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SERP e extratos: saberá o CNJ abandonar as vozes do atraso?

quinta-feira, 30 de março de 2023

Atualizado às 07:38

Foi publicado neste informativo, no dia 24/3/2023, o artigo intitulado "Extratos eletrônicos, microssistemas e o Poder Judiciário", de autoria do Prof. Ricardo Campos.

O articulista é um dos juristas apontados em portaria do Corregedor Nacional de Justiça, o Ministro Luis Felipe Salomão, para compor comissão cujo objetivo é auxiliar a Corregedoria a regulamentar a lei 14.382/2022, que introduziu o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos - SERP, e as alterações por ela feitas na Lei de Registros Públicos, a lei 6.015/1973.

Como um dos autores do texto original da Medida Provisória 1.085/2021, que originou a lei 14.382/2022, tenho procurado contribuir com o debate público que permeia sua implantação. Ademais, alertar a comunidade jurídica sempre que me deparo com visões especialmente divergentes ou deturpadoras dos embasamentos dogmático e funcional que motivaram a introdução do SERP. Essas deturpações são, cada vez mais, minoritárias; quando (res)surgem, normalmente evidenciam interesses puramente financeiros ou corporativos, que não merecem acolhida.

Ao digitalizarmos, padronizarmos e centralizarmos o acesso aos Registros Públicos, a despeito do óbvio ganho social, houve certamente perdedores.

Entre os registradores, há os que perderam receita direta. A redação atual do art. 130 da lei 6.015 determina que os registros em Títulos e Documentos se realizarão "no domicílio das partes contratantes e, quando residam estas em circunscrições territoriais diversas, far-se-á o registro em todas elas". Por minha sugestão, a lei 14.382/2022 modificou esse artigo para que o registro se dê apenas no domicílio de um dos outorgantes ou garantidores, eliminando a duplicidade de atos registrais idênticos, inútil num contexto de centralização digital e, a rebote, reduzindo o custo transacional dos cidadãos com emolumentos registrais. Não por acaso, a alteração proposta sofreu resistência e foi a única submetida a vacatio legis, de mais de 18 meses, entrando em vigor apenas em 1º de janeiro de 2024.

A escolha do domicílio do outorgante como o único competente é natural. Havendo direitos reais que gravem os bens de uma pessoa, que os outorgou, a publicidade registral e as buscas por registros de base pessoal se concentrarão no respectivo domicílio. É o mesmo que ocorre com as distribuições judiciais, que se cadastram e buscam nos domicílios dos réus, jamais dos autores. Convidado a dar aulas em uma pós-graduação lato sensu, um registrador da Grande São Paulo tem classificado a Lei do SERP como algo "pior que o Genocídio Ianomâmi", segundo relatos, e feito sobre mim comentários desabonadores. Compreende-se perfeitamente a indignação visceral, quando o interesse público impõe a um agente delegado a perda da competência para o registro de todos os contratos de um dos maiores bancos do país, sediado em sua comarca. O que não se deve admitir, todavia, é que interesses privados venham a fantasiar-se de virtuosa e republicana defesa doutrinária, ademais em ambiente acadêmico ou institucional.

Aderindo à linha argumentativa lastreada em comparações exóticas, o artigo do Prof. Ricardo Campos infere que a expansão do uso de extratos registrais, a partir da Lei do SERP, seria um movimento alegadamente semelhante à degradação jurídica experimentada com a ascensão do nazismo. Sem citar-me nominalmente, o autor reage à minha manifestação na audiência pública realizada, em fevereiro, na sede do CNJ, em Brasília, ocasião em que defendi a nova lei e a ampliação na utilização dos chamados extratos, resumos eletrônicos que substituem o contrato integral no envio aos cartórios, simplificando o processo de registro. Em suas palavras, referindo-se textualmente ao exemplo da Alemanha entreguerras, "figuras jurídicas podem perverter e levar à [sic] mutações jurídicas indesejáveis sem a necessidade de uma mudança legislativa no núcleo duro dos direitos". A perversão da Lei do SERP e do uso de extratos estaria no enfraquecimento da escritura pública, da prerrogativa dos registradores em qualificar integralmente os títulos e do poder de polícia exercido pelo Judiciário.

Entre os tabeliães, parece haver uma minoria incomodada com os avanços tecnológicos nos registros públicos, cuja maior facilidade de acesso poderia tornar irrelevante a escritura pública ou, de outro modo, causar prejuízo à atividade notarial. Nada mais falso que esse pensamento. De um lado, é verdade que a função do notário nas compras e vendas puras e simples, nos contratos de garantia e demais contratações padronizadas, em um mundo interligado e digital, tende a perder relevância. Essa perda não é motivada pela introdução do SERP e dos extratos registrais, mas simplesmente pelo avanço tecnológico. A inteligência artificial e os meios de identificação digitais, em maior medida; a tokenização ou os smart contracts, em menor medida, tendem a reduzir a necessidade de intervenção de um agente dotado de fé pública na formalização de negócios jurídicos de massa. A tentativa de sabotagem do SERP, ainda que bem-sucedida, jamais mudaria esse cenário. Por outro lado, ainda que a forma da intervenção notarial sofra mudanças, a função da fé pública não será superada - na recente evolução do sistema jurídico brasileiro, os notários ganharam em qualidade: tornaram-se relevantíssimos no Direito Processual Civil, por exemplo, em matéria de prova; tornaram-se protagonistas da usucapião extrajudicial e, finalmente, na lei 14.382/22 foram prestigiados como agentes essenciais à adjudicação compulsória de imóvel. A constatação e transmutação jurídica dos fatos da vida pelos tabeliães, atividade intelectual, deverá suplantar os atos de intervenção puramente formal, em escrituras simples e reconhecimentos de firma. Talvez o abandono gradual desses atos formais e de trabalho repetitivo resulte, no futuro, em menor necessidade numérica de tabeliães e escreventes - mas haverá, em contrapartida, necessidade de tabeliães mais qualificados e, por consequência, mais valorizados.

Para introduzir seu pensamento, o Prof. Ricardo Campos afirma que os extratos surgem, no Brasil, "de um imperativo da necessidade de automatização de processos em larga escala envolvendo bens imóveis dentro do sistema registral ligado ao sistema financeiro". Os extratos imobiliários levariam então à coexistência de dois sistemas: um geral e formalista, do título integral e da escritura pública; e um microssistema simplificado, com uso do extrato e do instrumento particular com força de escritura pública, restrito às instituições - majoritariamente financeiras - participantes do SFH e do SFI. Eis o primeiro grande equívoco do eminente articulista.

O art. 38 da lei 9.514/1997, que introduziu a alienação fiduciária de imóveis, dispensa a escritura pública para a formalização de todos os contratos dessa modalidade de garantia real, ainda que não envolvam o SFH ou o SFI, e mesmo entre pessoas físicas. A interpretação majoritária do mesmo artigo tem permitido, inclusive, a dispensa da escritura pública nas alienações de imóvel com pacto adjeto de alienação fiduciária, fora do SFH ou SFI, em diversas unidades da Federação, especialmente pelos incorporadores imobiliários. Por sua vez, o §6º do art. 26 da lei 6.766/1979, que trata dos loteamentos, foi introduzido pela lei 9.785/1999 e dispensa a escritura pública para a transmissão da propriedade de todo imóvel, desde que pelo loteador ao adquirente. Nos loteamentos, basta a apresentação ao registrador imobiliário da promessa de compra e venda, celebrada por instrumento particular, e da prova de sua quitação para transmitir a propriedade. A mesma solução, vale dizer, tem sido pregada por respeitada doutrina a toda hipótese de prévia promessa de compra e venda, a exemplo do seguinte enunciado aprovado na I Jornada de Direito Civil do CJF, de nº 87: "Considera-se também título translativo, para fins do art. 1.245 do novo Código Civil, a promessa de compra e venda devidamente quitada (arts. 1417 e 1418 do CC e § 6º do art. 26 da lei 6.766/79)". Ainda, o art. 8º da lei 10.188/2001 dispensou a escritura pública para a aquisição de imóveis, por pessoa física, por meio do Programa de Arrendamento Residencial. São alguns exemplos do desuso da escritura pública nas aquisições imobiliárias, especialmente nas contratações massificadas.

Dessa feita, não existe, na realidade brasileira, a dicotomia que se pretendeu estabelecer, restringindo a dispensa da escritura pública (e o registro mais simples e ágil, por meio de extrato) ao microssistema do SFH/SFI. Nem foi essa a intenção dos autores da Medida Provisória 1.085/2021 ou teríamos ali sedimentado, expressamente, redação semelhante à já existente no Provimento nº 94/2020 do CNJ, que legitima a apresentarem extratos imobiliários apenas os "agentes financeiros autorizados a funcionar no âmbito do SFH/SFI, pelo Banco Central do Brasil". Ao contrário, nossa intenção era que o CNJ paulatinamente pudesse admitir, por seu poder regulatório delegado pela nova lei, novos agentes como apresentantes de extratos. E, não por coincidência, passei a sugerir que pudessem apresentar extratos, além dos agentes financeiros que já detêm essa legitimidade, também as companhias securitizadoras - que exercem função análoga, embora sem serem financeiras -, e os loteadores e incorporadores. Estes, por duas razões: (i) já são obrigados a alienar imóveis por meio de contratos padronizados previamente depositados no registro imobiliário, de modo que já previamente submetidos ao crivo do registrador; e (ii) já são autorizados, por lei, a transmitir imóvel sem recorrer à escritura pública, como acima demonstrado.

Em um segundo grave equívoco, portanto, o Professor aventa, em tom alarmista, que "a Lei do SERP permite o uso de extratos eletrônicos (...) que podem ser produzidos pelas partes (...) e apresentados a registro por elas ou por terceiro interessado", indiscriminadamente, por "pessoas físicas ou jurídicas de todos os portes". No mundo real, jamais se pensou em extratos apresentados por "qualquer das partes" ou, muito menos, por "terceiros interessados". Nas dezenas de países em que existem extratos eletrônicos, prevalece a regra de que são apresentados exclusivamente pelo credor, titular do direito que se pretende registrar. São esses os termos em que, na parcela da comunidade jurídica dedicada ao estudo da modernização dos Registros Públicos, discutem-se extratos e sua eventual expansão no registro imobiliário.

Ninguém defende, até onde se sabe, a substituição do sistema registral imobiliário pelos extratos eletrônicos, nem mesmo que possam ser apresentados por qualquer um ou para qualquer negócio jurídico. São fantasmas que já procurei exorcizar noutro artigo publicado neste Informativo, há cerca de um ano, intitulado "MP 1.085/21: A luz dos fatos para espantar os monstros noturnos".

O uso de extratos no registro imobiliário tem sentido sobretudo em relação aos contratos massificados, como os de compra e venda simples realizada pelo próprio empreendedor (loteadores, incorporadores) e os de financiamento e garantia, realizados com agentes financeiros e agentes do mercado de capitais, a exemplo das companhias securitizadoras. Esses contratos, por serem padronizados e, no caso de loteadores e incorporadores, previamente depositados na circunscrição imobiliária em forma de minuta, estão plenamente disponíveis para a supervisão e a fiscalização das atividades extrajudiciais, feita pelo Poder Judiciário. Não se pretende, em sentido inverso, facultar o uso do extrato nos negócios mais complexos, que dependam de efetiva qualificação, cognição e interpretação do registrador para ingresso no fólio real.

Afirma o Prof. Ricardo Campos que, "nesse novo contexto, os oficiais de registro não terão acesso ao instrumento pactuado, mas somente ao extrato produzido pelo pacto entre privados, que tomarão como fundamento para a qualificação do ato jurídico de base e inscrição registral. Dessa forma, não haverá a possibilidade de exercício de poder de polícia (...) sobre elementos que não constem no extrato". E isso é perfeitamente verdade quanto ao caso concreto, embora o poder de polícia esteja assegurado na fiscalização das instituições financeiras ou sobre os contratos padronizados previamente depositados, dos quais os atos concretos se originam, como acabo de explicar.

A qualificação registral também está assegurada nos extratos, como o referido articulista acaba por reconhecer, o que se dará pelo cotejo dos elementos do extrato, da matrícula e dos documentos de suporte, que tornam especial cada negócio jurídico. Não haverá, entretanto, constante (re)qualificação das cláusulas contratuais e de aspectos formais do negócio jurídico de base. Esse olhar menos disperso do registrador, que alguns alardeiam como temerário, é a grande vantagem do sistema de extratos. Na prática, se evitará que um mesmo contrato, já examinado e aceito por registradores, escreventes e pelo Judiciário país afora, tenha suas cláusulas reescritas e reavaliadas ao bel prazer do escrevente de plantão, resultando aleatoriamente em negativas de registro e, frequentemente, em exigências ininteligíveis e injustificáveis.

O que alguns têm defendido como uma inabdicável prerrogativa da qualificação registral não passa, muitas vezes, de uma análise mecânica supostamente minuciosa feita por prepostos, que em realidade resulta numa enorme variabilidade de opiniões pouco balizadas sobre questões juridicamente irrelevantes ou, simplesmente, na negativa do acesso ao registro. Essas idiossincrasias do sistema registral nada acrescem à segurança jurídica, mas certamente resultam no aumento dos prazos e custos transacionais, na frustração das partes e num grave prejuízo à confiança social nos Registros Públicos. Ao fim, são solo fértil às iniciativas verdadeiramente pararregistrais. Causa espécie que algum registrador se posicione contrariamente ao SERP, um sistema eletrônico gerido por registradores e supervisionado pelo CNJ, quando a seu largo brotam diuturnamente soluções oriundas do "Direito Digital" com a declarada pretensão de aposentar os Registros Públicos.

Para os registradores, há também um avanço irreversível da tecnologia que irá tornar ultrapassadas atividades meramente burocráticas e formais. Isso inclui o exame de atos padronizados, para os quais as comunidades jurídica e econômica ocasionalmente apresentam alternativas bradadas como mais rápidas, seguras e baratas: mas, afinal, o Blockchain e os tokens podem substituir o Registro de Imóveis? Penso que não. Talvez o abandono gradual do exame minucioso de títulos padronizados, meramente formal e de trabalho repetitivo resulte, no futuro, em necessidade de menor número de registradores e escreventes, que se dedicarão aos casos em que há efetivo desafio à altura de um jurista - haverá, em contrapartida, necessidade de registradores e escreventes mais qualificados e, por consequência, repito, mais valorizados.

O Prof. Ricardo Campos, finalmente, apresenta dois questionamentos em vista desse novo cenário, aos quais cabe resposta. Primeiro, se haveria "uma nova delimitação do regime de responsabilidade dos oficiais de registros visto que termos contratuais não presentes no extrato poderiam extrapolar o dever de conhecimento dos elementos essenciais à qualificação do título originário". Nesse ponto, complementa se "poderia se questionar se os oficiais de registros não poderiam ser acionados judicialmente à [sic] responderem sobre atos/fatos omissivos ou comissivos decorrentes do exercício de suas funções que não correspondam fielmente ao contido no extrato, quando este tenha sido formado por terceiros de maneira incompleta ou viciada". Parece evidente que o registrador não poderá responder por algo que não examinou. Portanto, a limitação da qualificação ao conteúdo do extrato é, além de tudo, uma proteção ao oficial de registro, não apenas em vista das partes, mas também de responsabilidades anômalas que ocasionalmente decorrem da delegação, como a responsabilidade tributária estendida aos oficiais pelos municípios na fiscalização do recolhimento do ITBI.

O segundo e último questionamento diz respeito à oponibilidade do conteúdo contratual. Afinal, "a parte não poderá opor perante terceiros direitos que não estejam ali (no extrato) descritos, pois não gozam de publicidade registral". Essa afirmação é verdadeira em todos os países que adotam a forma de extrato e, para compreendê-la melhor e seus impactos, é necessário breve contextualização.

Desde os anos 1960, os EUA adotam o extrato como o único meio de registro para garantias sobre bens móveis - lá, não é possível, nem voluntariamente, apresentar o contrato integral para qualquer exame pelo registro. Há uma infinidade de literatura jurídica examinando o impacto dessa adoção nos EUA, com destaque à linha de Law and Economics1. Evidentemente, houve também nos EUA ceticismo quanto à maior propensão do sistema de extratos às fraudes, de modo que o alarmismo brasileiro a esse respeito chega seis décadas atrasado. A conclusão é que o ganho econômico na simplificação do acesso ao registro é enorme, como se pode esperar, mas o aumento de ocorrência de fraudes, nesse sistema, é supreendentemente desprezível. O principal fator mitigador de fraudes é justamente que a oponibilidade dos direitos reais decorre da publicidade de declarações prestadas pelos seus próprios titulares.

Em termos simples, se um banco credor apresenta uma garantia para registro e comete erro na transcrição das informações do contrato ao extrato, apenas duas consequências são lógica e legalmente possíveis: (i) primeiro, apenas aquilo que foi objeto de publicidade tornou-se oponível, de modo que, ao deixar de publicar algo, o credor prejudicou a oponibilidade do próprio direito (um exemplo: a garantia tinha por objeto dois bens, mas o extrato apenas mencionou um, de modo que apenas sobre um constituiu-se direito real); (ii) mesmo publicado, um direito convencional só é e permanece eficaz se decorrente de contrato válido, dado o caráter causal do nosso sistema - ou seja, de nada adianta pretender "inflar" seus direitos no extrato, pois diante da futura objeção de terceiro será necessário fazer prova do título. Enquanto não houver direitos controversos sobre a coisa, a publicidade não é posta à prova - sem controvérsia, a veracidade do registro é juridicamente irrelevante. Se houver controvérsia, entretanto, e esta ocorre em uma quantidade ínfima de casos, é preciso compreender que o registro goza apenas de presunção relativa, podendo a parte interessada fazer prova do seu direito. Finalmente, não custa lembrar que a grande maioria das garantias reais registradas jamais será executada. Segundo dados do Registro de Imóveis do Brasil, na média histórica, o número de consolidações de propriedade em excussão de alienação fiduciária equivale a 2% dos registros2.

Na mesma linha, a experiência norte-americana demonstra que, sendo apenas os credores e titulares dos direitos os responsáveis pela redação do extrato, há pouquíssimo espaço para fraude, simplesmente porque fraudar o extrato não é capaz de gerar qualquer benefício ao apresentante.

O sucesso no uso de extratos mobiliários, nos EUA, levou à sua adoção como modelo de melhores práticas por organismos internacionais e em mais de 45 países, inclusive na América Latina, como Colômbia e México. A Lei Modelo da ONU sobre Garantias Mobiliárias, aprovada em junho de 2016 no âmbito da UNCITRAL3 e ratificada pela Assembleia Geral por meio da Resolução 71/1361, de 2016, adotou o extrato como único modelo de registro de garantias reais sobre bem móveis - participei da redação da Lei Modelo como delegado do governo brasileiro, nomeado em 2015, e integrei a delegação até 2018, quando encerrou o mandato, na ONU, do grupo dedicado ao estudo das garantias reais. Desde 2020, integro o grupo responsável pela redação dos princípios para um processo de execução eficaz do UNIDROIT - Instituto Internacional para Unificação do Direito Privado, em Roma. Também nos textos que vêm sendo redigidos por esse grupo4, adota-se o sistema de extratos como modelo preferencial do registro de garantias reais sobre bens móveis, em seguimento à Lei Modelo da ONU. Como esperado, trata-se de grupo com grande participação de juristas de tradição romano-germânica, sendo um dos coordenadores Rolf Stürner, Professor Emérito da Albert-Ludwigs-Universität Freiburg. Há, com efeito, numerosa produção acadêmica em defesa da adoção dos princípios da Lei Modelo da ONU em países de tradição romano-germânica, incluindo o registro por extratos5. No caso brasileiro, dediquei algumas páginas ao tema no meu livro Garantias das Obrigações, publicado em 20176, em que relaciono diversas fontes e exemplos do uso de extratos.

Daí por que só posso crer que o Prof. Ricardo Campos, de quem desconheço interesses individuais que o desabonem para a função a que foi nomeado, tenha em boa-fé se deixado impressionar pelos velhos fantasmas que ecoam das vozes corporativas. Talvez lhe falte apenas conhecimento, em maior profundidade, da produção acadêmica atual sobre os registros eletrônicos. Ao afirmar que "a figura da "extratificação" se assemelha, em seus efeitos, a figuras como da utilização de atos infralegais para erodir ordens constitucionais ou da objetivação do direito para deteriorar a ordem de direito civil", permitiu-se comparar minha atuação e de outros estudiosos sérios a um dos capítulos mais tristes da Humanidade, o nazismo. No entanto, ignora que os extratos registrais são uma evolução do Direito Contemporâneo de reverberação mundial, celebrada inclusive no continente europeu e nos organismos internacionais. Criados no contexto do pós-guerra e oriundos da Liga das Nações, esses organismos prestam-se justamente ao oposto do que o articulista receia: ao modernizar e harmonizar institutos ancestrais, promovem a democratização do estado da arte, fortalecem os sistemas jurídicos e aprimoram seu impacto social, em cumprimento aos princípios constitucionais que, nos Estados republicanos, regem o interesse público. Espera-se que a Corregedoria Nacional de Justiça, ao regulamentar o tema, atente-se mais a esses princípios, deixando adormecer os ecos do atraso e da ignorância.

__________

1 J. ARMOUR, The Law and Economics debate about secured lending: lessons for European lawmaking? in H. Eidenmüller, E.-M. Kieninger (eds.), The Future of Secured Credit in Europe, ECFR special volume, p. 14, Berlin, De Gruyter, 2008.

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.  

4 Disponível aqui.

5 ALEJANDRO M. GARRO, Harmonization of personal property secutiry law: national, regional and global initiatives, in ULR, v. 1/2, p. 357 ss, 2003; Id., El concepto genérico, global e integrado de "garantía mobiliaria": perspectivas comparadas, in C. Larroumet (org), L'evolution des garanties mobilières dans les droits français et latino-americains, p. 87 ss, Paris, Édition Panthéon-Assas, 2016; GIULIANO G. CASTELLANO, Reforming Non-Possessory Secured Transactions Laws: A New Strategy?, in MLR, Vol. 78, No. 4, Jul. 2015, pp. 611-640; Id., Reverse engineering the law: reforming secured transactions law in Italy, in S V Bazinas, O Akseli (eds), International and Comparative Secured Transactions Law - Essays in honour of Roderick A Macdonald, Hart, 2017, pp. 285-326; LUIS. M. PESTANA DE VASCONCELOS, Direito das Garantias, 2ª. Ed, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 34-5; EVA-MARIA KIENINGER, Introduction: security rights in movable property within the common market and the approach of the study, in E.M. Kieninger (org.), Security Rights in Movable Property in European Private Law, p. 6, Cambridge, Cambridge University Press, 2004; JEAN-FRANÇOIS RIFFARD, Le Security Interest ou l'approche fonctionnelle et unitaire des sûretés mobilières, Presses Universitaires de la Faculté de Droit de Clermont-Ferrand / LGDJ, 1997, p. 25, nº 40.

6 FÁBIO R. P. E SILVA, Garantias das Obrigações, São Paulo, Ed. IASP, 2017, pp. 606 ss.