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O princípio da competência-competência e as arbitragens com a administração pública

terça-feira, 5 de julho de 2022

Atualizado em 4 de julho de 2022 18:55

Pelo princípio da competência-competência, o árbitro tem competência para decidir sobre a sua própria capacidade de julgar, sobre a extensão de seus poderes e sobre a arbitrabilidade da controvérsia que lhe é apresentada. É o que dispõe o art. 8, parágrafo único da lei de arbitragem (lei federal 9.307/96):

Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória.

A respeito desse princípio, a doutrina aponta que dele podem eclodir dois tipos de efeito. De um lado, há o efeito positivo que enfatiza um quadro de competência concorrente entre o poder judiciário e os tribunais arbitrais.1 De outro, fala-se no efeito negativo que reside na concepção de que o tribunal arbitral deve ter prioridade cronológica para se pronunciar sobre a sua competência anteriormente ao judiciário.

No Brasil, predomina o entendimento pelo qual o princípio da competência-competência em seu efeito negativo foi adotado pela lei de arbitragem. Assim, o árbitro único ou o tribunal arbitral assumem a atribuição de avaliar a sua competência e jurisdição, tendo a autoridade, no decurso do processo arbitral, para decidir se têm ou não jurisdição sobre o litígio.2

A corroborar, a revogação do art. 25 da lei de arbitragem retirou do sistema arbitral a única ocasião em que a arbitragem poderia ser suspensa para apreciação preliminar pelo judiciário. Determinava o referido e revogado artigo:

Art. 25 Sobrevindo no curso da arbitragem controvérsia acerca de direitos indisponíveis, e verificando-se que de sua existência, ou não, dependerá o julgamento, o árbitro ou o tribunal arbitral remeterá as partes à autoridade competente do Poder Judiciário, suspendendo-se o procedimento arbitral.
Parágrafo único. Resolvida a questão prejudicial e juntada aos autos a sentença ou acórdão transitados em julgado, terá normal seguimento a arbitragem.

Veja-se, porém, que a lógica do revogado art. 25 é algo constante em outros diplomas. É o que ocorre, por exemplo, na convenção sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras de Nova York, promulgada pelo decreto 4.311/02, cujo art. II (3) dispõe:

O tribunal de um Estado signatário, quando de posse de ação sobre matéria com relação à qual as partes tenham estabelecido acordo nos termos do presente artigo, a pedido de uma delas, encaminhará as partes à arbitragem, a menos que constate que tal acordo é nulo e sem efeitos, inoperante ou inexequível.

Nesse passo, a atual opção adotada pela lei de arbitragem é a de deixar o controle judicial para um momento posterior, sem prejuízo de o judiciário assumir importante papel de suporte à arbitragem em situações como a condução de testemunha renitente, a atuação no cenário de resistência de uma parte quanto à instituição da arbitragem, a execução da sentença arbitral, e o reconhecimento e execução de sentença arbitral estrangeira.

É essa, igualmente, a opção adotada na Inglaterra, cuja lei de arbitragem de 1996 autoriza o árbitro a determinar a sua própria jurisdição substantiva, incluindo decidir sobre a validade da convenção de arbitragem, a constituição do painel arbitral e o escopo da arbitragem.3

Isso não obstante, é interessante ressaltar as atribuições assumidas pelo judiciário no cenário de conflitos de competência. Compete ao STJ decidir sobre os conflitos de competência entre: (i) tribunal arbitral e o órgão do poder judiciário (CC 111.230/DF) e (ii) dois tribunais arbitrais dentro de uma mesma câmara de arbitragem, caso o regulamento da câmara seja omisso sobre a solução do impasse (CC 185.702/DF). Já o julgamento de conflito de competência entre duas câmaras arbitrais compete ao juízo de primeira instância (CC 113.260/DF).

Diante da existência de conflitos entre tribunais arbitrais e o poder judiciário, pode-se questionar se, no Brasil, o efeito negativo da competência-competência está sendo, realmente, aplicado em seu sentido original. Ora, se, por um lado, é verdade que houve avanços para reconhecer a legitimidade de o árbitro decidir sobre a sua competência prioritariamente em relação ao magistrado, por outro, a existência desses conflitos de competência demonstra fragilidades práticas do efeito negativo da competência-competência.

Ao menos, a jurisprudência afastou o julgamento de conflitos entre os tribunais arbitrais e o poder judiciário pelo magistrado de primeira instância, o qual fica incumbido de exercer as já descritas funções normais de suporte à arbitragem. Com isso, ratificou-se a inexistência de hierarquia entre as jurisdições estatal e a arbitral.

Por fim, a propósito dos conflitos entre câmaras ou entre tribunais de uma mesma câmera, o fortalecimento do efeito negativo e, pois, a não-intervenção antecipada do judiciário dependem de regulamentos que enfrentem o problema, trazendo soluções claras e concretas aos casos de conflitos. Sem a pretensão de esgotar as controvérsias sobre o tema, essa é a agenda positiva que se propõe.

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1 SUSLER, Ozlem, The English Approach to Compétence-Compétence, 13 Pepp. Disp. Resol. L.J. Iss. 3 (2013). Disponível aqui.

2 Vale transcrever: "A jurisprudência do STJ se firmou no sentido de que, segundo o princípio do kompetenz-kompetenz, previsto no art. 8º da Lei n.9.307/1996, cabe ao juízo arbitral, com precedência sobre qualquer outro órgão julgador, deliberar a respeito de sua competência para examinar as questões que envolvam a existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que tenha cláusula compromissória." (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AGINT no ARESP 1276872/RJ 2018/0084050-9).

3 "(1) Unless otherwise agreed by the parties, the arbitral tribunal may rule on its own substantive jurisdiction, that is, as to (a) whether there is a valid arbitration agreement, (b) whether the tribunal is properly constituted, and (c) what matters have been submitted to arbitration in accordance with the arbitration agreement. (2) Any such ruling may be challenged by any available arbitral process of appeal or review or in accordance with the provisions of this Part."