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O que "Bum Bum Tam Tam" nos ensina sobre domínio público e direito de autor

Todo primeiro de janeiro, diversas obras caem em domínio público por ter expirado seu prazo de proteção. Mais do que permitir a livre reprodução das obras, o domínio público funciona como um instrumento para a promoção da criatividade e criação de novas obras.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Atualizado às 08:23

 (Imagem: Arte Migalhas.)

(Imagem: Arte Migalhas.)

Em tempos de pandemia de Covid-19, a autorização de uso da vacina Coronavac, desenvolvida em parceria pelo Instituto Butantan e pela empresa chinesa Sinovac, trouxe esperança a diversos brasileiros. A euforia com a vacina e com o bom trabalho do Butantan fez com que muitos internautas resgatassem o hit de 2017 "Bum Bum Tam Tam", de Mc Fioti, como o "hino da vacina". A popularidade do meme cresceu tanto que a Orquestra Sinfônica da Bahia decidiu gravar a sua versão do popular funk, para o horror de alguns entusiastas de música clássica. Além de ter dado origem a uma nova versão do próprio Mc Fioti, com clipe gravado no Instituto Butantan.

O que muitos que torceram o nariz para a obra de Mc Fioti talvez não saibam é que "Bum Bum Tam Tam" é uma obra criada a partir da "Partita em lá menor", peça clássica para flauta solo composta pelo compositor barroco alemão Johann Sebastian Bach por volta de 17231.

Tendo Bach falecido em 1750, suas obras estão em domínio público porque decorrido o prazo de proteção dos direitos autorais patrimoniais2, na forma do artigo 43 combinado com o artigo 45 da Lei Brasileira de Direitos Autorais (lei 9.610/98)3. Assim, qualquer pessoa pode livremente utilizar as obras do referido autor, o que inclui não só a sua livre reprodução e execução, mas também sua adaptação e outras transformações.

Frise-se que o domínio público de que trata o direito autoral não possui nenhuma relação com o conceito de domínio público do direito administrativo4. Enquanto que no direito administrativo domínio público se refere a bens públicos, no direito autoral domínio público é a situação da obra que não goza mais de exclusividade em vista da não incidência de direitos autorais patrimoniais.

Uma vez que para autores falecidos a proteção do direito autoral perdura por 70 anos após o óbito (contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento), todo o dia primeiro de janeiro diversas obras caem em domínio público. Neste ano de 2021, entre os autores cujas obras caíram em domínio público está George Orwell, autor de "1984" e "Revolução dos Bichos".

O domínio público, em regra, ocorre após garantido um período de exclusividade ao autor como forma de fomentar a atividade criativa e tem importantes funções, como facilitar a disseminação das obras em vista do fim das restrições à sua livre utilização. Mas uma das funções talvez menos óbvias é estimular a criatividade por meio da facilitação da criação de obras derivadas.

Obras derivadas são criações intelectuais novas que se utilizam de uma obra anterior. Quando a obra anterior é protegida por direitos autorais patrimoniais, sua utilização na obra derivada dependerá da prévia autorização do autor, conforme artigo 29 da Lei Brasileira de Direito Autoral (le 9.610/98), exceto se forem aplicáveis as exceções previstas nos artigos 46, 47 e 48 da mesma lei.

Ocorre que, apesar da previsão dessas limitações aos direitos autorais, não rara a utilização de trechos de uma obra pré-existente em uma obra derivada gera celeumas que acabam por ser resolvidas no Judiciário. Isto porque o artigo 46, inciso VIII da Lei Brasileira de Direito Autoral (lei 9.610/98), que autoriza o uso em obra nova de pequenos trechos de obra pré-existente deixa ao prudente arbítrio do intérprete definir o que seriam "pequenos trechos", abrindo espaço para interpretações conflitantes quanto à necessidade de prévia autorização do autor da obra originária para a sua utilização em obra derivada5. Essa controvérsia mesmo se considerando que o chamado "fair use" encontra guarida na Convenção da União de Berna6, tratado de direito autoral do qual todos os países membros da Organização Mundial de Comércio são signatários.

Obviamente que a referida norma não deve dar guarida a casos gritantes de simples reprodução não autorizada (para não dizer plágio) de obras - como o famoso caso da música "Ice ice baby", de Vanilla Ice, a qual copia de forma gritante a linha de baixo de "Under Pressure", de Queen e David Bowie. Porém, é notório que artistas não criam em um vácuo e que são influenciados por obras e artistas que lhe antecederam. Tanto é assim que não são raras as releituras de obras clássicas, gerando novas obras dotadas de sua própria criatividade.

Alguns exemplos do uso de obras anteriores na criação de novas obras criativas são o personagem Coringa, do HQ "Batman" (inspirado no personagem principal da obra "O homem que ri", de Victor Hugo conforme retratado no filme alemão de mesmo nome7), os personagens Mark Darcy e Daniel Cleaver, de "O diário de Bridget Jones" (inspirados em personagens da obra "Orgulho e Preconceito", de Jane Austen8) e as diversas releituras da obra "Romeu e Julieta", de Shakespeare, que periodicamente surgem. O que há em comum em todos os casos aqui citados? As obras de Victor Hugo, Jane Austen e Shakespeare estão em domínio público.

Não se pode perder de vista que o uso livre permitido pelo domínio público não extingue completamente os direitos morais, visto que a lei determina que cabe ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público (conforme artigo 24, §2º da Lei Brasileira de Direitos Autorais9). Porém, é certo que a desnecessidade de prévia autorização torna mais simples o processo de criação de obras derivadas.

Não se sabe se Bach aprovaria essa improvável colaboração entre saúde pública, ciência, música barroca e funk, mas é certo que toda a sociedade se beneficia quanto a criatividade não é indevidamente tolhida.

_________

1- Conforme explicou Mc Fioti ao portal G1. Como MC Fioti usou flauta de Bach em produção caseira e transformou 'Bum bum tam tam' em aposta mundial | Música | G1 (globo.com), acesso em 29.01.2021.

2- Os direitos autorais se dividem em direitos autorais patrimoniais (que se ligam ao direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica) e direitos morais (que visam a proteger a personalidade do autor e lhe garantem os direitos de indicação de autoria e de manter a integridade da obra, entre outros elencados no artigo 24 da Lei nº 9.610/1998),

3- "Art. 41. Os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.

Parágrafo único. Aplica-se às obras póstumas o prazo de proteção a que alude o caput deste artigo.

Art. 45. Além das obras em relação às quais decorreu o prazo de proteção aos direitos patrimoniais, pertencem ao domínio público:

I - as de autores falecidos que não tenham deixado sucessores;

II - as de autor desconhecido, ressalvada a proteção legal aos conhecimentos étnicos e tradicionais."

4- Neste sentido, veja-se BRANCO, Sérgio. O domínio público no direito autoral brasileiro; uma obra em domínio público. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2011, p. 54.

5- Um exemplo dessas decisões conflitantes é Recurso Especial Nº1.455.668-RJ, em que, após as instâncias ordinárias entenderem não incidir o artigo 46, inciso VIII da Lei nº 9.610/1998 em razão do uso de bonequinhos pelo período de 1,8 segundo em um filme publicitário de 30 segundos e no qual os mesmos exercem papel secundário, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça entendeu pela possibilidade da aplicação da referida limitação.

6- "Artigo 9º

1) Os autores de obras literárias e artísticas protegidas pela presente Convenção gozam do direito exclusivo de autorizar a reprodução destas obras, de qualquer modo ou sob qualquer forma que seja.

2) Às legislações dos países da União reserva-se a faculdade de permitir a reprodução das referidas obras em certos casos especiais, contanto que tal reprodução não afete a exploração normal da obra nem cause prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor."

8- BERVEGLIERI, Sonia. Do filme ao livro: as relações intertextuais entre o filme O Diário de Bridget Jones e o livro Orgulho e Preconceito. Dissertação de mestrado (2016). Disponível  aqui., acesso em 29.01.2021.

9- Inclusive, no passado já houve petição online para que fossem recolhidas versões simplificadas de obras de José de Alencar e Machado de Assis com base na referida norma. Os clássicos às machadadas* - Migalhas (uol.com.br), acesso em 29.01.2021.

Aline Ferreira de C. da Silva

Aline Ferreira de C. da Silva

Sócia de Kasznar Leonardos | Propriedade Intelectual Mestre em Direito da Propriedade Intelectual pela Universidade de Cambridge.

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