Uma súmula fora do tempo: Por que a súmula 298/STJ precisa ser interpretada com cautela (ou revista)
quarta-feira, 12 de novembro de 2025
Atualizado em 11 de novembro de 2025 09:11
Temos enfatizado em reiteradas ocasiões1 que um dos principais desafios do sistema de precedentes idealizado pelo CPC é o problema da má-aplicação de teses jurídicas, que, na maioria das vezes, decorre do fato de a própria tese ter sido mal redigida, como se fosse um enunciado normativo semelhante àqueles emanados do poder legislativo.
Por isso, a legitimidade das decisões tomadas nesse sistema exige que o juiz não se limite à leitura da tese, tomando-a como um texto abstrato ou pelo menos muito genérico, e à sua aplicação irrefletida aos casos: é imprescindível verificar se o caso sob análise é idêntico ao paradigma que gerou a tese, sob pena de se fazer um instrumento concebido para promover eficiência e isonomia provocar o contrário disso2.
Esse mesmo desafio, e as mesmas consequências, guardadas as devidas proporções, também existe no contexto da "aplicação"3 dos enunciados de súmulas, sejam elas simples ou vinculantes.
As súmulas foram criadas com o objetivo de facilitar os julgamentos, conferindo-lhes mais praticidade e operatividade, e de servirem como um "método de trabalho"4, como dizia o ministro Victor Nunes Leal, ao permitirem que, nos casos que discutam questões jurídicas para as quais já haja entendimento sumulado, se possa abreviar o procedimento de entrega da prestação jurisdicional5. Para tanto, elas são redigidas na forma de "enunciados", que nada mais são do que espécies de teses jurídicas que exteriorizam o entendimento de determinado Tribunal sobre uma questão de direito, dotadas de um certo grau de abstração e que podem ou não ser vinculantes.
O fato de gozarem de um certo grau de abstração, como todo enunciado normativo, não significa que as súmulas devam ser dissociadas dos casos concretos que lhes deram origem.
Pelo contrário: o alcance do enunciado somente pode ser compreendido à luz do contexto dos casos concretos subjacentes, pois são justamente esses elementos que delimitam o alcance de sua força normativa.
Essa tendência de interpretação descontextualizada de enunciados sumulares precisa ser firmemente combatida, porque viola a isonomia, uma vez que confere a casos distintos tratamento igual, e a legalidade, porque se acaba criando, para o caso concreto, uma norma jurídica inexistente, revestida, contudo, da aparência de norma cuja interpretação já estaria assentada na jurisprudência dominante do Tribunal.
O caso da súmula 298 do STJ6 é um exemplo marcante.
Essa súmula foi editada em 18/10/2004 pela 2ª Seção do STJ, em um contexto histórico permeado por sucessivas políticas públicas de incentivo ao crédito rural e por programas governamentais de renegociação de dívidas agrícolas, especialmente voltados para produtores atingidos por crises climáticas e econômicas que inviabilizavam o cumprimento pontual de suas obrigações.
À época, a lei 9.138/1995 (o chamado "PESA"), conjuntamente com outras leis setoriais, estabeleceu um regime de reestruturação das operações rurais, prevendo hipóteses em que as instituições financeiras estariam "autorizadas" a promover o alongamento de prazos de vencimento de dívidas, desde que preenchidos os requisitos legais pelo mutuário.
A questão gerou divergência nos tribunais em torno de saber se o alongamento seria mera liberalidade da instituição financeira ou se configuraria direito subjetivo do produtor rural. Até que o STJ pacificou a jurisprudência, editando a súmula 298, que exterioriza o entendimento de que a lei 9.138/1995 visou assegurar a efetividade das políticas públicas de crédito rural vigentes naquele momento histórico, garantindo que os mecanismos de soerguimento financeiro desenhados pelo legislador fossem devidamente respeitados pelas instituições financeiras responsáveis pela sua implementação. Assim, as instituições financeiras não poderiam negar a renegociação da dívida quando o mutuário comprovasse as condições impostas na lei.
Daí porque o enunciado da súmula consigna que "o alongamento de dívida originada de crédito rural não constitui faculdade da instituição financeira, mas, direito do devedor nos termos da lei".
No entanto, a lei 9.138/1995, em que o enunciado se funda, estabelece um limite temporal ao alongamento das dívidas, restringindo-o às operações realizadas até 20/6/1995 que atendessem aos requisitos legais:
Art. 5º São as instituições e os agentes financeiros do Sistema Nacional de Crédito Rural, instituído pela lei 4.829, de 5 de novembro de 1965, autorizados a proceder ao alongamento de dívidas originárias de crédito rural, contraídas por produtores rurais, suas associações, cooperativas e condomínios, inclusive as já renegociadas, relativas às seguintes operações, realizadas até 20 de junho de 1995.
Ocorre que, passados mais de 20 anos desde a edição da súmula 298/STJ, e mais de 30 anos desde a expiração do marco legal previsto na lei 9.138/1995, têm-se observado decisões judiciais recentes que adotam o entendimento dessa súmula de forma "automática", para resolver casos não alcançados pela ratio decidendi dos julgados que lhe deram origem.
Essas decisões interpretam a súmula de forma literal, dissociada de seu contexto, e, ao fazê-lo, chegam à conclusão equivocada de que o direito à prorrogação se aplicaria indistintamente a toda operação de crédito rural, até mesmo para aquelas realizadas após 20 de junho de 1995!
A que se deve esse problema?
Em primeiro lugar, aos termos genéricos em que foi redigida a súmula, que reproduz a linguagem típica das normas de eficácia limitada ("nos termos da lei"). Os critérios que definem o alcance do enunciado não estão previstos nele próprio, mas em um outro diploma normativo, que acaba não sendo consultado quando da adoção do entendimento sumular.
Do texto da súmula, não se lê, ictu oculi, que o direito ao alongamento das dívidas rurais constitui direito do devedor nos contratos firmados até 20 de junho de 1995. Isso corrobora para que decisões apressadas acabem ignorando esse critério temporal fundamental para a resolução do litígio, fazendo com que, em certos casos - alguns dos quais, infelizmente, já nos deparamos -, o entendimento da súmula seja adotado para obrigar as instituições financeiras ao alongamento de dívidas, mesmo para operações celebradas muito após o marco temporal estabelecido pela lei 9.138/1995.
A súmula deveria ter sido redigida nos seguintes termos: nas operações de crédito submetidas ao art. 5º, da lei 9.138/1995, realizadas até 20 de junho de 1995, o alongamento de dívida originada de crédito rural não constitui faculdade da instituição financeira, mas direito do devedor, nos termos da lei.
Tal é, efetivamente, o entendimento que emerge da ratio decidendi dos julgados que deram origem à súmula 298/STJ.
Uma outra causa para o problema é esta que este artigo adverte, e que se tem notado igualmente no âmbito da aplicação de teses decorrentes do sistema de precedentes vinculantes: a adoção irrefletida do entendimento da súmula, dissociado do contexto dos casos que lhe deram origem.
De fato, é necessário que se entenda de uma vez por todas que nem o sistema de precedentes vinculantes nem o das súmulas, vinculantes ou não, comportam essa automação que o judiciário às vezes lhes quer imprimir. Sim, é verdade que esses sistemas têm a potencialidade de imprimir mais celeridade aos processos, mas isso não deve acontecer a qualquer custo!
Se, no primeiro caso, o problema repousa sobre a técnica redacional da súmula, o segundo repousa sobre a forma como o magistrado operacionaliza as técnicas de aceleração procedimental previstas no sistema.
Uma coisa é a interpretação de uma lei abstrata e geral decorrente da atividade legislativa; outra coisa é a intepretação de um enunciado ou tese decorrente da atividade judicial: esta última, embora se projete para o futuro e goze de um grau de abstração como a primeira (a lei), consiste na exteriorização de uma norma concreta de generalidade limitada, construída a partir de fatos jurídicos específicos que delimitam seu sentido e alcance.
Por isso, os enunciados normativos provenientes das decisões proferidas pelos Tribunais Superiores, sejam eles decorrentes de um único julgado paradigmático (em IRDR, IAC, recurso repetitivo ou repercussão geral), ou a exteriorização do resultado de um conjunto de julgados (súmulas simples e vinculantes, do STJ ou STF), não podem ser redigidos, nem adotados, desconsiderando os elementos concretos essenciais dos casos de que emergem.
Foi justamente por conta disso que a Corte Especial do STJ, em 15 de outubro de 2025, acompanhando o voto do ministro Marco Buzzi, decidiu uma questão de ordem para dizer como se deve redigir uma tese em um repetitivo7. A Corte, acolhendo as considerações que já vínhamos fazendo na doutrina, passou a exigir que a tese jurídica mencione o fato que a originou, justamente para evitar a redação de enunciados excessivamente genéricos que possam levar a distorções interpretativas em sua aplicação. Com isso, o STJ passa a ter "o dever metodológico de explicitar o recorte fático do precedente, de modo a orientar corretamente sua aplicação pelos tribunais de origem"8.
O julgamento veio em boa hora e confirma, para as teses do sistema de precedentes, o que o CPC já previa para as súmulas, no art. 926, § 2º: "Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação" (grifos nossos).
Pouca utilidade terá o dever de observância das circunstâncias fáticas dos julgados que motivaram a criação da súmula, se, quando da adoção de seu entendimento no caso concreto, essas circunstâncias fáticas forem ignoradas.
Esse dever subsiste mesmo para aqueles enunciados editados pelo Poder Judiciário antes da entrada em vigor do CPC/15, como é o caso da súmula 298/STJ, uma vez que decorre diretamente princípio da isonomia e da legalidade.
Vários outros exemplos do que não se deve fazer, semelhantes ao da súmula 298/STJ, poderiam ser mencionados9.
Por isso, insista-se: as súmulas devem ser redigidas com a maior clareza possível, sendo prudente que nelas constem os elementos concretos dos casos que lhe deram origem que sejam essenciais para evitar a "aplicação" do seu enunciado a casos não alcançados pela hipótese de incidência das normas que o enunciado interpreta, especialmente quando a lei modula temporal e/ou espacialmente o entendimento consignado no enunciado.
Havendo qualquer imprecisão no texto, que lhe comprometa o entendimento, o ideal é que as súmulas sejam revistas ou canceladas.
Essa recomendação já havia sido foi feita em 1981 pelo saudoso ministro Victor Nunes Leal. Em seu texto, o ministro recomendava que as súmulas não deveriam ser objeto de "interpretação", porque temia que, ao fazê-lo, o Poder Judiciário acabaria acrescentando ou suprimindo sentido dos enunciados, em um processo hermenêutico de "interpretação da interpretação", que levaria à mesma (ou mais grave) insegurança jurídica que as súmulas pretendiam remediar.
Por isso, recomendava, com razão, que, quando há defeito na redação da súmula - como há na súmula 298/STJ -, em vez de ser interpretada para corrigir-lhe a imprecisão, a súmula deveria ser revista ou cancelada: "A súmula deve, pois, ser redigida tanto quanto possível com a maior clareza, sem qualquer dubiedade, para que não falhe ao seu papel de expressar a inteligência dada pelo Tribunal. Por isso mesmo, sempre que seja necessário esclarecer algum dos enunciados da súmula, deve ele ser cancelado, como se fosse objeto de alteração, inscrevendo-se o seu novo texto na súmula com outro número"10.
A preocupação do Ministro era precisamente a de assegurar que as súmulas expressassem com fidedignidade a inteligência dos julgamentos que lhe deram origem, sob pena de provocarem injustiça em sua "aplicação". Por isso, se, por falha na redação, o enunciado deixa margem para dúvidas, o mais correto é revisá-lo ou cancelá-lo, e não o interpretar para "salvá-lo"...
Contudo, sabe-se que existem verbetes que, embora imprecisos, dúbios ou muito amplos, dificilmente serão revistos ou cancelados. Alguns deles, como é o caso da súmula 298/STJ, embora já fora de seu tempo, podem ainda reger determinadas relações jurídicas mesmo muitos anos após sua edição, o que não recomendaria, imediatamente, o seu cancelamento.
Nessas circunstâncias é que a necessidade de interpretação das súmulas, para adequar seu sentido e alcance ao contexto dos casos que lhe deram origem (e não para adicionar-lhes ou suprimir-lhes sentidos inexistentes) impõe-se com mais razão: isto é, quando o legislador previu um marco temporal para a aplicação da norma em que se funda o enunciado sumular, e isso não consta dele (ex.: súmula 298/STJ), ou quando a lei em vigor na época em que foi editada a súmula foi superada por lei posterior (ex.: súmula 543/STJ).
Dito de outro modo, os enunciados de súmulas, sejam elas simples ou vinculantes, devem ser interpretados conforme o contexto fático dos julgados que lhe deram origem (art. 926, § 2º, CPC), comportando distinguishing e overruling: distinguishing, quando a hipótese que o juiz examina não se amolda ao texto do enunciado; e overruling, quando a norma cuja interpretação deu origem ao enunciado encontra-se ultrapassada por modificação social, legal ou jurisprudencial superveniente.
A simplicidade que às vezes existe no julgamento dos repetitivos quando se trata de casos que realmente se repetem de forma idêntica pelo país afora, e que são realmente isomórficos, de forma a que a essência da decisão que é proferida a seu respeito pode ser adequadamente absorvida por uma tese, não deve seduzir o operador do direito, a ponto de este entender que todo o sistema de precedentes ou súmulas é caracterizado por essa ausência de complexidade que possibilita uma certa "automação". O nosso sistema de precedentes de súmulas pode ser bem mais complexo que isso...
Assim como as teses do sistema de precedentes, os enunciados de súmula não se emancipam do contexto dos casos concretos que lhe deram origem.
A subsistência da súmula 298/STJ depende de uma leitura fiel ao marco normativo em que ela se funda. Por isso, seu entendimento somente pode ser adotado para operações de crédito rural contratadas até 20 de junho de 1995, sob a égide da lei 9.138/1995. Não serve para conceder direito irrestrito a prorrogações de todas as operações de crédito rural, celebradas à luz de toda e qualquer norma, desconsiderando as condições exigidas para que esse direito surja.
Felizmente, notam-se, cada vez mais, decisões exemplares reconhecendo a distinção e limitando a incidência do enunciado aos estritos limites da legislação que lhe deu origem11.
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1 ARRUDA ALVIM, Teresa; BARIONI, Rodrigo. Recursos repetitivos: tese jurídica e ratio decidendi. Revista de Processo, São Paulo, v. 296, 2019, p. 186; ALVIM, Teresa Arruda; MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Ainda, sobre a tese e a ratio. Migalhas de Peso, 18 out. 2023. Disponível aqui. Acesso em 04.11.2025.
2 ARRUDA ALVIM, Teresa; DANTAS, Bruno. Precedentes, recurso especial e recurso extraordinário. 7 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 864.
3 Se diz "aplicação", entre as aspas, porque súmulas não são normas abstratas que podem ser "aplicadas". As súmulas sintetizam a intepretação de um Tribunal sobre uma determinada questão de direito. Assim, não se "aplica" uma súmula: adota-se o entendimento nela sumulado.
4 LEAL, Victor Nunes. Passado e futuro da súmula do STF. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 145, p. 1-20, 1981.
5 Referimo-nos aos cortes procedimentais previstos nos arts. 332, I (improcedência liminar do pedido contrário a súmula), 932 IV, 'a' (desprovimento monocrático de recurso contrário a súmula do STF e STJ) e V, 'a' (provimento monocrático a recurso que impugna decisão contrária a súmula do STF e STJ), 955, I (julgamento de plano do conflito de competência por decisão fundada em súmula do STF e STJ), 496, § 4º (ausência de remessa necessária da sentença fundada em súmula de tribunal superior).
6 Súmula nº 298: O alongamento de dívida originada de crédito rural não constitui faculdade da instituição financeira, mas, direito do devedor nos termos da lei.
7 Questão de Ordem no REsp 1.955.539/SP, julgada em 15/10/2025.
8 NATAL, Fernando Batista. O fato como elemento delimitador do precedente: estudo de caso da questão de ordem no REsp 1.955.539/SP. Consultor Jurídico, 30 out. 2025. Disponível aqui. Acesso em: 04 nov. 2025.
9 Tome-se como exemplo adicional a Súmula 543 do STJ: o enunciado foi concebido à luz de um determinado entendimento jurisprudencial e de um regime legal específico, posteriormente alterado pela Lei nº 13.786/2018 ("Lei do Distrato"). Essa alteração substancial da disciplina normativa tornou inadequada a aplicação da Súmula às relações jurídicas constituídas sob a nova lei. Ainda assim, não é incomum encontrar, aqui e ali, decisões que, mecanicamente, continuam a invocá-la, ignorando a distinção.
10 LEAL, Victor Nunes. Passado e futuro da súmula do STF. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 145, 1981, p. 11.
11 "CRÉDITO RURAL - Ação de renegociação (securitização) de dívida rural e declaratória de inexigibilidade de título - Pretensão de alongamento da dívida - Direito do mutuário e não faculdade do agente financiador, desde que preenchidos os requisitos da Lei nº 9.138/95 - Súmula 298 do E. Superior Tribunal de Justiça - Operação de crédito rural pactuada em 30.12.2022, muito após o marco temporal limite perenizado no art. 5° da Lei nº 9.138/95 (20.06.1995) - Improcedência mantida - Recurso improvido". (TJSP - Apelação Cível nº 1001538-58.2022.8.26.0315, Laranjal Paulista. 20ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Correia Lima. Julgado em: 30 nov. 2023. Publicado em: 30 nov. 2023).

