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Breves reflexões sobre a responsabilidade penal por omissão no contexto de sociedades empresárias

Adotamos, como responsabilidade intrínseca, aquela capacidade individual de ponderar os próprios atos e identificar as respectivas consequências. Por sua vez, adotamos, como responsabilidade extrínseca, a atuação estatal frente a determinado ato indevido praticado.

quinta-feira, 4 de março de 2021

Atualizado em 9 de abril de 2021 14:43

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Você não é produto das circunstâncias, você é produto das suas decisões.

Viktor Frankl

O mundo não será salvo pelos caridosos, mas pelos eficientes.

Roberto Campos

Não é novidade que, hoje, vivenciamos uma economia globalizada que se caracteriza especialmente por uma integração transnacional de inúmeras e variadas operações comerciais (tanto de serviços quanto de produtos). Também não é novidade o fato de que o desenvolvimento econômico decorrente deste processo vem resultando em benefícios incomensuráveis, a exemplo da redução global da pobreza em termos relativos e absolutos, aumento geral do conforto e potencialização do exercício das liberdades individuais humanas. Por outro lado, a dinâmica deste desenvolvimento traz consigo, naturalmente, a imposição de responsabilidades intrínsecas e extrínsecas a todos os agentes envolvidos neste processo (stakeholders), especialmente aqueles que conduzem atividades empresariais de todo tipo.

Intrínseca se diz da responsabilidade ao pensarmos que cada qual tem a capacidade de analisar seus atos e de se auto responsabilizar pela prática desses, sem a necessidade de buscar uma validação externa - uma chancela de um ente supostamente capaz de "liberar" o indivíduo de sua responsabilidade pessoal, a exemplo do Poder Público. Não raro, deparamo-nos com indivíduos que, de maneira consciente ou inconsciente, condicionam o exercício de suas liberdades individuais ao aval de uma figura, geralmente dotada de poder estatal, que delimita o "certo" e o "errado" em todos os aspectos possíveis. Em outras palavras, esvazia-se a liberdade individual em detrimento de uma falsa sensação de segurança e de conforto. Theodore Dalrymple talvez tenha sido quem melhor equacionou esta questão de maneira cirúrgica: "muitos almejam do ente público uma postura - insustentável - de proteção ininterrupta".1 Extrínseca, por sua vez, é a responsabilidade verificada quando determinada conduta de certo indivíduo extrapolou, de fato, os limites estritos da legislação aplicável, demandando uma responsabilização estatal.

Em resumo, adotamos, para os fins do presente artigo, como responsabilidade intrínseca, aquela capacidade individual de ponderar os próprios atos e identificar as respectivas consequências. Por sua vez, adotamos, como responsabilidade extrínseca, a atuação estatal - dotada de coerção - frente a determinado ato indevido praticado.

De fato, uma não exclui a outra. Faz-se imprescindível chamar a atenção para a diferença nas mencionadas espécies de responsabilização por ser cada vez mais evidente, nos dias atuais, um vácuo no senso de auto responsabilização, o que acaba resultando, na prática, no oferecimento das mais esdrúxulas justificativas acerca do não cumprimento de determinada regra ou obrigação, especialmente legal. Ou seja, hoje se vê nas empresas aquilo que Dalrymple, já há longos anos, identificava no discurso de seus pacientes em prisões:

Como tantos prisioneiros, ele exibia uma atitude infantil para com o Estado, como se este fosse, ou devesse ser, um pai onisciente e onipresente, e estava chocado por descobrir que o Estado tinha suas franquezas e deficiências. Ficou indignado com pequenos problemas relativos ao testemunho de um policial, tal como o momento preciso em que determinada coisa ocorreu, mesmo que isso não afetasse o resultado ou tivesse o mínimo reflexo em sua culpa ou inocência. Tal problema revogava a culpa por qualquer coisa que tivesse feito. Ele era inocente porque os outros eram culpados.2 (grifos nossos)

Um panorama jurídico de caráter mais sólido, em que o não cumprimento da legislação aplicável ou das regras internas de determinada sociedade empresária sejam a regra, e não a exceção, só se pode atingir através do amadurecimento do senso de auto responsabilização. Desse modo, a racionalização da conduta indevida deixa de ser um escape comumente aceito. Até porque é geralmente mais interessante ao sistema jurídico que uma noção de dever e responsabilidade sirva como freio primário à conduta desviante, em prioridade à punição estatal, que impõe dificuldades naturais de alcance uma vez que o fato já tenha ocorrido e, não raro, o dano já tenha sido causado. E, a partir do presente ponto, conseguimos entender a razão de nossa escolha de epígrafe ao presente texto: a prática de algum ato indevido3 é, no final, sempre uma escolha do indivíduo. As circunstâncias - como a imposição de regras burocráticas sufocantes e muitas vezes injustificáveis e ineficientes - podem eventualmente favorecer a prática da conduta desviante, mas o ponto é que a escolha última é sempre da pessoa.

Pois bem, em um panorama de globalização da economia de mercado, ou seja, de complexas trocas comerciais transnacionais, é natural que os agentes econômicos - em especial as sociedades empresárias e outros entes dotados de personalidade jurídica - também sejam compostos de estruturas organizacionais sofisticadas. Tomemos como exemplo uma empresa multinacional com subsidiária no Brasil: as estratégias de compliance aqui implementadas tendem a ser diretrizes estabelecidas no país onde a sede está localizada (fora do Brasil), sendo certo que tais comandos poderão ser implementados por pessoas - cada qual exercendo as funções de seu cargo - localizadas em diversos continentes. E isso sem falar nos efeitos das atividades econômicas exercidas, que podem extrapolar os limites territoriais de determinada localidade4. Estas complexidades fáticas e jurídicas geram diversos problemas de ordem prática quando pensamos em responsabilização penal de delitos praticados no seio de sociedades empresárias.

Justamente por, atualmente, estarmos diante de tamanha complexidade empresarial organizacional, seja quanto às atividades econômicas desenvolvidas ou quanto à estruturação de cargos e funções, a imputação penal por omissão desponta como caminho para a responsabilização de atos ilícitos praticados no cerne de sociedades empresárias. Isso porque, em intrincados emaranhados econômico-societários, o "não fazer" - a omissão - surge como pretexto para justificar a completa ausência de responsabilidade frente a determinada situação, ao passo que o "fazer" é mais "palpável", de mais fácil constatação prática.

De nosso lado, parece-nos menos complexa a reflexão jurídica voltada à conduta ilícita lastreada em um "fazer", um "agir" - um ato tomado por alguém. Assim, a proposta desta breve análise é a de abordar justamente o "não fazer", o "não agir" - a omissão. Assim como a ação, a omissão também pode ser penalmente relevante. Isso, em um contexto de crimes relacionados às funções exercidas no seio de uma sociedade empresária, tende a ser igualmente comum àquelas condutas caracterizadas por um "agir" (uma ação positiva). Porém, o enfoque dado à prevenção de tais condutas na prática costuma ser abaixo do recomendável por parte das sociedades empresárias muito em razão do desconhecimento de que a omissão também pode caracterizar uma figura típica (um crime).

Para complicar mais: "não fazer nada" pode significar "fazer algo". Não agir pode se caracterizar em um ato em si - e com repercussões na esfera criminal. Ou seja:

O crime, conforme já vimos, consiste basicamente em fazer o que está proibido ou em não fazer o que está determinado por norma preceptiva. Os crimes de omissão correspondem a esta segunda categoria de infração: o agente não faz o que podia e estava obrigado a fazer.5

Especialmente (mas não somente) em cargos de gestão, a omissão resta mais evidente, visto que tais posições demandam, frequentemente, a tomada de atos expressos. Seja o resultado de tais atos algo previsto em lei ou nas próprias regras internas da sociedade empresária, tem-se que a o agente relevante geralmente anuiu, expressa ou tacitamente, ao dever de sua observância.

Para que se bem analise a pertinência e cabimento de eventual responsabilização, faz-se imprescindível que a caracterização da omissão em cargos de gestão passe, no mínimo, pela análise de um trinômio: 1) panorama legal aplicável ao cargo; 2) documentos atinentes ao cargo (escopo de funções delimitado em instrumento formal, como, por exemplo, contrato de trabalho); e 3) contexto fático.

Panorama legal, pois, em algumas situações, a legislação aplicável estabelece (a exemplo do caso das sociedades anônimas6) atribuições indispensáveis ligadas a determinados cargos. Documentos atinentes ao cargo porque a sociedade empresária pode ir além da legislação, estabelecendo inúmeras outras funções àquela posição em específico - e isso tende a estar delineado em algum tipo de documentação. Por último, contexto fático, que significa dizer que a análise da omissão relativa a cargos de gestão exige uma apurada constatação das funções que são exercidas na prática. Quanto a este último ponto, cumpre observar o entendimento de Heloisa Estellita no sentido de que nem sempre

(...) as pessoas que ocupam os cargos na empresa efetivamente desempenham as funções a eles atreladas. (...) diante da incongruência entre tarefas e competências atribuídas ao dirigente e as por ele de fato exercidas, prevalecem estas últimas.7

Os atos omissivos podem ser doutrinariamente qualificados como próprios ou impróprios. Na verdade, trata-se da classificação dos crimes por omissão. Em linhas bastante gerais, pode-se afirmar que ocorrerá a omissão própria quando a pessoa não agir para evitar um resultado: o simples fato de não agir já gera a responsabilização penal. Ou seja, não há necessidade de se demonstrar que a ausência de ação da pessoa gerou determinado resultado. Por sua vez, a omissão imprópria resta caracterizada quando a pessoa não age, mas, diante dela, há um "dever de garante". Ou seja, o próprio gestor (no caso), ao assumir seu cargo, concordou em colocar-se na posição de responsável por evitar o acontecimento de determinados resultados.

Por essas razões, afirmamos que aos cargos de gestão é especialmente relevante a delimitação expressa dos deveres estritos que lhe são impostos. Isso porque a figura do dever de garante lhes é de imputação muito mais comum quando comparada aos demais cargos empresariais. De tal maneira, evasivas típicas como: "eu não sabia" ou "deleguei tal função a um subordinado" se tornam de difícil aceitação, devendo a redação e a execução das políticas de compliance estarem atentas este fato. O gestor deve saber ou, no mínimo, deve buscar saber tudo aquilo que está, ao menos, diretamente relacionado ao seu cargo e às suas funções.

Neste ponto, fazemos uma ressalva: não há como se esperar, por exemplo, que um CEO de determinada sociedade empresária multinacional desça à minúcia de toda a operação e que qualquer falha seja de sua responsabilidade (teoria da equivalência dos antecedentes). Por outro lado, é responsabilidade de tal figura - e de demais cargos de gestão - a delegação de funções a seus subordinados (desde que as funções sejam passíveis de delegação e não aquelas inerentes ao seu próprio cargo), que, ao assumirem seus respectivos cargos, deverão observância às suas funções. Em resumo, não podemos esperar - geralmente8 - que um CEO seja responsabilizado criminalmente, por determinada lesão causada em um empregado, haja vista falha operacional em uma unidade fabril, quando a responsabilidade pela manutenção de certo equipamento é, diretamente, do gerente industrial. Em contrapartida, espera-se de um CEO uma preocupação no sentido de que seus subordinados diretos estão observando (e ele também), irrestritamente, práticas de livre mercado e de livre concorrência, ou seja, evitando condutas que configurariam o crime de cartel. Aliás, é para isso que servem regras de compliance e de governança corporativa: visam mitigar o risco da prática de condutas ilícitas - como a de cartel - no seio da atividade empresarial. Nesse sentido, frente aos exemplos acima, reforçamos uma vez mais, a análise do caso prático - legislação aplicável, documentos societários ("normas extrapenais")9 e contexto fático - irá revelar a qual a correta responsabilização penal.

Fato é que a responsabilização penal por omissão é uma técnica de imputação criminal clássica, com previsão no Código Penal de 1940, mas com utilização prática mais recente no que diz respeito às sociedades empresárias, cuja realidade se torna cada vez mais complexa (podendo-se dizer o mesmo da investigação e persecução de crimes ocorridos neste âmbito). Por isso é que os entes privados devem estar especialmente atentos a tal fenômeno, buscando prevenir a ocorrência de condutas indevidas (aí incluídas, como explicado, as omissões) por meio de regras de compliance e de governança corporativa.

_________

1 DALRYMPLE, Theodore. A faca entrou: assassinos reais e a nossa cultura. Tradução e notas André de Leones. 1ª ed. São Paulo: É Realizações, 2018, p. 77.

2 Idem.

3 O termo "ato indevido" é aqui empregado para denotar a nuance de poder-se agir contra as regras internas da sociedade empresária, sem que isso caracterize, necessariamente, um ato ilícito (violação da legislação aplicável).

4 BARBAS, Leandro Moreira Valente; BARBOSA, Alexandre Izubara Mainente; DEVEIKIS, Gabriel Druda. Atos com Repercussão Transnacional e o Compliance Criminal da Empresa Sujeita a Múltiplos Ordenamentos Jurídicos. In: BECHARA, Fábio Ramazzini. Compliance e direito penal econômico. São Paulo: Almedina, 2019.  

5 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de Direito Penal: de acordo com a Lei n. 7.209, de 11-7-1984 e com a Constituição Federal de 1988. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 116.

6 Por exemplo, Alfredo Sérgio Lazzareschi assevera que a Lei das Sociedades Anônimas (Lei Federal 6.404) determina que: "O poder de representação dos diretores é geral, sujeito apenas às limitações expressas na lei, no estatuto e nas deliberações sociais. Justamente porque é impossível enumerar todos os atos que podem ser práticos pelos administradores, deve-se entender que, salvo as restrições estabelecidas na lei, no estatuto e nas deliberações sociais, os administradores podem validamente praticar todos os atos destinados ao funcionamento regular da companhia. Entende-se por funcionamento regular as práticas de atos destinados à consecução do objeto social, referindo-se a lei aqui à gestão ordinária da companhia." Cf. LAZZARESCHI NETO, Alfredo Sérgio. Lei das Sociedades por Ações anotada. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 417.

7 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 174.

8 A não ser que estejamos diante de situações recorrentes (sistêmicas).

9 "Dissemos também que as normas extrapenais que regulam a administração e a gestão das sociedades empresárias têm papel indiciário na identificação dos garantidores, sendo seu principal papel o auxílio na determinação do âmbito e conteúdo dos deveres uma vez que delimitam a possibilidade jurídica de agir.

[...] a fundamentação da posição de garantidor é uma incumbência das normas penais, mas os contornos concretos podem ser complementados por normas extrapenais, especialmente no que tange à delimitação dos âmbitos de controle dos dirigentes dentro das sociedades empresárias e das suas possibilidades jurídicas de agir para impedir o resultado, sempre que o exercício efetivo das funções corresponda aos contornos legais." (ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 174.)
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Gabriel Druda Deveikis

Gabriel Druda Deveikis

Sócio do GDD ADVOGADOS. Mestre em Direito pelo Mackenzie (Criminal Compliance). Pós-graduações em Constitucional, em Processo Penal e em Direitos Fundamentais. Especialização em Compliance.

Leandro Moreira Valente Barbas

Leandro Moreira Valente Barbas

Doutor e mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado pela Escola de Direito de São Paulo - EDESP. Palestrante e professor. Consultor do escritório GDD ADVOGADOS.

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