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Pirataria à mesa

O mercado de jogos de tabuleiro teve um desenvolvimento significativo na última década e um dos obstáculos para consolidação deste importante setor será (como costumeiro) a pirataria.

quarta-feira, 17 de março de 2021

Atualizado às 13:11

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A indústria de jogos analógicos, comumente chamados de jogos de tabuleiro (board games), tem apresentado um crescimento substancial mesmo diante de todo avanço tecnológico experimentado no setor de entretenimento nesta última década.

Em pesquisa realizada em 2019 pela PGB (Pesquisa Game Brasil)1 o número de consumidores brasileiros que adquirem jogos analógicos é significante: 28% dos entrevistados afirmam que compram e jogam jogos de tabuleiros modernos. Não por menos, o número de jogos lançados ou desenvolvidos no mesmo ano alcançou 421 novos títulos, demonstrando a relevância do segmento no setor de entretenimento.

A excelente matéria publicada pela FORBES2, em julho de 2019, sobre o mercado de jogos analógicos brasileiro destacou que "o segmento representou 9,7% das vendas do setor de brinquedos, de um total de R$ 6,871 bilhões, em 2018". O futuro da indústria também é promissor: espera-se que até 2026 o segmento de jogos analógicos global alcance valores consideráveis (movimentando montante aproximado em 13 bilhões de dólares), conforme previsões realizadas pelo ReportLinker3, site conceituado da área que faz análises de mercados e projeções para diversas indústrias focado em investidores.

Esse crescimento, por certo, é fruto de uma longa e interessante transformação do segmento de jogos de tabuleiros. A modernização do setor trazidas por grandes empresas como Conclave, Galápagos, Calamity Games, PaperGame e Meeple BR revolucionou o modo que olhamos os jogos de tabuleiro. É preciso apagar a ideia de que estes jogos são primordialmente desenvolvidos para o público infantil (mesmo problema enfrentado pela indústria de jogos eletrônicos - games) para que se entenda a maturação, o desenvolvimento e a consolidação deste setor que passou a atingir um público diverso, principalmente, o público adulto.

Por certo, todo esse desenvolvimento e consolidação do mercado traz também desafios para a indústria. Por exemplo, neste período de pandemia global, a cadeia logística e de insumos para a produção, desenvolvimento e distribuição dos jogos de tabuleiro foi afetada, apresentando um obstáculo ao desenvolvimento do setor. O preço final dos produtos, derivado da alta tributação enfrentada pelo segmento e pelos custos do desenvolvimento dos produtos, também dificulta o acesso pelo consumidor.

Entretanto, o objeto é chamar a atenção para outro problema, afeito a área dos direitos de propriedade intelectual, que pode prejudicar o desenvolvimento do setor em território brasileiro: a pirataria.

Cabe aqui um pequeno esclarecimento do que consiste a pirataria em termos jurídicos. Pirataria é um termo comum, utilizado pelo público em geral, para designar o ato que visa deturpar os direitos de propriedade intelectual pertencentes a terceiro. Dessa forma, aquele que, por exemplo, disponibiliza, usa, comercializa ou reproduz uma obra cujos direitos de propriedade intelectual pertencem a um terceiro, sem sua prévia autorização, incorre em ato de contrafação (pirataria), conforme estabelece o artigo 5º, VII, da lei 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais), conduta esta passível de punição cível e penal.

Por sua vez, é imprescindível qualificar que os jogos de tabuleiro são considerados obras intelectuais, conforme definição da própria Lei de Direitos Autorais. Afinal, são verdadeiros trabalhos artísticos/gráficos materializados nos componentes dos jogos, de modo que aqueles responsáveis pela sua criação, ou aqueles detentores dos direitos patrimoniais sobre a obra, podem adotar medidas para cessar a violação de seus direitos e buscar a justa indenização pelos atos de contrafação.

Na verdade, a pirataria não é uma novidade aos diversos segmentos que compõem a área do entretenimento. O setor audiovisual sofre com a distribuição e compartilhamento de cópias não autorizadas de filmes há décadas, mesmo problema vivido pela indústria fonográfica, de jogos eletrônicos e do mercado de televisão fechada (com a disponibilização de sinal não autorizado).

Os efeitos nefastos dessa prática impactam diretamente os setores acima mencionados, dificultando e inibindo o seu crescimento. Afinal, o investimento, em qualquer segmento, opera diretamente com a expectativa de retorno financeiro daqueles que investiram tempo, conhecimento e dinheiro no desenvolvimento de novas obras. A pirataria é, e sempre será, um empecilho ao desenvolvimento e à inovação.

Nesse sentido, a indústria de jogos de tabuleiro enfrenta, como todas as demais indústrias do segmento, o problema da pirataria. A diferença entre este setor e os demais, entretanto, é que o crescimento dessa indústria é ainda embrionário em território brasileiro e a pirataria, como acaba por acompanhar esse crescimento, ainda é incipiente.

Tal fato é peculiar a esta indústria e medidas protetivas dos direitos de propriedade intelectual pelas empresas e titulares devem ser tomadas e adotadas o quanto antes, minimizando o prejuízo e a consolidação de um segmento paralelo consubstanciado na pirataria, deixando-se claro que quanto mais se demorar para adoção destas medidas, mais difícil será superar o problema.

Um dos fatores importantes é que os jogos de tabuleiro são, de certa forma, caros ao público consumidor, em especial ao público brasileiro. A média de preços de um jogo de tabuleiro varia de R$ 150 a R$ 350. Cópias piratas de jogos vendidas em marketplaces podem ser adquiridas por valores muito menores, por exemplo, a R$ 50. A pirataria, portanto, acaba por representar uma via alternativa muito atrativa agravando os efeitos de desestímulo em tal setor.

Aliás, a própria forma de pirataria utilizada no segmento de jogos analógicos é peculiar. Como o custo para produção e desenvolvimento é alto, os contrafatores encontraram uma forma alternativa de comercialização destes produtos piratas. Ao se consultar os marketplaces mais conhecidos na internet percebe-se que existem uma quantidade considerável de anúncios vendendo as artes gráficas dos componentes dos jogos para impressão por parte do consumidor.

O consumidor, portanto, por uma quantia infinitamente inferior ao valor pago pelo produto original, pode comprar as artes gráficas dos componentes dos jogos (imagens do tabuleiro, das peças e dos cards, por exemplo), de modo que possa imprimir em sua casa e aproveitar o jogo, utilizando-se da cópia pirata. Alguns dos títulos mais aclamados recentemente (como os jogos ZOMBICIDE e DIXIT, distribuídos pela GALÁPAGOS JOGOS) estão facilmente acessíveis em anúncios (como descrito) nestes marketplaces.

 (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)

  (Imagem: Divulgação)

(Imagem: Divulgação)
 

Anúncio disponível clicando aqui. Acessado em 03 de março de 2021

Como dito, tal ato viola os direitos de propriedade intelectual dos titulares dos direitos patrimoniais sobre a obra, já que consistem em uma clara reprodução não autorizada dos elementos gráficos que compõem o jogo de tabuleiro, ato punível na esfera cível e penal.

Algumas medidas, portanto, podem ser muito interessantes para a proteção desses direitos, especialmente no que concerne à atuação conjunta dos detentores dos direitos dos jogos e os marketplaces nos quais, conforme descrito, encontra-se a maior parte dos produtos pirata.

Isso se deve ao fato de que, a inércia por parte das referidas plataformas em fornecer controle e respostas no combate à pirataria, termina por macular também a imagem e confiança destas perante o consumidor.

Nesse sentido, algumas plataformas, como o "Mercado Livre", já permitem o monitoramento de anúncios infratores, sua denúncia e derrubada - takedown -, garantindo ao menos uma contenção mais imediata e a curto prazo das violações.

Foi inclusive vislumbrando esta necessária parceria que no ano de 2020 a SENACON - Secretaria Nacional do Consumidor -, por meio de debates e análises promovidos pelo CNCP - Conselho Nacional de Combate à Pirataria -, desenvolveu o Guia de boas práticas e orientações às plataformas de comércio eletrônico para implementação de medidas de combate à venda de produtos piratas, contrabandeados ou, de qualquer modo, em violação à propriedade intelectual.

O objetivo do Guia é de estabelecer um modelo de práticas e condutas a serem adotadas por todos os atores da cadeia digital de consumo, estabelecendo princípios orientadores do uso das plataformas digitais e sugerindo medidas para fiscalização e prevenção da pirataria no meio digital de maneira imediata, eficaz e contínua.

É certo, porém, que o combate à pirataria demanda diferentes medidas, com objetivos a curto, médio e longo prazo. É por essa razão que, apenas a atuação em conjunto com os marketplaces, em que pese essencial, não permite que se atinja todos os agentes da cadeia de pirataria, uma vez que se limita, em geral, à retirada de anúncios infratores, sem maiores sanções aos indivíduos que realizam as violações ou mesmo sua identificação.

Justamente por esse motivo é que os titulares de direitos sobre os jogos podem e devem promover as medidas judiciais necessárias à identificação dos dados cadastrais dos indivíduos responsáveis pelos anúncios de produtos piratas.

A individualização desses infratores permite então ao titular dos direitos a implementação de posteriores medidas extrajudiciais ou judiciais que garantem de forma mais efetiva a cessação definitiva e a aplicação de sanções financeiras - e eventualmente penais - em face dos transgressores.

Na esfera cível, é possível ajuizar ações para abstenção e indenização, incluindo pedidos liminares para retirada dos produtos do mercado e de anúncios virtuais, sob pena de multa pecuniária.

Ao passo que pela via criminal, as ações de repreensão à pirataria contribuem para a redução da prática, tendo em vista a possibilidade de sanções mais contundentes, especialmente quando o trabalho inicial de investigação é realizado com delegacias especializadas em crimes contra a Propriedade Intelectual.

É também recomendado o acompanhamento por escritórios especializados, que realizam um vasto e personalizado monitoramento do comércio pirata para além das plataformas mais comuns de comércio eletrônico, incluindo redes sociais em suas verificações, acessando infratores que tentam estar "abaixo do radar", em plataformas com menos políticas de proteção a direitos de Propriedade Intelectual.

Por fim, como medida preventiva primordial é sempre importante que haja investimento em campanhas educacionais de conscientização, de maneira a demonstrar especialmente que este setor tende cada vez mais a cumprir um papel econômico relevante, desde a geração de empregos até a tributação, conforme descrito no decorrer deste artigo.

Além disso, sob a perspectiva moral inerente aos direitos autorais, é imperioso que se destaque, reconheça e se crie no próprio consumidor a intenção de valorizar o trabalho criativo pelo qual perpassa a criação dos jogos em questão.

A pirataria, como sempre, desafia a criação e desestimula um trabalho árduo de uma indústria extremamente criativa e de potenciais econômicos relevantes. Mais do que isso: prejudica o criador dos jogos nacional. A indústria brasileira de jogos de tabuleiro, que tem excelentes artistas e criadores, pode sofrer uma baixa e um desestimulo relevante.

Considerando a trajetória da indústria dos jogos de tabuleiro no Brasil, que vem sendo recentemente impulsionada, é possível que o setor esteja no momento chave para o início da implementação de medidas preventivas e repressivas no combate à pirataria de seus produtos, evitando-se o cenário de outras indústrias já consolidadas, e que não se atentaram a essa mácula que muitas vezes se torna, sozinha, o maior "concorrente".

É tempo de rolar os dados e decidir quais ações tomar!

_________

1 Disponível clicando aqui. Acessado em 4/1/20.

2 Disponível clicando aqui. Acessado em 4/1/20.

3 Disponível clicando aqui. Acessado em 4/1/20.

Rafael Pinho

Rafael Pinho

Graduação em Direito pela UFRJ. Advogado do escritório Kasznar Leonardos | Propriedade Intelectual.

Tatyana Nunes

Tatyana Nunes

Graduação em Direito pela UFRJ. Pós-graduada em Direito Processual pela PUC. Advogada do escritório Kasznar Leonardos | Propriedade Intelectual.

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