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Breves apontamentos sobre o feminicídio

No Brasil, o tema da violência de gênero ganhou envergadura na década de 80, em virtude das pressões dos movimentos feministas no contexto da redemocratização, que colocaram a questão nas agendas oficiais das políticas públicas do país.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Atualizado às 11:56

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O assassinato cruel da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi pelo ex-marido, Paulo José Arronenzi, na presença das três filhas pequenas, põe a discussão sobre a violência contra as mulheres em foco, mais uma vez. No Brasil, o tema da violência de gênero ganhou envergadura a partir da década de 80, em virtude das pressões dos movimentos feministas no contexto da redemocratização, que colocaram a questão nas agendas oficiais das políticas públicas do país1.

Do ponto de vista político-normativo, em atenção à Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher2, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994, dois importantes marcos legais no enfrentamento à violência de gênero entraram em vigor: a lei Federal 11.340/20063, conhecida como Lei Maria da Penha, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, e a lei Federal 13.104/20154, que incluiu o feminicídio como qualificadora do homicídio no Código Penal, além de atribuir a ele a qualidade de crime hediondo, atualizando, como não poderia deixar de ser, o artigo 1º da lei Federal 8.072/19905, chamada de Lei dos Crimes Hediondos.

Apesar da alcunha 'feminicídio', o legislador não criou nenhum crime novo, apenas incluiu uma qualificadora do homicídio com vistas a fortalecer o repertório jurídico em prol do combate à violência de gênero. Em outras palavras, o feminicídio constitui somente uma qualificadora do homicídio discriminatório de mulheres, devendo ser praticado em "situação caracterizadora" de violência doméstica e familiar - geralmente exercida pelo cônjuge ou parceiro, apresentando muitas vezes um histórico de repetidas agressões -, ou "motivado" por menosprezo ou discriminação à condição feminina - em geral ligada a situações de humilhação e dominação. Convém esclarecer, entretanto, que nem sempre um homicídio doloso contra uma mulher configura o feminicídio, pois esse somente se configurará quando a conduta do autor do crime for motivada pelo menosprezo ou discriminação à condição feminina da vítima, ou se ficar caracterizada a violência doméstica e familiar6.

O reforço legislativo representou um oportuno progresso na abordagem do tema da violência de gênero no Brasil, principalmente quando comparamos com o modo como a questão era tratada pela Justiça brasileira. É importante que se diga que a opção político-normativa foi prudente e simbolizou a profunda consternação com a violência estrutural sofrida por mulheres discriminadas pelo simples fato de serem mulheres, permitindo, na prática, a implementação de uma política criminal mais eficiente na luta contra uma patologia que contamina a sociedade brasileira e o mundo7.

Cumpre salientar que, desde a promulgação da lei Federal 13.104/2015, se observou o crescimento dos casos de feminicídios ao redor do país. No primeiro semestre de 2020, por exemplo, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o número de vítimas do sexo feminino nos homicídios dolosos foi de 1.861, um crescimento de 1,5% em relação ao mesmo período do ano passado, e o número de feminicídios foi de 648 (um aumento de 1,9%)8.

A despeito do número expressivo de assassinatos praticados por impulsos puramente machistas, quando o Sistema de Justiça Criminal é chamado a intervir já houve a perda de uma vida, que é um fim em si mesma e, portanto, inaceitável. Por essa razão, mais do que criticar formas essencialmente repressivas, precisamos pensar em mecanismos de prevenção, orientação e educação coletiva para que, quem sabe um dia, sejam evitados desfechos trágicos feito o da juíza e tantos outros que ocorrem diariamente. Por isso a importância da desestruturação de toda uma estrutura machista por meio da formação de pessoas que estejam engajadas em desmantelar, firmemente, esse caldo histórico-cultural atroz, abandonando o machismo, onde todos, independente de qualquer fator, possam conviver harmonicamente.

Voltemos à Hespanha, cirurgicamente rememorado pela eminente jurista e professora Sílvia Pimentel: "O mundo está cheio - cada vez mais cheio - de senso comum, de imagens feitas, de ideias recebidas e repetidas acriticamente, de uma ditadura doce dos meios de comunicação social que, além de confundir simplicidade com simplificação, torna automaticamente aceites os pontos de vista mais problemáticos". Por isso, o enfrentamento contra as múltiplas formas de discriminação, especialmente as de gênero, exige problematização, firmeza e constância, que há de começar por cada um de nós9.

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1 Disponível em: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. Acessado em: 26.dez.2020.

2 Disponível aqui. Acessado em: 27.dez.2020.

3 Disponível aqui. Acessado em: 27.dez.2020.

4 Disponível aqui. Acessado em: 27.dez.2020.

5 Disponível aqui. Acessado em: 27.dez.2020.

6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. 10. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 396.

7 BITENCOURT, Cezar Roberto. Código penal comentado. 10. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 397.

8 Disponível em: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020. Acessado em: 26.dez.2020.

9 PIMENTEL, Sílvia. Gênero e direito. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível aqui.

Felipe Chiavone Bueno

Felipe Chiavone Bueno

Advogado Criminalista. Bacharel em Direito pela PUC/SP. Pós-graduado em Direito Processual Penal. Mestrando em Direito Penal na PUC/SP. Comissão Especial de Direito Penal da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB/SP.

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