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É ainda importante falarmos sobre essa "bobagem" chamada contraditório

Por mais estranho que possa parecer, ainda temos muito o que falar sobre o contraditório, afinal, sua inserção no CPC/15 não representa o fim de uma batalha, mas apenas um novo capítulo para que ele deixe de ser entendido como mera "bobagem" pelos magistrados.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Atualizado em 4 de outubro de 2019 17:02


Era uma tarde de terça-feira, ainda em novembro. O plenário onde se daria o julgamento de mais de 600 processos estava lotado; cidadãos, estagiários, magistrados, advogados - alguns deles professores. Esse fato marcou, de acentuada estranheza, o início da sessão de uma das câmaras cíveis do Eg. TJ/MG. Anunciada a abertura da sessão, o em. desembargador presidente declarou os processos retirados de pauta e anunciou o primeiro com inscrição para sustentação oral.

Do pouco que se pode apreender dos debates que se seguiram, tratava-se de processo de competência originária do Tribunal, uma ação rescisória que era levada a julgamento antes mesmo da citação do réu. Dada a palavra ao i. advogado do autor, este não chegou a se pronunciar, uma vez que foi, de súbito, interrompido pelo desembargador relator que, no afã de "evitar perda de tempo", solicitava ao presidente do órgão judicante a declaração antecipada de seu voto, já adiantando que estava indeferindo a petição inicial.

Ainda da tribuna, insistindo ao presidente para ter devolvida a palavra, o advogado, com a firmeza e a polidez que o tenso ambiente criado permitia, imediatamente arguiu ofensa à garantia do contraditório, que deveria ser materializada, in casu, com a vedação da chamada decisão-surpresa, franqueando-se à parte conhecer o fundamento da decisão a porvir, bem como a sua manifestação. Afinal, como é cediço, não pode ser proferida decisão contrária à parte sem que, antes, lhe seja permitida a oitiva (art. 9º, CPC). Argumentou, também, que, mesmo na hipótese em que o Tribunal possa decidir de ofício, há o dever de informar à parte o fundamento para tanto, garantindo-lhe a oportunidade de previamente se manifestar a respeito (art. 10, CPC). Essas disposições, aliás, consubstanciam-se de duas das normas fundamentais do Processo Civil brasileiro. Finalmente, em meio ao calor gerado pelo debate com o presidente e o relator, o advogado lembrou que no regimento interno do Tribunal, já atualizado em conformidade às disposições da lei 13.105/15 (CPC), há norma que, textualmente, reverbera aquelas duas anteriormente citadas, a fim de materializar no processo os seus ditames. A mencionada norma regimental assim determina:

Art. 105. Poderá haver sustentação oral pelo prazo de 15 (quinze) minutos para cada uma das partes e o Ministério Público, na condição de fiscal da lei, ressalvados os prazos especiais fixados em lei: [...]

§ 1º Se, durante a sessão de julgamento de causa cível, o relator, de ofício, por provocação da parte ou de qualquer integrante do órgão julgador, constatar a existência de fato superveniente à decisão recorrida ou a existência de questão apreciável de ofício ainda não examinada, os quais devam ser considerados no julgamento do recurso ou do processo de competência originária, o julgamento será imediatamente suspenso a fim de que as partes se manifestem especificamente.

§ 2º O Presidente da turma julgadora, após o relator esclarecer qual é a questão nova, consultará os representantes das partes presentes na sessão se estão habilitados a se manifestarem oralmente sobre ela pelo prazo de até 10 (dez) minutos, caso em que o julgamento prosseguirá.

§ 3º Se não houver concordância sobre o prosseguimento do julgamento, o Presidente o suspenderá e concederá o prazo de 5 (cinco) dias para que as partes apresentem manifestação escrita ao relator e aos demais integrantes da turma julgadora e, em seguida, o processo será reincluído na primeira pauta disponível.

O texto normativo é de uma clareza solar. Constata a existência de questão apreciável de ofício e ainda não examinada, o presidente da turma julgadora tem o dever de consultar os advogados presentes na sessão para verificar se estão habilitados a se manifestarem oralmente sobre ela, na própria sessão.1 Caso contrário, o presidente suspenderá o julgamento e concederá o prazo de 5 (cinco) dias para que as partes manifestem-se por escrito nos autos. Evidencia-se, assim, o direito que o advogado presente à sessão de julgamento possui de optar por se manifestar oralmente sobre a questão levantada de ofício pelo relator, ou pugnar pela oportunidade de fazê-lo por escrito, no prazo regimental.

Todavia, não foi isso que se observou. Surpreendentemente, em meio ao tumulto processual que deixava a todos perplexos, o relator novamente toma a palavra para dizer que aquelas duas normas processuais "são uma bobagem", já que haveria outras "trinta e quatro normas" no código que autorizariam o julgamento imediato, nos moldes em que pretendia fazer. Estranhamente, porém, não indicou, sequer para esclarecer aos presentes, a quais normas ele se referia. A motivação parece se justificar em um critério hermenêutico(?) de que a maior quantidade de normas há de prevalecer sobre a menor; daí considerar aqueles dispositivos "bobagem", algo que autorizaria fossem sacados do código.

Ato contínuo, o presidente da sessão indeferiu o requerimento do advogado e devolveu-lhe a palavra para que oferecesse a sustentação oral das razões do pedido rescisório, oportunidade em que também poderia enfrentar a questão suscitada de ofício pelo relator.

Resultado: feita a sustentação oral, o relator ratificou seu voto, pelo indeferimento da petição inicial rescisória, ao que foi seguido pelo segundo e terceiro vogais. O primeiro vogal pediu vista dos autos por motivo diverso da discussão apresentada, e o quarto vogal optou por manifestar voto quando a sessão for retomada, em respeito ao causídico. Tudo isso numa tarde de terça-feira, novembro de 2018, mais de 32 meses(!) após o início da vigência do novo regime Processual Civil, que consagra o policentrismo,2 o protagonismo de todos os sujeitos processuais e o contraditório como direito de influência e não surpresa3 em todos os processos, que envolvam direitos individuais e coletivos.4

O argumento do trazido pelo i. Relator deixa escapar, ainda, uma questão de basilar: o contraditório não é apenas uma norma qualquer presente no CPC/15. Antes de tudo, é princípio constitucional processual, ou seja, um direito fundamental inserido na cláusula que compõe o devido processo legal, consagrado por nossa Constituição de 1988.

Assim, ao falar em regras de hermenêutica, parece que o TJ/MG se descuida de uma premissa mais singela: norma constitucional, hierarquicamente superior, deve prevalecer sobre normas infraconstitucionais. Até poderíamos dizer normas constitucionais são trunfos que afastam a validade de normas previstas no espaço das legislações e que lhe são conflitantes. Logo, o argumento - mesmo que vazio - de uma maioria de normas não poderia ser empregado sem o risco de subvertermos a supranormatividade constitucional a favor de um "coringa" hermenêutico. Ora, mesmo o estudando mais neófito no direito já sabe que se tem trinta e quatro normas contrariando uma norma constitucional, devem aqueles cedem para a esta.

Igualmente, o argumento do juízo parece se enfraquecer quando lembramos que, o princípio do contraditório está inserido no livro inaugural do CPC/15, tendo, portanto, mais que apenas um peso retórico. Já tivemos oportunidade de sustentar, em outro momento, que as normas fundamentais devem ser compreendidas como verdadeiras chaves interpretativas para todas as demais normas da nova legislação;5 assim não podem ser deixados de lado quando na interpretação e da aplicação das demais normas deste código.

Afinal, o contraditório está em nosso ordenamento jurídico exatamente para evitar situações como a dos acontecimentos narrados. Tal norma objetiva garantir o espaço discursivo de todos os sujeitos processuais, para em uma dinâmica policêntrica se construa legitimamente o provimento jurisdicional.

O episódio ocorrido no Tribunal das Alterosas, aqui utilizado para ilustrar o debate processual, serve para chamar a atenção para algo mais: a importância da publicidade dos processos judiciais (art. 93 inc. IX CF), como segurança mesmo à correta observância do efetivo contraditório. É que - vale a indagação - como o advogado provará, em eventuais recursos posteriores, que lhe foi ceifada a oportunidade de exercer tal garantia constitucional, dentro de um contexto de oralidade, como é próprio das sessões de julgamento nos tribunais?

Reitera-se, em resposta, o que já se sustentou em outras passagens6, ou seja, é direito do causídico obter as notas taquigráficas da sessão de julgamento, de onde extrairá a prova de todo acontecido, a fim de, em fase recursal, comprovar a efetivação de seu prejuízo. O art. 8º do CPC/15 destaca, no plano infraconstitucional, a publicidade dos processos, sendo que, mais adiante, o art. 152 dá-lhe eficácia, ao assegurar a prova por certidão de "qualquer ato ou termo do processo".

Mas o quadro todo nos revela uma última coisa: mesmo após a Constituição de 1988 já inovadoramente ressaltar a necessidade de proteção do contraditório, o CPC/15 fez bem em densificar mais em suas normas fundamentais a sua importância. Infelizmente, o que deveria adquirir uma obviedade, ainda precisa de mais esforço para adquirir efetividade no mundo dos tribunais brasileiros. Logo, por mais estranho que possa parecer, ainda temos muito o que falar sobre o contraditório, afinal, sua inserção no CPC/15 não representa o fim de uma batalha, mas apenas um novo capítulo para que ele deixe de ser entendido como mera "bobagem" pelos magistrados.
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1 Observe-se que tal manifestação oral não se confunde com a sustentação oral das razões recursais ou, como na hipótese, das razões do pedido rescisório.

2 NUNES, Dierle. Processo Jurisdicional Democrático. Curitiba, Juruá, 2008.

3 Sobre o contraditório dinâmico como garantia de influência e não surpresa, confira-se: THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC - fundamentos e sistematização. Rio de Janeiro: Forense, 2015.

4 Sobre a aplicabilidade do CPC/2015 às ações coletivas e o impacto dessa feição do contraditório nos processos que versam sobre a tutela de direitos coletivos, veja-se: NUNES, Leonardo Silva; THIBAU, Tereza Cristina Sorice Baracho. Repercussões do Código de Processo Civil de 2015 no Processo Coletivo. In: Processo Civil Brasileiro: novos rumos a partir do CPC/2015. Org.: Fernando Gonzaga Jayme, Gláucio Maciel Gonçalves, Juliana Cordeiro de Faria, Marcelo Veiga Franco, Mayara de Carvalho Araújo e Suzana Santi Cremasco. Belo Horizonte: Del Rey, 2016. Disponível em: clique aqui, acessado em 27 nov. 2018.

5 PEDRON, Flávio Quinaud. Normas Fundamentais do CPC/2015 como chaves de compressão adequada da nova legislação. In.: JAYME, Fernando et. al. [org.] Inovações e Modificações do CPC: avanços, desafios e perspectivas. Belo Horizonte: Del Rey, 2017. p. 21.

6 NOGUEIRA, Luiz Fernando Valladão. Recursos e Procedimentos nos Tribunais no CPC. Belo Horizonte, D'Plácido, 4ª ed, 2018.

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*Flávio Quinaud Pedron é advogado, doutor e mestre em Direito. Professor do mestrado em Direito e da graduação da UniFG (Bahia). Professor da PUC-Minas e do IBMEC.

*Leonardo Silva Nunes é advogado, doutor e mestre em Direito. Professor adjunto de Direito Processual Civil e Coletivo do Departamento de Direito da UFOP. Membro do IBDP, do IAMG e do IDPro. Coordenador do Grupo de Pesquisa Observatório de Processo.

*Luiz Fernando Valadão Nogueira é sócio do escritório Valladão Sociedade de Advogados. Procurador do município de BH e professor de graduação e pós-graduação em Direito Processual Civil.

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