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O ECA no centro do debate do sistema de justiça: uma análise para além do modelo adversarial

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Atualizado às 08:03

Há um ano (em outubro de 2020) inaugurávamos essa coluna (Migalhas Infância e Juventude) sem imaginar a dimensão que ela teria. Hoje festejamos seu primeiro aniversário mais próximos uns dos outros, com amigos de militância e referências acadêmicas importantes para nossa própria educação sobre o tema da Infância e Juventude nos acompanhando por aqui - alguns deles tivemos o prazer de receber e ler como convidados na coluna -, profissionais de "fora do Direito", que passaram a adotar este espaço como fonte a fim de compreender alguns pontos fundamentais dos direitos de crianças e adolescentes e membros da sociedade civil que também nos visitaram buscando informação.

Sociedade, Estado e Família, a tríplice fundamental da proteção infanto-juvenil contemplada no alcance desta coluna:

Não poderíamos estar mais felizes!!!

A ideia inicial, quando concebemos essa coluna, era que pudéssemos compartilhar visões diferentes sobre o ECA e demais normas aplicáveis, a partir das nossas vivências e atuações profissionais, vez que ocupamos lugares distintos dentro do Sistema de Justiça, e assim fizemos neste primeiro ano. Por mais de uma vez surgiram "dobradinhas" ocasionais porque, dentro de um mesmo tema, tínhamos visões diferentes, por vezes até destoantes, mas sempre complementares, de modo que passamos a compreender de forma mais clara que no campo da infância e da juventude não experenciamos um sistema adversarial, mas sim cooperativo, uno e complexo (ref. Fredie Didier Jr.).

Nesse primeiro ano da coluna não raras vezes revisitamos nossa própria história, ao escrever sobre primeira infância, educação, crianças e adolescentes com deficiência, trabalho infantil, adoção e acolhimento, saúde mental e drogadição na adolescência, casamento infantil e violência contra crianças e adolescentes. Nessa tarefa, não ignoramos a triste crise sanitária que vivemos em razão da Covid-19, analisando, também, este cenário dentro da perspectiva do direito fundamental à vida e à saúde de crianças e adolescentes.

Comemoramos juntos os 31 anos do ECA, escrevemos sobre avanços e estagnações de políticas públicas na proteção da infância, e propusemos reflexões sobre retrocessos que surgiram  por meio de decretos presidenciais, orientações administrativas, interpretações jurisprudenciais e mudanças legislativas, tais como o retorno de escolas e salas especiais para crianças e adolescentes com deficiência, a vedação à educação domiciliar, a importância da  equipe interprofissional nos casos de privação de liberdade de pessoas responsáveis por infantes com deficiência, a violação de direitos de adolescentes que fazem uso de drogas a partir do acolhimento em comunidades terapêuticas, entre outros.

Todavia, nosso espaço amostral ainda é muito reduzido perto da magnitude e complexidade das discussões sobre direitos de crianças e adolescentes, o que nos estimula a continuar com a coluna ativa.

E, dentro desse objetivo, partimos da compreensão do ECA enquanto núcleo duro do sistema protetivo infanto-juvenil, entendido como o microssistema que conjuga as principais normas de direitos e garantias. Não à toa ele está no centro do debate e deve ser compreendido como um diploma que direciona e impõe a todos os atores da rede (dentro ou fora do sistema de justiça) uma atuação colaborativa e não adversarial, eis que a todos interessa fundamentalmente assegurar a proteção de crianças e adolescentes.

Destaque-se que, desde sua promulgação, o ECA foi alterado inúmeras vezes, verificando-se mudanças nos anos de 1991, 1997, 2000, 2003, 2005, 2008, 2009, 2011, 2012 e, desde 2014, em todos os anos até 2019, sendo que a última modificação se deu agora em 2021, por meio da lei 14.154, que aperfeiçoa o Programa Nacional de Triagem Neonatal, mas ainda não está em vigor. Em ao menos 15 anos (de seus 31), portanto, houve ao menos alguma inserção legislativa no texto geral do ECA, afora alterações em outras leis esparsas e a superveniência de outras sobre o tema infância e juventude.

Aliás, tomando por base apenas indexações como "crianças", "adolescentes", "infância" e "juventude", tem-se 61 proposições no Senado Federal e 804 na Câmara dos Deputados. Desde 1999, em todos os anos houve algum projeto de lei em tramitação pretendendo alteração no texto do ECA, nem sempre com melhora ou aprimoramento nos interesses e garantias do público infanto-juvenil.

Sem prejuízo dessas incontáveis normas, é longa e quase sempre tortuosa a caminhada para a efetivação de direitos de crianças e adolescentes, mesmo para aqueles já positivados em normas nacionais e internacionais ratificadas pelo Brasil, apesar da absoluta prioridade determinada pelo Art. 227 da Constituição Federal.

Infelizmente violações aos direitos de crianças e adolescentes no Brasil ainda são muito frequentes, o que se comprova através dos noticiários, levantamentos de dados e estudos acadêmicos, ainda que o foco seja em direitos básicos como alimentação, integridade física, saúde e educação, especialmente após os reflexos da pandemia do Covid-19.

Tal agravamento fica evidenciado, por exemplo, no alerta realizado pelo UNICEF no final de 2020, sobre a insegurança alimentar infanto-juvenil durante os últimos anos no país, que afeta diretamente a saúde deste público vulnerável em desenvolvimento físico e psíquico. Segundo o órgão da ONU, cerca de 5,5 milhões de crianças e adolescentes brasileiros "deixaram de comer porque não havia mais dinheiro para comprar comida".

Sabedores de que parte considerável das crianças e adolescentes chegam às escolas sem comer, relembrando aqui o notório caso do menino de 8 anos que desmaiou de fome em uma escola do Distrito Federal, o fechamento das instituições de ensino durante o período de isolamento social agravou a situação alimentar e a crise nutricional instaurada no país há anos.

Além disso, como aponta relatório apresentado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), versado para o português por Raquel de Oliveira e revisado por Teresa Pontual e Cláudia Costin (FGV EBAPE CEIPE), "as necessárias medidas de isolamento social causarão uma disrupção na educação escolar por vários meses, na maioria dos países do mundo", causando graves perdas de aprendizado para os alunos e impondo verdadeira estratégia educacional para mitigar tais danos. Ou seja, é certo o impacto negativo deste período pandêmico também na educação de crianças e adolescentes.

Com muito pesar é preciso admitir que tampouco a integridade física, sexual e psicológica de crianças e adolescente está sendo preservada em âmbito nacional, como mostram dados levantados em uma das colunas publicada este ano, nem mesmo dentro dos ambientes de proteção, como a residência.

O ECA está e continuará, portanto, no centro de debate desta Coluna do Portal Migalhas e não podemos deixar que ele vire letra morta, ineficaz e inoperante perante seus destinatários, especialmente a parcela mais vulnerável. Nossa função pública, social e política de fomentar o debate plural sobre os temas, principalmente entre os membros do Sistema de Justiça, nos faz pensar que juntos, superando as amarras do modelo adversarial tradicional, podemos suprir algumas omissões e carências na prestação jurisdicional e tornar a justiça mais acessível, rápida e eficiente (ref. Maria Tereza Sadek), prioritariamente para crianças e adolescentes, a partir do pensamento crítico e da compreensão sistêmica sobre a Infância e Juventude.

Isto porque, como se vê, apesar de robusta normativa nacional e internacional protetiva, ainda são constantes as denúncias, as notícias e os processos, legislativos e judiciais, que revelam a insuficiência da proteção desse público no Brasil e a falta de cultura nacional protetiva, exigindo-se uma visão cooperativa e reiteradas investidas sobre o tema, sempre com a finalidade de torna-lo mais acessível, palatável e conhecido, ampliando seu alcance.

Assim, como fizemos na primeira coluna, reiteramos: o público-alvo é abrangente, e alcança toda e qualquer pessoa que se proponha a pensar e repensar o sistema de proteção, dentro e fora do sistema de justiça, afinal somos todos responsáveis por nossas crianças. Você é nosso convidado rumo ao 2º aniversário!!!