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Reflexões sobre a lei 13.964/19 (Pacote anticrime)

Diante da novel alteração na legislação penal e processual penal operada pela lei 13.964/19, conhecida como "pacote anticrime", é necessário fazerem-se os devidos apontamentos sobre as alterações relevantes introduzidas no ordenamento jurídico à luz dos princípios e regras constitucionais regentes

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Atualizado às 10:55

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Com efeito, é seguro pontuar que todas as alterações positivadas por meio da citada lei impuseram maior rigor na aplicação da lei penal, reduzindo assim o espaço de liberdade (e propriedade) do indivíduo submetido à persecução penal estatal.

Deste modo, inarredável que os operadores do direito perscrutem a compatibilidade vertical entre estas normas recém positivadas e a Constituição da República, dada envergadura máxima dos princípios do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana, possivelmente em xeque com a nova roupagem de certos institutos de processo e direito penal.

Passamos, assim, a uma análise tópica dos temas considerados principais neste ensaio:

Da legítima defesa pelo agente de segurança pública

Com efeito, parece tratar-se o art. 25, parágrafo único, do Código Penal, introduzido pela lei 13.964/19, que restou assim escrito: "observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima [SIC] mantida refém durante a prática de crimes".

Ou se trata de norma penal explicativa, e portanto não-portadora de nenhuma novidade no sentido de expansão do conceito de legítima defesa penal; ou, tendo pretendido o legislador ampliar o conceito de legítima defesa especificamente para agentes de segurança pública, tal norma ressente-se de inolvidável vício de inconstitucionalidade, pois malferidora do princípio da isonomia, constitucionalmente prevista (art. 5º, caput). Explica-se.

Ao preceituar que 'observados os requisitos previstos no caput deste artigo', o legislador estaria tão-somente introduzindo norma de esclarecimento sobre o conteúdo do já tradicional conceito de legítima defesa previsto no art. 25 do Código Penal, informando aos operadores do direito que o policial que executa o autor de crime mediante a utilização de terceiro refém está agindo de acordo com a norma penal, desde que estejam presentes todos os requisitos da legítima defesa previstas no art. 25, notadamente a atualidade ou iminência ou atualidade de injusta agressão a direito de outrem.

Contudo, dado inexistir controvérsia na sociedade civil a respeito da plena aplicabilidade do conceito de legítima defesa em favor de agentes de segurança pública, faz parecer que o legislador pretendeu, isto sim, preconizar uma espécie de legítima defesa apriorística, cuja atualidade ou iminência da agressão faria-se presente em qualquer hipótese de crime mediante a utilização de reféns, desde que o autor da conduta típica seja um profissional da segurança pública.

Neste caso, parece de clara inconstitucionalidade a novel redação do parágrafo único do art. 25 do Código Penal, pois, além de exorbitar das balizas do devido processo legal substantivo (ou razoabilidade), o legislador também premiaria uma classe ou segmento de indivíduos, em detrimento tanto do restante da sociedade (um civil, na mesma posição do policial, praticaria crime ao tentar salvar a vida ou integridade física de terceiro em condições fáticas que, no caso do policial, seriam consideradas justas e suficientes para afastar a ilicitude do fato segundo o Código Penal).

Caberia, aqui, aplicação da técnica de julgamento constitucional em que a Corte Suprema exerce a chamada interpretação conforme a Constituição, determinando-se que apenas a primeira hipótese hermenêutica (de norma penal explicativa) do art. 25, parágrafo único, do Código Penal, seria possível de, válida e constitucionalmente, ser aplicada nos processos de índole penal no país.

Do impedimento do prazo prescricional no caso de acordo de delação premiada

O art. 116, inciso IV, do Código Penal, com a alteração legislativa operada pelo debatido pacote anticrime, passou a dispor que "antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre enquanto não cumprido ou não rescindido o acordo de não-persecução penal".

Com efeito, o instituto da prescrição penal não pode ser interpretado como mero capricho ou incentivo à criminalidade ou impunidade. A prescrição penal é colorário de um processo penal célere, impondo ao Estado que, também em favor da sociedade e da vítima, mas notadamente do investigado ou réu, conclua dentro de marcos legais temporais a prestação jurisdicional penal em um prazo razoável

Tenta-se evitar que todo acusado da prática de infração penal no Brasil fique ad eternum sujeito a uma conclusão definitiva do julgamento, prestigiando-se assim o princípio da dignidade da pessoa humana.

Com isto, quer-se expor a inconstitucionalidade de que eivada a norma sob exame, pois reveladora de excesso de rigor punitivo, malferidor do princípio do devido processo legal substantivo (ou razoabilidade/proporcionalidade), pois se nota que, no caso de celebração de acordo de delação premiada, não apenas quando não cumprido, mas também enquanto não rescindido o acordo (decorrente do não-cumprimento) a prescrição deixaria de correr.

Ora, o direito à prescrição penal, diante da desídia estatal na condução do processo criminal, fica ao mero alvedrio do poder punitivo do Estado, que pode deixar de proceder à rescisão do acordo de delação premiada descumprido, por anos a fio, sendo tal fato (imputável possivelmente ao próprio Estado, frise-se) garantidor da não-fluência do prazo prescricional.

Estar-se-ía, desse modo, instituindo forma transversa de imprescritibilidade dos crimes apurados em processos nos quais houve a celebração de acordo de delação premiada.

Do perdimento de bens incompatíveis com rendimento do condenado

O art. 91-A, do Código Penal, introduzido pela lei sob exame, dispõe que "na hipótese de condenação por infrações às quais a lei comine pena máxima superior a 6 (seis) anos de reclusão, poderá ser decretada a perda, como produto ou proveito do crime, dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com o seu rendimento lícito".

Parece haver vício de constitucionalidade na norma em questão, notadamente vulneração aos princípios do devido processo legal formal e substantivo.

Ao devido processo legal formal, na medida em que o art. 91-A não descreve especificamente os crimes ou contravenções que sujeitariam o condenado à perda do seu patrimônio considerado incompatível com seus rendimentos lícitos. Deste modo, imagine-se que se trate de mero crime contra outro bem jurídico que não a administração pública ou o patrimônio, não tendo sido discutido no processo previamente acerca da maneira de obtenção do patrimônio do réu (sendo tal questão irrelevante para o deslinde do mérito da acusação), e que, ao final, pelo simples fato do quantum cominado por lei ao tipo penal, o condenado veja-se alijado de parcela de seus bens por uma presunção de ilicitude em sua aquisição.

Quanto ao princípio constitucional da proporcionalidade/razoabilidade (devido processo legal substantivo), veja-se: a norma trata que os bens que constituam a diferença entre o patrimônio do condenado e o valor correspondente aos seus rendimentos lícitos serão perdidos como produto ou proveito da infração. Não se exige prova de nexo causal entre o fato típico e a aquisição destes bens a serem confiscados pelo Estado. O legislador conferiu ao juízo criminal o poder discricionário de, procedendo a uma análise aritmética sobre o patrimônio amealhado e os rendimentos lícitos auferidos, decretar a perda dos bens correspondentes à diferença, entendendo em presunção absoluta (juris et de jure) que se trata de bens obtidos como produto ou proveito da infração.

Ora, se a condenação, por exemplo, é pela prática de crime de homicídio, sem qualquer nuance de obtenção de recursos ilícitos pelo acusado como circunstância do fato, ainda assim o réu, diante do quantum da pena cominada, terá que demonstrar no processo, além de sua defesa sobre o crime de homicídio, seu histórico de obtenção do patrimônio que adquiriu durante sua vida.

O Poder Judiciário estaria se transformando, na descrição do art. 91-A do CP, em um poder censor de toda a vida financeira dos acusados por crimes cuja pena máxima cominada seja superior a 6 (seis) anos, dispensando-se, pela literalidade da norma, que a acusação demonstre o nexo causal entre a infração cometida e os bens supostamente obtidos ilicitamente (em um cálculo, convenhamos, de dificílima apuração, pela dinamicidade corriqueira da vida dos domicílios Brasil afora).

Entendemos que as hipóteses de decretação de perda de bens constitucionalmente válidas são aquelas que já eram previstas e continuam a sê-lo no art. 91, incisos I e II, alíneas 'a' e 'b' do Código Penal, e que tratam da perda dos bens que constituam instrumentos do crime, ou produto do crime, ou, ainda, proveito da infração penal, bem como aqueles bens que vierem a ser pedidos a título de indenização pelos danos causados pela infração penal.

Fora disto, tem-se afronta ao princípio da personalidade da pena, e ressuscitação do direito penal do autor (pune-se o condenado pelo seu estilo de vida: uma vez que se envolveu com qualquer infração penal punida com pena maior que seis anos de reclusão, todos seus bens estarão sujeitos a uma validação judicial), o que pode refugir completamente do mérito escrito das acusações penais baseadas na taxatividade do tipo penal objeto da condenação.

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*Sérgio Murilo Fonseca Marques Castro é defensor público federal e especialista em Direito e Processo Penal.

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