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Seguro garantia judicial: uma ferramenta econômica oportuna em tempos de covid-19 - Parte 2

No campo do processo tributário, por estarem envoltos interesses públicos e privados conflitantes e, ainda, haver impedimento previsto na legislação em vigor, deve-se ter cautela no exame de pedidos dessa natureza.

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Atualizado às 11:16

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Dando sequência ao estudo do seguro garantia judicial (confira-se, aqui, a parte 1), cabe examinar o seu uso em demandas tributárias.

III- Seguro Garantia Judicial no âmbito tributário

A lei 13.043/14 trouxe alterações para a Lei de Execução Fiscal (lei 6.830/80), incluindo o seguro garantia judicial como um dos meios de garantir a cobrança judicial do débito tributário (art. 9º, inciso II) - que, inclusive, configura um dos requisitos para a apresentação dos embargos à execução pela defesa do contribuinte (art. 16, inciso II). Passou-se ainda a autorizar a substituição da penhora pelo seguro garantia em qualquer fase do processo (art. 15, inciso I). Por meio do anexo I da circular SUSEP 477/13, definiu-se que, para o seguro garantia judicial na execução fiscal, a seguradora poderá ser intimada a efetuar o depósito em juízo do valor segurado, caso não sejam atribuídos os efeitos suspensivos aos embargos à execução ou à apelação do tomador-executado.

Quanto às condições para a aceitação do seguro garantia ofertado, a portaria 164/2014 da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional listou uma série de requisitos que devem constar nas cláusulas contratuais da apólice. Dentre as exigências feitas pelo art. 3° da portaria, sublinhe-se: i) na execução fiscal o montante segurado deverá ser igual ao original do débito executado com os encargos e acréscimos legais; ii) no parcelamento administrativo fiscal, o montante segurado inicial deverá ser idêntico ao da dívida consolidada a ser parcelada; iii) a manutenção da vigência do seguro, mesmo se o tomador estiver inadimplente; e iv) a vigência da apólice será de, no mínimo, dois anos, no seguro garantia judicial para execução fiscal, e de prazo igual à duração do parcelamento, no seguro garantia parcelamento administrativo fiscal.

Outra premissa importante para a admissibilidade do seguro é a exigência de cláusula que estabeleça as situações caracterizadoras de sinistro, nos termos do art. 10 da portaria, gerando o dever de indenizar da seguradora. As hipóteses de sinistro descritas são: i) para execução fiscal, com o não pagamento pelo tomador, quando determinado pelo juiz, independentemente do trânsito em julgado ou de qualquer outra ação judicial em curso na qual se discuta o débito, após o recebimento dos embargos à execução ou da apelação, sem efeito suspensivo, com o não cumprimento da obrigação de, até sessenta dias antes do fim da vigência da apólice, renovar o seguro garantia ou apresentar nova garantia suficiente e idônea; ii) para parcelamento administrativo fiscal, com a rescisão do parcelamento, motivada pelo inadimplemento das obrigações assumidas pelo tomador, com o não cumprimento da obrigação de até sessenta dias antes do fim da vigência da apólice, renovar o seguro garantia ou apresentar nova garantia suficiente e idônea.

Em seguida, a portaria traz um fator impeditivo à substituição, condicionando sua admissibilidade aos casos em que sua apresentação tenha se dado "antes de depósito ou da efetivação da constrição em dinheiro, decorrente de penhora, arresto ou outra medida judicial" (art. 5º). Tal restrição parece ter sido feita em razão da lei 9.703/98, que trata dos depósitos judiciais e extrajudiciais de tributos e contribuições federais, tendo em vista que o § 2º do artigo 1º determina o repasse dos depósitos realizados para o Tesouro Nacional desde o momento de sua efetivação, compondo, portanto, receita pública. Ao analisar tal fato à luz da situação corrente de crise econômica, há que se considerar que decisões autorizadoras da substituição do depósito em dinheiro pelo seguro garantia judicial e o consequente levantamento de valores causaria um forte abalo no orçamento governamental.1

Se de um lado o setor privado sofre, do outro o setor público experimenta o seu maior desafio das últimas décadas - não somente no campo econômico, mas também no social e sanitário -, o que faz com que ambos recorram ao Judiciário a fim de obter ou poupar capital. Contudo, no tema aqui versado, a presença de dois elementos deve ser observada.

O periculum in mora e o fumus boni iuris, requisitos para a concessão de tutela de urgência amplamente conhecidos no direito brasileiro, possuem um papel fundamental na análise do cabimento da substituição do depósito pelo seguro garantia judicial, bem como na expedição de alvará para levantamento de valores. As duas condições, se presentes em conjunto, autorizam o deferimento do pleito (art. 300, § 3º do CPC). No caso concreto, a fumaça do bom direito estará presente, por exemplo, quando houver decisões de mérito favoráveis ao requerente, e o perigo da demora - que, diante das circunstâncias atuais, será presumível em alguns casos - corrobora-se a partir da comprovação da situação financeira do requerente.  

Em recente decisão, o ministro Luiz Fux avaliou um pedido de substituição dos valores depositados pelo seguro garantia judicial. Ao discorrer sobre o tema, chamou atenção o ministro à lei que disponibiliza os depósitos para utilização do Governo, repassando-os para o Tesouro Nacional, bem como para a atual situação econômica decorrente da covid-19, que atinge tanto entes públicos quanto privados. Mais: argumentou que, não obstante os problemas de liquidez enfrentados pela requerente, autorizar o levantamento dos valores causaria um "prejuízo ao orçamento federal na consecução de medidas para atendimento de toda a sociedade" e que, nesse contexto, "o cotejo entre o interesse público e o privado sinaliza para que o perigo de dano esteja mais associado aos interesses da sociedade do que do particular". No caso concreto, a demandante não "obteve provimento favorável do pedido de mérito", uma vez que, na visão do ministro, o direito reclamado tenderia a favorecer o fisco.2

Após exame das normas jurídicas regulamentadoras da matéria que versa sobre a substituição do depósito pelo seguro garantia judicial no âmbito do direito tributário, compreende-se sê-lo admissível. Todavia, a aceitação somente ocorrerá, em regra, caso a apresentação se dê antes da realização do depósito ou constrição em dinheiro, tendo em vista que, uma vez em juízo, os valores passam a integrar a receita pública e ficam disponíveis ao Estado e para retornarem às empresas há que se aguardar o encerramento do processo, com decisão favorável ao ente privado (art. 1º, § 3º, inc. I, da lei 9.703/98). Ultrapassado este último ponto, passa-se às considerações finais.

Considerações finais

Como se observou, não há impedimento nas legislações cível e trabalhista que impeça a substituição do depósito em dinheiro pelo seguro garantia e, além disso, as apólices são reguladas por meio da circular 477/2013 da SUSEP, na qual propicia-se tutela ao segurado. Os benefícios são muitos, podendo-se citar o fato de que as seguradoras são empresas solventes, aptas a garantir o depósito e satisfazer a dívida. Ademais, tem-se a figura das resseguradoras que assumem os riscos junto às seguradoras garantindo, assim, tanto a solvência das seguradoras, quanto o pagamento das indenizações aos segurados. Cabe, também, afirmar que a aceitação da apólice no lugar da busca de bens para penhora aceleraria o trâmite de processos e empresas não teriam seus recursos indisponibilizados, permitindo um alívio de fluxo de caixa.

Por outro lado, na esfera tributária tem-se uma legislação que trata especificamente sobre depósitos judiciais e extrajudiciais de tributos e contribuições federais e que direciona esses recursos ao Estado, ou seja, esses recursos são disponibilizados ao setor público. Além disso, existe portaria regendo o oferecimento e aceitação do seguro garantia judicial para execução fiscal e para parcelamento administrativo fiscal para débitos inscritos em dívida ativa, e há expressa vedação em relação à substituição que se pretende. Sem embargo, diante da situação pela qual a economia passa (recorde-se da ecoada previsão de queda de 5,3% do PIB)3 e do fato de que o trâmite processual no Judiciário ser demasiadamente lento, o que implica em depósitos mantidos por anos antes de regressar às empresas, faz-se necessário verificar, caso a caso, se estão presentes, simultaneamente, a probabilidade de satisfação do direito da empresa requerente, bem como o perigo de danos concretos, como a paralização das atividades, que a espera pode gerar.

Caso existentes, se pode sugerir que, à luz do art. 20 da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro - que determina ao Juízo não decidir baseando-se "em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão", e que "a motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta" -, se possibilita, excepcionalmente, no processo tributário, a concessão da tutela e o levantamento do montante já depositado. Conforme argumentado em resposta aos comentários tecidos pela Consultoria Jurídica do TCU ao PL 7.448/2017, "quem decide não pode ser voluntarista, usar meras intuições, improvisar ou se limitar a invocar fórmulas gerais como 'interesse público', 'princípio da moralidade' e outras. É preciso, com base em dados trazidos ao processo decisório, analisar problemas, opções e consequências reais".4

Dito isto, depreende-se que a substituição do depósito em juízo pelo seguro garantia judicial, à luz das legislações trabalhista e cível, é admissível, sendo, inclusive, recomendável, para amenizar os impactos econômicos negativos causados pela pandemia. No campo do processo tributário, por estarem envoltos interesses públicos e privados conflitantes e, ainda, haver impedimento previsto na legislação em vigor, deve-se ter cautela no exame de pedidos dessa natureza.

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1 Tanto é que o Governo da Bahia, a fim de amenizar o déficit na receita estadual em meio à crise em decorrência da pandemia, está buscando recursos mediante depósitos judiciais do TJ-BA, estimando-se quantias superiores a 25 bilhões de reais. (Cf. Governo da Bahia espera conseguir R$25 bi de depósitos judiciais para injetar na Bahia. Acesso em: 18/5/2020). Em São Paulo, a Prefeitura conseguiu o levantamento de 53 bilhões de reais - que estavam depositados em juízo aguardando o julgamento de recurso - por meio de decisão judicial, sob o fundamento de que esses valores seriam destinados ao setor da saúde e ao combate à pandemia. VIAPIANA, Tábata. Juíza autoriza levantamento de R$ 53,3 milhões em favor da capital paulista. Acesso em: 19/5/2020.

2 STF. Tutela Provisória Incidental no RE com agravo 1.239.911- SP. 1ª Turma. Relator ministro Luiz Fux. j. 13/5/2020.

3 INTERNATIONAL MONETARY FUND. World Economic Outlook Reports. April 2020. Acesso em 18 de maio de 2020.

4 AA. VV. Resposta aos comentários tecidos pela Consultoria Jurídica do TCU ao PL 7.448/2017. Acesso em 28 de maio de 2020. Pode-se ler, ainda, nessa sede, que "sempre que o Poder Público tiver de decidir tendo por base um conflito de bens jurídicos de qualquer espécie, deve analisar a possibilidade dessa medida levar à realização pretendida (adequação), de a medida ser a menos restritiva aos direitos e interesses envolvidos (necessidade) e de a finalidade pública buscada ser valorosa a ponto de justificar a restrição imposta (proporcionalidade em sentido estrito)".

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*Thaís Dias David é advogada, pós-graduada em Ciências Criminais pela UCAM. Coordenadora jurídica na Antunes Mascarenhas Advogados, no Rio de Janeiro.

*Thiago Junqueira é doutor em Direito Civil pela Uerj. Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor do ICDS e do Programa de MBA da Escola Nacional de Seguros. Sócio de Chalfin, Goldberg, Vainboim Advogados.

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