A tragédia no Parque Zoobotânico de João Pessoa e a consequência prática do Estatuto da Pessoa com Deficiência
quarta-feira, 10 de dezembro de 2025
Atualizado em 9 de dezembro de 2025 09:20
Recentemente o Brasil se chocou com a tragédia ocorrida no Parque Zoobotânico Arruda Câmara, em João Pessoa (PB), em que um adolescente de 19 anos morreu após ter sido atacado por uma leoa. Pior do que o próprio resultado do acidente, que parece ser a manchete de um filme, é saber como ele foi motivado: o adolescente voluntariamente (se é que é possível usar esta expressão) escalou um muro de seis metros, e desceu, por uma árvore, no espaço onde vivia o animal, e o resultado do ataque não pôde ser evitado.
Essa tragédia que parece ser inacreditável levanta um questionamento a respeito das consequências últimas do sistema de incapacidades inaugurado pela lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), afinal, desde a sua promulgação, a pessoa com deficiência1 não é mais considerada como incapaz, mas tem direito de exercer sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas e apenas quando necessário será submetida à curatela (art. 84, caput e §1º, EPD).
Complementando o artigo publicado em maio deste ano2, em que comentamos os 10 (dez) anos da promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência traremos agora uma análise que reforça de modo concreto tudo o que já foi explanado a respeito da reforma no sistema de incapacidades do CC e qual o seu resultado se levado a uma situação extrema em que houve abandono por parte do Estado.
Como citado no referido artigo, essa lei entrou em vigor propondo um modelo que não se prestava à proteção dos incapazes, embora lhe concedesse alguns direitos e inovações interessantes, tal como o instituto da tomada de decisão apoiada, incluída no CC, no art. 1.783-A3. Não obstante, é preciso consignar que nem tudo que é atual, é melhor do que está sendo substituído, e agora, infelizmente, é possível atestar com um exemplo prático toda a falha desse novo sistema no que diz respeito à extinção da incapacidade absoluta, que afastou do Estado a sua responsabilidade de proteger os incapazes na medida de uma incapacidade.
É cediço que toda pessoa, por ter personalidade, possui capacidade de direito, que é uma universalidade e recai sobre todos na mesma medida4, mas por outro lado, a capacidade de fato não é reconhecida a todos, e nem poderia ser, já que é um fenômeno social o fato de existirem alguns indivíduos que não possuem o pleno discernimento para se autodeterminar e praticar atos de seu interesse assumindo todas as suas consequências.
A tais sujeitos, que não conseguem exprimir sua vontade e suportar as consequências de seus atos, a lei tão somente assegura sua existência e vida dignas, além de outros direitos fundamentais, mas tudo de acordo com a sua situação de incapacidade. Aliás, é nesse sentido que pontuamos há tempos, em coautoria com a Dra. CARLA MODINA, que não é possível existir um sistema jurídico pródigo em direito, mas sem obrigações correspectivas:
Na medida em que o artigo 84 da Lei nº 13.146/2015 estabelece que "a pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas", ao invés de garantir uma melhor participação na vida privada e pública, acabou estabelecendo uma série de obrigações e responsabilidade desarrazoadas para pessoas com graves problemas mentais. Afinal, a regra da correspectividade garante uma série de direitos ao deficiente, porém lhe impõe uma série de obrigações correlacionadas. Não existe sistema jurídico pródigo em direitos sem obrigações correspectivas, sob quebra da real isonomia tão propalada pela lei. Que tipo de igualdade é essa onde uma das partes teria só direitos e a outra só obrigações?5
No caso em questão, Gerson - o adolescente envolvido na tragédia - possuía transtornos mentais e um histórico familiar de abandono, com vários antecedentes criminais, mesmo quando era menor, e era acompanhado de perto por uma conselheira tutelar desde seus 10 anos de idade. Segundo essa profissional, os laudos médicos solicitados pelo Conselho Tutelar apenas indicavam problemas comportamentais, mas nunca confirmaram o transtorno mental que lhe acometia, e por isso ele não recebeu tratamento adequado6.
O problema do regramento do Estatuto da Pessoa com Deficiência é justamente conceder ao sujeito que precisa ser tutelado direitos com os quais ele não consegue lidar, ou melhor, consequências que não podem ser antevistas e suportadas por ele, enquanto deficiente. No caso, a liberdade concedida a Gerson exigia dele um senso de risco e sobrevivência que ele mesmo não possuía, e talvez sequer desenvolvesse mesmo com tratamento7.
Ainda considerando o acontecimento da última semana, todos os argumentos apresentados em face do EPD agora ganham um triste exemplo concreto: o Estado, ao proteger o deficiente, o protege inclusive dele mesmo, afinal, Gerson não teve condições de exercer uma conduta puramente natural e instintiva: a de salvaguardar sua própria vida.
A falta da autopercepção ocasionou o contexto que não pode ser definido de outra forma que não trágico, pois, o indivíduo que voluntariamente invade uma jaula de uma leoa e não antevê o risco da morte, não pode ser considerado capaz pelo ordenamento que deveria protegê-lo. Entretanto, segundo o atual diploma normativo, esse mesmo sujeito - que não possuía sequer um laudo médico atestando seu comprometimento neurológico - poderia praticar inúmeros atos jurídicos, muito mais complexos e com deveres bem mais rigorosos, tais como adotar em igualdade de oportunidades com as demais pessoas8.
Aliás, de forma diversa do que foi feito pelo legislador em 2015, o sistema anterior que reconhecia a incapacidade absoluta de certos indivíduos não era desigual, tampouco discriminatório, mas protetivo. Igualmente se comenta a respeito da proposta de reforma do CC, que não propõe nenhuma mudança oportuna para isso, uma vez que o incapaz, no projeto, continuaria a ser aquele que "por nenhum meio possa expressar a sua vontade, em caráter temporário ou permanente"9, regramento que não tutelaria o próprio jovem envolvido na tragédia, pois ele estaria fora da condição de ser incapaz de expressar a vontade por qualquer meio. Diante disso, a expectativa de mudança legislativa parece ser baixa, e continuaremos a lidar com realidades tristes como a que aconteceu em João Pessoa nos últimos dias.
Como o direito funciona como um organismo vivo, que se adapta às exigências sociais, contamos - e esperamos com ansiedade - que o triste fim de Gerson não caia apenas como uma lembrança, mas possa refletir em nosso ordenamento jurídico como um motor, a fim de que a pessoa com deficiência possa voltar a ser tutelada pelo Estado, sem omissões, mas com um verdadeiro e amplo sistema de tutela: protegendo-o dos outros e protegendo-o de si mesmo, quando necessário.
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1 Aliás, nos termos do art. 2º da Lei nº 13.146/2025, a pessoa com deficiência é aquela com "impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas".
2 V. F. KÜMPEL - F. K. MADY - N. SÓLLER, A teoria das incapacidades 10 anos depois do EPD, Migalhas, 20-5-2025, disponível aqui.
3 Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade. (Incluído pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
4 V. F. KÜMPEL - C. M. FERRARI, Tratado Notarial e Registral, vol. 2, 2ª ed., São Paulo: YK Editora, 2022, p. 86.
5 Idem.
6 A. SATIE, Prisões, abandonos e sonho de ser domador: quem era o jovem morto por leoa em jaula, in Veja (São Paulo), 30-12-2025, disponível aqui.
7 Aliás, o tratamento adequado é um ato de amor para com o deficiente, uma vez que, havendo curatela, ele será tratado com carinho, respeito e acompanhamento de um terceiro capaz, que possa assegurar seus direitos e proteger seus interesses.
8 Art. 6º A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
(...) VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
9 Art. 3º, II do anteprojeto de revisão e atualização da Lei nº 10.406 de 2022.

