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O STJ, as sociedades de propósito específico e o processo de recuperação judicial

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Atualizado às 07:21

Os operadores do Direito (ao menos, em grande parte) buscam, a todo o momento, uma maior segurança jurídica das decisões judiciais proferidas, especialmente no que diz respeito aos Tribunais Superiores.

Por exemplo, quanto maior o grau de segurança e de previsibilidade jurídica proporcionada pelo sistema, mais azeitado o fluxo de relações econômicas. A relação entre segurança, previsibilidade e funcionamento do sistema é razão determinante para a tomada de decisão entre os players do mercado1. No mercado imobiliário, essa premissa não é diferente.

Nessa busca constante por uma maior segurança jurídica, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, recentemente, no REsp n. 1.958.062/RJ, que a sociedade de propósito específico (SPE) com patrimônio de afetação, próprio para um determinado empreendimento imobiliário, não se sujeita aos efeitos da ação de recuperação judicial. Tal decisão é fundamental para trazer maior segurança ao mercado imobiliário e beneficia, diretamente, o consumidor final (adquirente da unidade imobiliária, por exemplo) que terá a garantia e a segurança de que o empreendimento fruto daquela SPE não sofrerá os efeitos da recuperação judicial.

Para melhor entendermos a decisão proferida, dois pontos devem ser elucidados ao leitor, como o conceito de SPE e sua finalidade; e o conceito de patrimônio de afetação e suas consequências jurídicas.

A prática imobiliária já nos mostra no cotidiano que cada negócio imobiliário usualmente é representado por uma empresa individualizada, de forma a destacar e separar os seus resultados, em consonância às suas características e particularidades, sendo recomendada a estruturação por meio das popularmente chamadas SPEs (Sociedades de Propósito Específico), uma para cada empreendimento2.

Essa modalidade permite que pessoas e/ou empresas que não possuem, habitualmente, relação societária, possam criar uma empresa para cumprir determinada atividade específica. Sua grande vantagem (além dos benefícios tributários) é a possibilidade de individualizar a receita, as despesas e as responsabilidades inerentes à atividade a ser executada.

Como bem dissertam Alexandre Tadeu Navarro Pereira Gonçalves e Rodrigo Antonio Dias, a SPE é empresa "destinada para uma obra ou uma operação específica, que já nasce com objeto e prazo de duração pré-determinados, visando exclusivamente o cumprimento daquele objeto, inclusive com a eventual participação de outros investidores ou parceiros"3. Dessa forma, os riscos da operação ficam segregados das obrigações próprias das demais empresas e negócios, dos sócios pessoas físicas (ou jurídicas) e das demais SPEs. E é essa segregação que, reduzindo os riscos da operação, permite uma maior facilidade na obtenção de recursos junto às instituições financeiras, maior flexibilidade junto aos fornecedores e prestadores de serviços de cada empresa.

Essa concepção trazida das SPEs possui relação direta com a ideia de afetação, trazida pelos artigos 31-A a 31-F da lei 4.591/64.

Melhim Namem Chalhub dispõe que o conjunto de direitos e obrigações de um empreendimento imobiliário fique segregado, tendo a exclusiva finalidade de conclusão da obra e entrega das unidades aos futuros adquirentes4. A partir dessa mesma ideia de segregação (também existente no conceito de SPE já trabalhado no presente artigo), vem o conceito de "patrimônio de afetação", que visa proteger a incorporação afetada contra os riscos patrimoniais de outros negócios da empresa incorporadora, para que seus eventuais insucessos em outros negócios não interfiram na estabilidade econômico-financeira da incorporação afetada5. Essa é a ideia trazida no art. 31-A da lei 4.591/64.

No que diz respeito à temática específica do presente artigo, qual seja, a incidência (ou não) dos efeitos da recuperação judicial da incorporadora em face da SPE constituída que está executando empreendimento sob o regime de afetação, passemos agora às devidas considerações.

O regime de afetação foi inserido na Lei da Incorporação (Lei n. 4.591/64) em 2004, pela lei 10.934. Por isso, não existe menção expressa sobre o procedimento da recuperação judicial, que foi instituído em nosso ordenamento jurídico no ano seguinte, pela lei 11.101/2005. A Lei da Incorporação, no entanto, faz menção expressa ao processo falimentar no art. 31-F: "Os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação".

Para Melhim Namem Chalhub, a inexistência de expressa menção ao processo de recuperação judicial na legislação específica (Lei n. 4.591/64) não compromete a subsistência das incorporações imobiliárias afetadas, que poderão prosseguir sua atividade com autonomia protegidas pelo regime da incomunicabilidade, que vincula suas receitas à execução da obra e liquidação do passivo do empreendimento imobiliário e veda seu direcionamento para fins diversos dessa destinação6.

Essa concepção está muito bem descrita no voto do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, nos autos do REsp n. 1.958.062/RJ: "No referido julgado, ainda que não se tenha proclamado a absoluta impossibilidade de submissão das SPEs com patrimônio de afetação ao regime de recuperação judicial, ficou assentado que o patrimônio afetado não pode ser contaminado pelas outras relações jurídicas estabelecidas pelas sociedades do grupo (...)".

No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por exemplo, em 2018, a Quinta Câmara Cível analisou caso semelhante, em que também foi reconhecida a impossibilidade de comunicação do patrimônio envolvido no processo de recuperação judicial e os empreendimentos submetidos à afetação7.

Pode-se concluir, por conseguinte, que as sociedades de propósito específico que não administram patrimônio de afetação podem utilizar o instrumento da recuperação judicial. Nestes casos, conforme elucidou o Superior Tribunal de Justiça, impossibilita-se a utilização da consolidação substancial (art. 69-J da lei 11.101/2005), tendo em vista que a sociedade de propósito específico "tem sua razão de ser na execução de um objeto social único, evitando a confusão entre o seu caixa e as obrigações dos diversos empreendimentos criados pela controladora", não se mostrando possível a reunião de ativos e passivos com os das outras sociedades do grupo.

A dúvida paira, entretanto, sob as sociedades de propósito específico que administram patrimônio de afetação, mas que possuem outros bens existentes em seu patrimônio total.

Embora esta hipótese não seja recorrente na prática, há a possibilidade de que o patrimônio de afetação seja apenas parte do patrimônio total de uma SPE. Neste caso, respeitada a segregação patrimonial do patrimônio de afetação, torna-se possível o acesso de sociedade de propósito específico à recuperação judicial. Isso porque o art. 50 da lei 11.101/05 cita diversos meios de recuperação judicial, que, em negociação coletiva entre devedor e credores, poderão ser utilizados para reestruturação da atividade empresária.

A análise deverá ser feita, portanto, casuisticamente; rememorando-se, todavia, que o patrimônio de afetação, em qualquer destas hipóteses, deverá ser segregado e não se sujeitará aos efeitos da recuperação judicial.

__________

1 FORGIONI, Paula A. Contratos empresariais: teoria geral e aplicação. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.

2 GONÇALVES, Alexandre Tadeu Navarro Pereira; DIAS, Rodrigo Antonio. Tributação das Operações Imobiliárias. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 283.

3 GONÇALVES, Alexandre Tadeu Navarro Pereira; DIAS, Rodrigo Antonio. Tributação das Operações Imobiliárias. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2022, p. 283.

4 CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 95.

5 CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 95.

6 CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação imobiliária. 6 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 144.

7 AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CRÉDITOS ORIUNDOS DE CONTRATOS EM QUE FOI CONSTITUÍDO PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO. AUSÊNCIA DE SUJEIÇÃO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. 1. No presente caso, recai a controvérsia sobre a sujeição (ou não) de créditos oriundos de contratos em que se constituiu patrimônio de afetação sobre empreendimentos de empresa em recuperação judicial. 2. Nesse contexto, ao que se extrai da análise da legislação aplicável e das alegações vertidas pela parte recorrente, impõe-se a manutenção do entendimento do Juízo de Origem de que, em observância aos princípios norteadores tanto da Lei nº 4.591/1964 quanto da Lei nº 11.101/2005, os créditos objetos dos autos não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, mesmo perante a inexistência de Sociedade de Propósito Específico e que não se tenha previsão específica para os casos de recuperação judicial na Lei nº 11.101/2005. 3. Cumpre salientar que, por força do art. 43, VII, da Lei nº 4.591/1964, pela vulnerabilidade dos adquirentes, do interesse social envolto e do grande risco para a economia popular, são os adquirentes das unidades autônomas que têm o poder de deliberar acerca do patrimônio de afetação, através de assembléia geral de adquirentes, aplicando-se, analogicamente ao caso concreto, o artigo 119, IX, da Lei n° 11.101/2005. 4. Outrossim, em respeito ao instituto do patrimônio de afetação e a toda conotação social e econômica que o envolve, deve ser conferido às recuperandas a utilização dos recursos do patrimônio geral da empresa para a conclusão das obras. 5. Nesse contexto, conclui-se que, ao não serem incluídos os bens afetados aos efeitos da recuperação judicial, preza-se pela observância e busca dos objetivos da Lei nº 11.101/2005, em especial o princípio da relevância do interesse dos credores. 6. Assim, deve ser mantida em sua integralidade a decisão recorrida, no sentido da não sujeição dos créditos decorrentes de contratos com patrimônio de afetação aos efeitos do instituto da Recuperação Judicial. - AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (Agravo de Instrumento, Nº 70078064995, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Lusmary Fatima Turelly da Silva, Julgado em: 18-12-2018).