Arbitragem e precatórios: Uma discussão que ganhou corpo
terça-feira, 4 de novembro de 2025
Atualizado em 3 de novembro de 2025 09:13
Falar sobre arbitragem e precatórios é, sem dúvida, um assunto delicado. Afinal, esse é o momento em que a busca de uma solução de controvérsias em meios mais adequados - tendo como uma das vantagens da arbitragem a sua celeridade em comparação com a jurisdição estatal - esbarra em um obstáculo bastante preocupante.
Não é segredo para qualquer profissional do Direito que atue em litígios envolvendo a Fazenda Pública o fato de que o pagamento de precatórios no Brasil é caracterizado por uma sequência de emendas à Constituição e decisões do STF sobre elas, sendo o capítulo mais recente dessa história normativa a promulgação da EC 136/25 que trouxe limitações ao pagamento de precatórios no exercício financeiro pelos entes federativos, de acordo com percentuais da receita corrente líquida.
Nesse contexto, é até natural imaginar que surjam propostas no campo do Direito buscando resolver - ou, ao menos, contornar esse problema - na intenção de construir, no Brasil, uma jurisdição arbitral cada vez mais efetiva.
Propostas inovadoras, sem pretender afastar o regime constitucional de precatórios, têm sido apresentadas na tentativa de oferecer um meio mais eficiente de satisfação do crédito, principalmente por meio de prestações alternativas à condenação pecuniária a serem discutidas em ambiente negocial pelas partes.1 Outras iniciativas, no entanto, têm pretendido o afastamento direto desse regime, o que nos parece impossível sob a ordem constitucional vigente.
Essa semana uma nova decisão se soma a tal discussão.
No dia 27/10, último, foi proferido addendum a sentença arbitral parcial, em arbitragem em curso na CCI - Câmara de Comércio Internacional (Caso 23002/JPA/GSS/PFF/RLS) na qual o Tribunal Arbitral enfrentou o tema em questão2.
O Tribunal foi instado pela parte requerente, em sede de pedido de esclarecimentos, a suprir alegada omissão caracterizada pela não fixação de prazo para cumprimento imediato da decisão, consoante dispõe o art. 26, III da lei de arbitragem3.
Alegava a parte requerente que nenhuma das condenações impostas ao Estado de São Paulo nessa arbitragem - pagamento de indenização a título de reequilíbrio econômico-financeiro do contrato e adimplemento de medições contratuais não pagas - se submeteria ao regime de precatórios por entender que se trataria, apenas, de determinações de adimplemento de cláusulas contratuais.
Como esperado, o pedido da requerente foi indeferido pelo Tribunal. Este consignou, expressamente, que: "nos casos de condenação pecuniária imposta à Fazenda Pública, aplica-se o regime constitucional de precatórios (...) inexistindo fundamento legal ou contratual que excepcione o regime constitucional de precatórios, não pode o Tribunal Arbitral fixar para pagamento das condenações impostas ao Estado de São Paulo". Pouco importa as verbas reclamadas eram contratuais ou não. Se é obrigação de pagar, determinada no exercício de jurisdição, aplica-se o art. 100 da Constituição da República.
E agiu com acerto o Tribunal. Primeiro por hermenêutica. Onde o legislador constitucional não abriu exceções, não cabe ao intérprete fazê-lo. É com esse entendimento, inclusive, que o STF tem sido bastante rigoroso em repelir tentativas de afastamento do regime de precatórios.4
Em segundo lugar, no mérito, é comum escutar-se que, vindo discutir direitos patrimoniais disponíveis em arbitragem, deve a Administração Pública despir-se de suas prerrogativas processuais. Esse entendimento esbarra no fato de que o regime de precatórios não é uma prerrogativa processual da Administração Pública. É, na verdade, uma característica ínsita ao regime jurídico administrativo e financeiro, constitucionalmente definido, que a ela se aplica e da qual não pode despir-se ainda que queira.
Isso porque o regime de precatórios é materialização concreta dos princípios da impessoalidade e isonomia. Elemento, portanto, essencial da conformação jurídica da Administração Pública, tanto quanto o são a exigência de concursos públicos para preenchimento de seus quadros funcionais ou a realização de licitação pública para seleção de seus fornecedores. Ambas também constitucionalmente definidas materializações dos mesmos princípios.
Afastar o regime de precatórios seria, assim, uma violação a esses princípios "por dar tratamento privilegiado aos credores da sentença arbitral em relação aos credores de sentença judicial, que estão em situação de igualdade"5.
E vamos além em uma afirmação que pode parecer ousada, mas que é verdadeira: o regime de precatórios protege, inclusive, os próprios credores da sentença arbitral.
Como?
Vamos imaginar, por um momento, que fosse adotado, de maneira generalizada, entendimento contrário ao da decisão ora em comento. Neste cenário a regra seria a de que sentenças arbitrais condenatórias relativas a obrigações contratuais estariam excepcionadas do regime de precatórios. Não demoraria para que o mesmo entendimento fosse replicado no Judiciário. E, então, em face de todas essas sentenças não sujeitas ao precatório (arbitrais e judiciais, ou, por hipótese, apenas arbitrais), qual delas o Poder Público deveria pagar primeiro? Certamente não seria a mais anteriormente proferida, afinal obedecer a ordem cronológica assegurando isonomia é próprio do regime afastado. Qual critério adotar então? A menos vultuosa? A que, considerando os projetos em curso, melhor atendesse o interesse público por, por exemplo, referir-se a contrato de PPP em vigor?
E caso houvesse o inadimplemento dessa miríade de sentenças não sujeitas a precatórios? Seria fácil obter, no juízo estatal - posto que já exaurida a jurisdição arbitral -, sem nenhuma previsão legal que a amparasse, alguma medida de constrição ou sequestro de verbas públicas?
O cenário acabaria redundando, invariavelmente, naquele que existia antes de ser instituído o regime de precatórios: "transitadas em julgado as decisões que condenavam a Fazenda Pública a pagamento em dinheiro, "um enxame de pessoas prestigiadas e ávidas do recebimento de comissões passava a rondar os corredores das repartições fiscais. Nelas se digladiavam, como autênticos abutres e com feroz avidez, para arrancar a verba de seus clientes. Esta - pelo poderio dos advogados administrativos - saía para os guichês de pagamento com designação dos beneficiários e alusão expressa aos seus casos".6
A questão envolvendo precatórios - e, digamos diretamente - a ausência de pagamento tempestivo deles, é um problema sério da institucionalidade brasileira para o qual não existe resposta fácil nem atalho. É, de fato, "uma batalha entre os fatos e direito"7 que, nas arenas adequadas, precisa continuar sendo travada. Para que se busque, então, garantir efetivamente, de um lado a observância à isonomia e impessoalidade - que não pode ser afastada - e, de outro, o tempestivo pagamento dos credores da Fazenda Pública. Todos eles. Da pensionista à empreiteira. Sendo este pagamento tempestivo não só uma medida em vista da melhoria do ambiente de negócios brasileiro - como se costuma dizer -, mas, também, o modelo definido pelo Constituinte Originário na redação primeva do art. 100 da Carta.
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1 "Cabe frisar, todavia, que tais alternativas, por se tratar de modelagens essencialmente negociais - e, pois, sujeitas à discricionariedade - quer presentes no próprio instrumento contratual original, quer objeto de outros negócios jurídicos relacionados - estão apenas ao talante das partes, dependendo de inequívoca manifestação de vontade da Administração Pública". SACRAMENTO, Júlia Thiebaut, CARDOSO, Paula Butti e NUNES, Tatiana Mesquita. Arbitragem e Poder Pública na perspectiva constitucional: o cumprimento da sentença arbitral sob a ótica do princípio da eficiência in ABBOUD, Georges et al (coords.) Arbitragem e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 324.
2 Íntegra da decisão disponível aqui.
3 "Art. 26. São requisitos obrigatórios da sentença arbitral: III - o dispositivo, em que os árbitros resolverão as questões que lhes forem submetidas e estabelecerão o prazo para o cumprimento da decisão, se for o caso;"
4 STP 924-REF-MC, rel. Min. Rosa Weber, ARE 1523321/RJ, rel. Min Luiz Fux, ARE 1468983 e ARE 1492716 rel. Min Alexandre de Moraes, Reclamação 68826, rel. Min. Nunes Marques.
5 MEGNA, Bruno Lopes. Arbitragem e Administração Pública: Fundamentos teóricos e soluções práticas. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 288.
6 BARREIRA, Wagner. Precatório. Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 60, p.3, apud CUNHA, Leonardo Carneiro da. Precatórios: atual regime jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 12.
7 SACRAMENTO, Júlia Thiebaut, et al. Op. Cit., p. 318-9

