Entre a apreensão e a condenação: O elo perdido da perícia
quarta-feira, 29 de outubro de 2025
Atualizado em 28 de outubro de 2025 15:55
Em recente decisão monocrática, o ministro Ribeiro Dantas, do STJ, no julgamento do AREsp 2.870.036/PR, absolveu um réu processado por divulgação de pornografia infantojuvenil (art. 241-A da lei 8.069/1990) por inexistência de prova suficiente para a condenação.
No caso em questão, foram apreendidos celular, notebook e pendrive do acusado, dispositivos que poderiam auxiliar tecnicamente a materialidade do delito, principalmente considerando o verbo nuclear do tipo: "divulgar". Inclusive, o ministro ressaltou que "em crimes informáticos, porém, a materialidade do verbo 'divulgar' não se confunde com a mera existência das imagens ou com sua repercussão social: exige-se demonstração técnico-pericial do nexo entre a conta, o dispositivo e o ato de compartilhamento. À luz do art. 158 do CPP, sendo possível a perícia - e aqui era, pois os dispositivos estavam apreendidos e "à disposição do Poder Judiciário" - a sua omissão não pode ser suprida por testemunhos ou presunções".
No entanto, não houve realização de perícia. O Ministério Público, em seu parecer, sustentou que "o presente caso dispensa a realização de perícia técnica, dada a robustez das evidências" - as quais se resumiam à palavra de duas vítimas e a um print de tela apresentado em sede policial.
O art. 158 do CPP estabelece que "quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto". Já, o art. 167 complementa que "não sendo possível o exame de corpo de delito, por haverem desaparecido os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta."
A divulgação de material pornográfico em plataformas digitais configura inequivocamente crime que deixa vestígios materiais. Não se questiona, por óbvio, a gravidade do delito, cuja repressão é necessária em razão da extrema vulnerabilidade das vítimas e da necessidade de proteção integral prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente. Contudo, a gravidade do tipo penal não justifica o afastamento das garantias processuais fundamentais, nem autoriza condenações baseadas em juízos de probabilidade. Os fins nunca justificam os meios.
Por isso, a persecução penal deve observar os limites legais e constitucionais de produção da prova, exigindo-se um standard probatório adequado e suficiente para a formação da culpa, sobretudo em crimes que demandam comprovação técnico-pericial. A tutela penal da infância não se fortalece com a relativização de garantias, mas sim com a investigação rigorosa, tecnicamente estruturada e que respeite o devido processo legal.
Neste caso, os dispositivos eletrônicos foram apreendidos e estavam à disposição da Justiça. Portanto, não se enquadra no caso a exceção legal que permite a substituição do exame pericial por prova testemunhal. Como destacou o ministro Ribeiro Dantas, "sendo possível a perícia - e aqui era, pois os dispositivos estavam apreendidos e à disposição do Poder Judiciário - a sua omissão não pode ser suprida por testemunhos ou presunções".
A mera existência de imagens pornográficas envolvendo menores ou sua repercussão social não são elementos suficientes para comprovar que determinado indivíduo foi o responsável pela divulgação. É imprescindível a demonstração técnica do nexo causal entre a conta de usuário, o dispositivo eletrônico e o efetivo ato de compartilhamento do material.
Sem a perícia, não há como estabelecer com a segurança necessária (i) se o material foi divulgado a partir dos dispositivos apreendidos, (ii) quando isso ocorreu e (iii) a partir de qual usuário foi realizado o compartilhamento. Trata-se de informações que a análise forense de dispositivos eletrônicos pode fornecer com um grau de confiabilidade maior necessário para uma condenação criminal.
É pacífico na jurisprudência dos tribunais superiores que, nos crimes de natureza sexual, a palavra da vítima recebe um valor probante diferenciado. Não se questiona a relevância desse tipo de prova, que constitui elemento essencial na reconstrução dos fatos e frequentemente é o ponto de partida legítimo para a apuração de delitos sensíveis. O testemunho da vítima merece respeito e atenção, especialmente diante da dificuldade probatória que muitas vezes marca esses crimes.
No entanto, sua força probatória deve ser analisada em conjunto com os demais elementos de convicção constantes dos autos, de modo a formar um conjunto harmônico e coerente de provas. Quando o delito deixa vestígios materiais - como ocorre nos crimes cibernéticos - a ausência de corroboração técnica fragiliza a certeza necessária à condenação, sendo imprescindível que o relato da vítima seja sustentado por elementos objetivos obtidos por meio de perícia e outros meios de prova idôneos.
Outro ponto que merece destaque neste caso é que a acusação se apoiou também em print de tela apresentado em sede policial. Sobre o tema, o STJ, por diversas vezes, firmou orientação no sentido de não aceitar como provas prints de celular extraídos sem metodologia adequada de validação forense e sem a devida cadeia de custódia (AgRg no HC 828.054/RN, AgRg no AREsp 2.441.511/PR, AgRg nos EDcl no AREsp 2.521.345/RO).
Isto porque as capturas de tela, por sua própria natureza, são facilmente manipuláveis e não permitem aferir a autenticidade do conteúdo, a integralidade da conversa ou mensagem, os metadados que identificam origem, data e dispositivo de envio, além de eventuais edições ou adulterações. A validação técnica é o meio capaz de conferir confiabilidade a esse tipo de elemento probatório. Sem a perícia, o print constitui mera alegação unilateral, insuficiente para sustentar uma condenação criminal que observe o devido processo legal e a presunção de inocência.
A observância da cadeia de custódia, prevista nos arts. 158-A a 158-F do CPP, é requisito indispensável para garantir a autenticidade, integridade e rastreabilidade dos vestígios coletados ao longo da persecução penal. Trata-se de um conjunto de procedimentos que reduz a probabilidade de que o material probatório sofra interferências indevidas, adulterações ou manipulações desde a apreensão até sua análise e apresentação em juízo. A quebra ou ausência de comprovação da cadeia de custódia compromete a credibilidade da prova e impede que ela sirva de base válida para uma condenação.
Desse modo, a decisão do STJ no AREsp 2.870.036 reafirma a previsão normativa do CPP de que, sempre que a infração penal deixar vestígios e for possível a realização de exame pericial, o corpo de delito constitui prova obrigatória e indispensável à formação da materialidade.
Não se pode permitir que a simples gravidade do crime autorize atalhos probatórios, pelo contrário, é justamente em casos de extrema gravidade que o rigor técnico-jurídico se faz ainda mais necessário, tanto para garantir a justa punição dos culpados quanto para evitar condenações equivocadas.

