Direito ao esquecimento
Histórico, abrangência e a repercussão da decisão do STF.
terça-feira, 16 de fevereiro de 2021
Atualizado às 08:25
O dia 11 de fevereiro de 2021 virou um marco para reafirmação da democracia no Brasil. O plenário do STF concluiu o julgamento do recurso extraordinário 1.010.606, com repercussão geral, que teve por objeto a discussão do reconhecimento do direito ao esquecimento na esfera cível. O julgamento se encerrou com a orientação firmada no sentido de que "É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício de liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais, especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível."
Foram nove votos contrários ao direito ao esquecimento, vencido apenas o ministro Fachin, para quem a existência do direito ao esquecimento poderia ser (ou deveria poder ser) analisada caso a caso e aplicada em casos excepcionais.
Os debates trazidos pelos ministros para a prolação de seus respectivos votos foram acalorados, e trouxeram à tona fatos que marcaram os ideais democráticos que se cristalizaram na Constituição Federal brasileira.
O relator, min. Dias Toffoli, defendeu que "Não cabe ao Judiciário criar um suposto direito ao esquecimento. Admitir o direito ao esquecimento seria uma restrição excessiva e peremptória às liberdades de expressão e manifestação".
Acompanhando a tese do relator, os ministros Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Luiz Fux também trouxerem relevantes contribuições em seus votos.
Um dos votos mais marcantes foi o da min. Cármen Lúcia, que, trazendo bela metáfora com a Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, destacou a importância de se primar pela memória das conquistas históricas vividas pelas mulheres, negros, índios e gays nas lutas contra as violências sofridas. Para a Ministra, "em um país de curta memória, discutir e julgar o esquecimento como direito fundamental, nesse sentido aqui adotado, ou seja, de alguém poder impor o silêncio e até o segredo de fato ou ato que poderia ser de interesse público, pareceria, se existisse essa categoria no direito, o que não existe, um desaforo jurídico."
Trocando em miúdos, o debate se debruça sobre a contraposição de dois princípios constitucionais fundamentais: de um lado, a garantia constitucional à plena liberdade de expressão e manifestação do pensamento, independentemente de cesura (CF, art. 220) e, de outro, o direito à privacidade e à tutela da dignidade da pessoa humana (CF, art. 5º, inciso X) advindo de recurso interposto em ação de reparação de danos ajuizada pela família de Aída Curi contra a TV Globo.
Em suma, em 1958, a jovem Aída Curi foi violentada sexualmente por três homens e morta. O crime foi muito debatido na mídia na época e, passados quase cinquenta anos dos fatos, o programa de TV "Linha Direta Justiça", da TV Globo, trouxe exposições explícitas do referido crime, rememorando a história e as dores vividas pelos familiares da vítima.
Em 2013, o STJ julgou o Recurso Especial interposto contra o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em histórica, e até então paradigmática, decisão relatada pelo min. Luis Felipe Salomão, que reconheceu o direito ao esquecimento, porém afastou-o do caso concreto. Segundo Salomão, "a assertiva de que uma notícia lícita não se transforma em ilícita com o simples passar do tempo não tem nenhuma base jurídica".
Diferentemente da orientação do STJ, o STF entendeu que o direito ao esquecimento não é plausível na esfera cível quando requerido pela vítima ou por seus familiares.
De todo modo, o tema sobre o qual o STF se debruçou restringe-se à esfera cível do direito esquecimento, não se tendo firmado orientação a respeito das demais facetas do instituto.
Segundo o relator, o min. Dias Toffoli, é indispensável delimitar o alcance do direito ao esquecimento através da licitude da informação e do decurso do tempo, não devendo a conclusão deste caso ser generalizada para outras áreas do ordenamento, necessitando que cada caso seja analisado conforme suas peculiaridades.
Sim, porque o direito ao esquecimento foi sendo construído ao longo da história universal sob diversos espectros como o direito a ser esquecido, o direito à desindexação, o direito a apagar dados e o direito a ser deixado em paz.
No que se refere ao direito à desindexação, é importante observar as normativas que vigoram no âmbito do direito digital e aquelas que regem a proteção de dados pessoais.
No cenário estrangeiro, há um emblemático precedente do Tribunal de Justiça da União Europeia, de 2014, relacionado ao processo movido por Mario Costeja González contra o Google Espanha, em que a Corte, alargando a interpretação da diretiva de proteção de dados individuais, entendeu que "O processamento de dados realizado por operadores de mecanismos de busca pode afetar significativamente direitos fundamentais à privacidade e à proteção dos dados pessoais, sendo permitido que um indivíduo solicite aos operadores a remoção de links de pesquisa ligada ao seu nome".
No Brasil, esse precedente tem sido suscitado para ensejar que os sites de busca retirem de seus mecanismos a possibilidade da exibição de certos resultados, ainda que não haja a exclusão definitiva do conteúdo.
Um dos casos mais famosos é a ação ajuizada pela Xuxa contra o Google, em que a apresentadora pretendeu a condenação do Google a não mais apresentar qualquer resultado quando utilizada a expressão "Xuxa pedófila" ou variações da expressão que vinculasse seu nome a uma prática criminosa qualquer.
O caso foi julgado pelo STJ em outubro de 2017, tendo a Corte decidido que os provedores de pesquisa não podem ser obrigados a eliminar resultados derivados da busca de determinado termo ou expressão, tampouco os resultados que apontem para uma foto ou texto específico, independentemente da indicação do URL da página onde este estiver inserido.
Cumpre destacar, dentre os fundamentos do julgado, a referência à lei 12.965/14 - Marco Civil da Internet, a qual não se propõe a regulamentar a proteção de dados pessoais, e a afirmação da impossibilidade técnica de o provedor de compartilhamento de vídeos realizar a fiscalização antecipada de cada novo arquivo postado no site, em contraste com a decisão do tribunal europeu, a qual caracterizou o Google como um controlador de dados apto a realizar tal atividade, com amparo na Diretiva Europeia de Proteção de Dados Pessoais 95/46/EC, atualmente substituída pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia 2016/679.
Porém, esse entendimento não é unânime na Corte. Em 2018, o STJ reconheceu o direito de uma promotora de ter seu nome desassociado do resultado das buscas relacionadas a uma eventual fraude em concurso público, argumentando a existência de circunstâncias excepcionais, acerca de fatos desabonadores, não comprovados e sem relevância para o interesse público à informação, em que o direito à intimidade e ao esquecimento, bem como a proteção aos dados pessoais, devem preponderar.
Desta vez, as justificativas das Cortes brasileira e europeia coincidiram ao reconhecer a capacidade dos sistemas de pesquisa de implementarem as medidas técnicas necessárias à desindexação.
Nota-se que os julgamentos acima antecederam à vigência da lei 13.709/18 - a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, a qual insere os provedores de serviços de busca na internet na concepção de agentes de tratamento de dados, não mais atuando como intermediários neutros e passivos, mas sujeitando-se a todas as obrigações e requisitos lá previstos para garantir a proteção de dados pessoais sob pena de responsabilização.
Sob a perspectiva do direito penal, o direito ao esquecimento é tratado como uma decorrência do princípio da ressocialização de quem já cumpriu a pena e também encontra uma jurisprudência titubeante e não afetada pela orientação do STF.
Um pouco de história
Já no final do século XIX, Samuel Dennis Warren e Louis Dembitz Brandeis publicaram artigo intitulado "Right to Privacy", inaugurando o debate sobre o "direito de ser deixado em paz". Já no ensejo, os autores sopesavam que nem mesmo o direito de ser deixado em paz poderia impedir a publicação de matéria jornalística de interesse público; a divulgação de fatos que a própria lei autoriza e a divulgação oral de fatos privados desassociados de dano específico.
Um dos primeiros casos ocorreu em 1918, nos Estados Unidos, conhecido como Melvin vs. Reid. Neste caso, a apelante, Gabrielle Darley, foi no passado uma prostituta acusada de homicídio, mas inocentada. Após tal fato, Gabrielle deixou a prostituição e constituiu família, readquirindo prestígio social.
Anos depois, foi produzido o filme "Red Melvin", que retratava, em detalhes, a história de Gabrielle. O marido dela ajuizou ação buscando reparação pela violação à vida privada e obteve a procedência dos pedidos com fundamento que uma pessoa que vive uma vida correta tem o direito à felicidade.
O outro caso simbólico ficou conhecido como "Caso Lebach", e retrata o direito reconhecido pelo Tribunal Constitucional Alemão de um ex-condenado pelo homicídio de militares alemães, de impedir a publicação de um documentário televisivo sobre o crime, pelo fato de que o ex-detento já havia cumprido a sua pena.
Já no Brasil, um dos casos mais polêmicos é o da "Chacina da Candelária". Triste episódio ocorrido em 1993, em que adolescentes desabrigados que estavam dormindo em frente à Igreja de Nossa Senhora da Candelária foram assassinados, aparentemente por um grupo de policiais militares e um serralheiro de nome Jurandir Gomes de França.
Acontece que o serralheiro, que foi acusado como partícipe do crime, após 3 anos preso, foi absolvido por negativa de autoria pelo tribunal do juri, e em 2006, o programa Linha Direta Justiça, da TV Globo, procurou o inocentado para que fosse realizada uma entrevista. O STJ entendeu que a menção de seu nome como um dos partícipes do crime, mesmo esclarecendo que ele foi absolvido, causou danos à sua honra, já que ele teve reconhecido o direito de ser esquecido.
O resultado do julgamento pelo STF é um marco na história da nossa democracia, e hoje já é possível afirmar que o direito ao esquecimento não existe para casos de divulgação de atos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Resta saber como será a repercussão disso para os outros enfoques que resvalam o instituto.