento de comissão. A desistência, portanto, antes de concretizado o negócio, permanece possível. 4. Num contrato de compra e venda de imóveis é natural que, após o pagamento de pequeno sinal, as partes requisitem certidões umas das outras a fim de verificar a conveniência de efetivamente levarem a efeito o negócio jurídico, tendo em vista os riscos de inadimplemento, de inadequação do imóvel ou mesmo de evicção. Essas providências se encontram no campo das tratativas, e a não realização do negócio por força do conteúdo de uma dessas certidões implica mera desistência, não arrependimento, sendo, assim, inexigível a comissão por corretagem. 5. Recurso especial não provido. (REsp 1183324/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/10/2011, DJe 10/11/2011)". No mesmo sentido, vide REsp 753.566/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/10/2006, DJ 05/03/2007, p. 280) (AgInt no REsp 1484193/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/05/2020, DJe 12/05/2020) (AgInt no AREsp 1719187/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 08/02/2021, DJe 23/02/2021). 11 DIREITO CIVIL. OBRIGAÇÃO PELO PAGAMENTO DE COMISSÃO DE CORRETAGEM. Inexistindo pactuação dispondo em sentido contrário, a obrigação de pagar a comissão de corretagem é daquele que efetivamente contrata o corretor. [...] Observe-se que, no mercado, há hipóteses em que é o proprietário (vendedor) do imóvel que busca alguém para comprá-lo. Em outras, o contrário ocorre, ou seja, é o comprador que busca a aquisição de imóvel. Em qualquer dos casos, a partir do momento em que o corretor é chamado para ingressar na relação entre comprador e devedor, passa a ser devida a sua comissão. O encargo, pois, do pagamento da remuneração desse trabalho depende, em muito, da situação fática contratual objeto da negociação, devendo ser considerado quem propõe ao corretor nela intervir. Independentemente dessas situações, existindo efetiva intermediação pelo corretor, as partes podem, livremente, pactuar como se dará o pagamento da comissão de corretagem. Há, porém, casos em que tanto o comprador quanto o vendedor se acham desobrigados desse encargo, pois entendem que ao outro compete fazê-lo. Há casos ainda em que essa pactuação nem sequer existe, porquanto nada acordam as partes a respeito, daí surgindo a interpretação que se ampara no art. 724 do CC. Em face dessas dúvidas ou omissões e em virtude da proposta dirigida inicialmente ao corretor, conforme acima exposto, é justo que a obrigação de pagar a comissão de corretagem seja de quem efetivamente contrata o corretor, isto é, do comitente, que busca o auxílio daquele, visando à aproximação com outrem cuja pretensão, naquele momento, está em conformidade com seus interesses, seja como comprador ou como vendedor. Ressalte-se ainda que, quando o comprador vai ao mercado, pode ocorrer que seu interesse se dê por bem que está sendo vendido já com a intervenção de corretor. Aí, inexistindo convenção das partes, não lhe compete nenhuma obrigação quanto à comissão de corretagem, pois o corretor já foi anteriormente contratado pelo vendedor. Diferente é a hipótese em que o comprador, visando à aquisição de bem, contrate o corretor para que, com base em seu conhecimento de mercado, busque bem que lhe interesse. Nessa situação, a tratativa inicial com o corretor foi do próprio comprador. (REsp 1.288.450-AM, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 24/02/2015, DJe 27/02/2015).
O futuro chegou... mas será que é virtual? Foi publicada no dia 09/03/2022, a lei 14.309/22 que "Altera a lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e a lei 13.019, de 31 de julho de 2014, para permitir a realização de reuniões e deliberações virtuais pelas organizações da sociedade civil, assim como pelos condomínios edilícios, e para possibilitar a sessão permanente das assembleias condominiais". Apenas para fins de contextualização, a explosão do debate acerca possibilidade de realização das reuniões virtuais da Assembleia Geral do Condomínio Edilício teve seu ápice durante a pandemia da COVID-19, especialmente diante da entrada em vigor do RJET (lei 14.010/20) que previa a possibilidade de reuniões a "ocorrer, em caráter emergencial, até 30 de outubro de 2020, por meios virtuais, caso em que a manifestação de vontade de cada condômino será equiparada, para todos os efeitos jurídicos, à sua assinatura presencial" (art. 12). Ocorre que o próprio texto legal (parágrafo único do art. 12), trazia a mera possibilidade da realização, prevendo solução para hipótese de impossibilidade de fazê-lo, sem introduzir de forma perene a figura a reunião virtual. Após outubro de 2020, o mercado literalmente se dividiu em três: (i) aqueles que defendiam cegamente a realização das reuniões virtuais; (ii) aqueles totalmente avessos à possibilidade de, fora do RJET, se pensar no modelo; (iii) aqueles que viam a inovação como algo interessante, mas que dependi a de um afinamento técnico, pois não haveria na legislação vedação ao meio virtual. É preciso esclarecer que na seara societária, por exemplo, o DREI editou a IN DREI 79/20, que regulamentou "a participação e votação a distância em reuniões e assembleias de sociedades anônimas fechadas, limitadas e cooperativas", tentando apaziguar os temores do mercado, sendo sido adotada a modalidade virtual como praxe de diversas sociedades. Porém, por não depender das formalidades empresariais para sua gestão, os Condomínios Edilícios não contavam com um órgão regulatório que pudesse trazer segurança às reuniões virtuais, que começaram a se proliferar das mais diversas formas e modelos, albergadas pelo argumento da forma livre. Mas qual seria o problema da realização de uma reunião virtual? Para entender o desafio, é preciso compreender primeiro como se constrói a liturgia da reunião presencial. Buscando, inicialmente, a lei, a reunião da assembleia condominial não encontra normativa ritualística, tendo o legislador infraconstitucional eleito questões mais amplas como objeto de sua preocupação: a) a necessária convocação de todos os condôminos (art. 1.354 do Código Civil); b) os quóruns de instalação e deliberação (art. 1.352 e 1.353 do Código Civil); c) a regularidade de convocação (art. 1.350 e 1.355 do Código Civil); d) o direito de voto, voz e participação na reunião (art. 1.335, III do Código Civil e art. 24, §4º da lei 4.591/64); (e) dentre outros. Mas então de onde emana a estrutura do ritual assemblear? A reposta mais intuitiva seria a Convenção, pois, segundo o art. 1.334 do Código Civil e art. 9º, §3º, "h" da lei 4.591/64, dela deverá constar forma e modo da reunião da Assembleia Geral. Contudo, no dia-a-dia da prática jurídica, se constata grande pobreza das Convenções ao regulamentar a procedimento da reunião, limitando-se muitas vezes à definição das funções do presidente de mesa, limites de representação e intervalo entre primeira e segunda convocação. Para solucionar o problema, poder-se-ia pensar na analogia plena com as normas societárias, recurso hermenêutico previsto no art. 4º da LINDB, mas o risco de sua aplicação encontra substrato na natureza sui generis do Condomínio Edilício, ente despersonalizado, mas dotado, inclusive em visão pragmática, de diversos atributos que compõem a personalidade jurídica autônoma. Todavia, é preciso registrar que, quase de forma inconsciente, acaba-se por absorver a ritualística empresarial para as reuniões condominiais, a exemplo do art. 126 da Lei das SA, em que se deve exigir a comprovação da legitimidade do acionista, com a apresentação de documento hábil, ou do art. 128 do mesmo diploma, no modelo composição de Mesa para condução dos trabalhos assembleares. O que se constata é que a reunião presencial da assembleia condominial tem a segurança de sua liturgia na consolidação de costumes e usos sociais, que por anos e anos foram testados no mercado e no judiciário, e formam hoje uma espécie de procedimento padrão, tendo sua legalidade embasada pelo art. 4º da LINDB e no arts. 113 c/c 185 do Código Civil. A questão é que a reunião virtual não possui esse histórico para lhe dar segurança, estando aí colocado um paradoxo: ora, se a reunião presencial, na sua fonte normativa, não dependeu de um ritual positivado para a sua validade, porque isto seria exigível de uma reunião virtual? A reposta está no fato de que foi preciso grande esforço para se demonstrar que presencial ou virtual são espécies de um mesmo gênero, qual seja a reunião da Assembleia Geral do Condomínio Edilício e, dessa forma, desde que atendam a essência do gênero, podem existir cada qual com sua peculiaridade. Os plurais modelos de reunião virtual, com seus modos de ser e muitas vezes supressões dessa essência do gênero, causou estranhamento na comunidade jurídica e no mercado, que enxergou na falta de regulamentação ritualística um risco à segurança da validade dos atos deliberados. Verdade seja dita, as reuniões virtuais ganharam terreno em um tempo de aclamação e apoio às abordagens disruptivas dos meios tradicionais e se afiguram (positivamente) como um caminho sem volta. Para contornar os problemas da falta de costumes e usos, com intuito de dar maior segurança e consolidar o uso das reuniões virtuais, foi votada e sancionada a lei 14.309/22. Assim, o art. 1.354-A do Código Civil, introduzido pelo novel diploma, autoriza a realização da reunião virtual, tendo apenas dois requisitos gerais: (i) ausência de vedação convencional (inciso I) e (ii) preservação do direito de voz, de debate e de voto (inciso II). O dispositivo é cirurgicamente alinhado com o contexto jurídico atual: o inciso I se alinha com a previsão do art. 1.334 do Código Civil e art. 9º, §3º, "h" da lei 4.591/64 e o inciso II, com os direitos elencados no art. 1.335, IV do Código Civil. Neste ponto, merece destaque a garantia de preservação dos direitos condôminos, pois é entendimento jurisprudencial remansoso que "a assembleia, na qualidade de órgão deliberativo, é o palco onde, sob os influxos dos argumentos e dos contra-argumentos, pode-se chegar ao voto que melhor reflita a vontade dos condôminos" (REsp 1120140, STJ) e "não  obstante  ao  formato  da  assembleia,  se  virtual, presencial ou híbrida, o que deve ser resguardado é a  participação  efetiva  de  todos  os  condôminos  e  a lisura do procedimento" (AI 026307-54.2021.8.19.0000, TJRJ). A reunião da Assembleia Geral é campo necessariamente democrático1, o que exige o somatório da participação2, da igualdade de voz para todos e da clareza das informações e temas deliberados. Pinçando-se um ponto, para viabilizar a plena participação e transparência, o §1º do art. 1.354-A, exige que fique evidenciado o meio de realização (seja virtual puro ou híbrido), instruções de acesso, a manifestação e a coleta dos votos, com a descrição pormenorizada de tudo no edital de convocação (§4º do art. 1.354-A) e com a disponibilização de documentos da forma mais adequada ao acesso qualitativo dos participantes (§6º do art. 1.354-A). Tal medida prestigia ainda a necessária garantia de que o exercício de todos os direitos e interesses em tela, sejam de acordo com a boa-fé e com a adequação à finalidade do ato, evitando-se a caracterização de qualquer tipo de abuso, nos termos do art. 187 do Código Civil. No atual cenário, a opção legislativa é pela regulamentação mais ampla, deixando a forma e desenho das reuniões livres para se adequar às idiossincrasias de cada entidade condominial. De uma forma geral, se está diante de um convite a criar modelos, que devem respeitar as diretrizes traçadas; a espécie deve respeitar a essência do gênero, sem maiores preocupações operacionais. Os demais aspectos como a necessária convocação de todos os condôminos, os quóruns de instalação e deliberação e a forma de convocação continuam submetidos ao mesmo rigor e modos descritos na legislação e na Convenção, sem que seja permitida sua supressão3. Por outro lado, não foram esquecidas ou ignoradas questões procedimentais relevantes, definidas para dar maior segurança aos resultados alcançados. Assim, poder-se destacar o exemplo do §3º do art. 1.354-A, que exige que a ata eletrônica seja lavrada ainda no curso da reunião, depois de computados e divulgados os resultados das deliberações, podendo tal normativa ser complementada por normas previstas em Regimento Interno ou aprovadas por maioria simples em reuniões convocadas para essa finalidade (§5º do art. 1.354). E sobre essas normas complementares, vale lembrar que serão essenciais, notadamente para estruturar as reuniões híbridas, a acessibilidade aos meios de participação, a guarda dos documentos gerados "na e para" a reunião, a comprovação de legitimidade do condômino, etc. Pois bem: o futuro das assembleias condominiais é virtual? Não necessariamente. A reunião virtual não é um fim em si mesmo, mas o caminho para a melhoria e a eficiência das relações humanas. Se para alguns casos essa melhora se consubstanciar no virtual, abracemos com total intensidade. Caso contrário, mantem-se o modelo mais tradicional. Em todo caso, criou-se mais um caminho eficiente para a condução e a gestão dos complexos Condomínios Edilícios. _____________ 1 MELLO, Marco Aurélio Bezerra. Direito civil: coisas. 2ª ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense, 2018. Pág. 275 2 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 5ª ed. ver., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, 2017. Pág. 122 3 MELLO, Marco Aurélio Bezerra. Direito civil: coisas. 2ª ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense, 2018. Pág. 273