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Limites da medida de indisponibilidade de bens nas ações de improbidade administrativa à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

A interpretação do aludido texto normativo conduz ao entendimento de que, objetivamente, o bloqueio de bens não poderia ultrapassar o valor do dano que se pretende reparar ou do acréscimo patrimonial ilicitamente obtido.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Atualizado às 12:22

A Constituição Federal é rica em vetores que consagram e protegem valores republicanos e democráticos, dos quais se extrai o dever de administradores públicos agirem de acordo com a moralidade administrativa.

Quanto ao aspecto que interessa ao presente texto, o artigo 37, § 4º, da CF contempla a previsão da indisponibilidade dos bens na hipótese de caracterização de atos de improbidade administrativa. A medida tem por finalidade assegurar o ressarcimento do dano ao erário decorrente do ato ímprobo, a qual, no plano infraconstitucional, está prevista no parágrafo único do artigo 7º da lei 8.429/92 ("LIA").

A interpretação do aludido texto normativo conduz ao entendimento de que, objetivamente, o bloqueio de bens não poderia ultrapassar o valor do dano que se pretende reparar ou do acréscimo patrimonial ilicitamente obtido. A finalidade do provimento constritivo é assegurar o integral ressarcimento do dano.

Todavia, essa não é a atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual, além do ressarcimento do dano, o bloqueio poderia englobar o valor da multa civil prevista no artigo 12 da LIA e que é calculada em múltiplos do suposto dano ou do acréscimo patrimonial obtido com a conduta ímproba1.

Tal como ocorre com qualquer medida que visa a assegurar futura reparação de dano, a decretação de indisponibilidade de bens dos réus em ação de improbidade administrativa pode alcançar bens adquiridos antes ou depois do ato ímprobo, estando ou não relacionados com a conduta recriminada. Noutras palavras, a origem do bem ou o momento de sua aquisição se mostram indiferentes, conforme destacam inúmeros julgados da 1ª turma do Superior Tribunal de Justiça.2

Indo além do aspecto objetivo, é necessário tratar da indisponibilidade de bens quando em casos de litisconsórcio passivo, ou seja, quando há mais de um réu. Em linhas gerais, prevalece o entendimento de que todos os acusados responderiam solidariamente pela reparação do dano ao erário até o encerramento da fase instrutória e, por consequência, o patrimônio de qualquer deles poderia ser alcançado pela medida assecuratória do art. 7º, parágrafo único, da LIA.3

Contudo, mesmo nessas hipóteses é vedado constringir, de cada um dos réus, o valor integral do dano a ser ressarcido. A limitação, nesses casos, é necessária para evitar o excesso de garantia, pois se cada réu tiver seu patrimônio afetado para garantir o valor total do dano, ao final se terá prestado garantia de múltiplas vezes o valor necessário, onerando indevidamente os réus.4

Nesse momento, sobrelevam direitos constitucionalmente assegurados como a legalidade, o devido processo legal, a propriedade, o não-confisco, a inafastabilidade do Poder Judiciário e o princípio da proporcionalidade. Fruto disso, o réu prejudicado pelo excesso de garantia, pela abusividade na constrição de bens, teria em seu favor o direito à reparação dos danos sofridos, de acordo com as regras da responsabilidade ditadas pelos arts. 186 e 927 do Código Civil, bem como pelo art. 302 do Código de Processo Civil.

A garantia individual contra abusos desta ordem é aquilatada pela lei 13.869/19, denominada "Lei do Abuso de Autoridade", em cujo art. 36 está prevista a pena de detenção de um a quatro anos, além de multa, para o magistrado que decretar indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la. Tem-se, nessa previsão legal, afirmação incontestável do princípio da proporcionalidade, que, nas palavras do E. ministro Napoleão Nunes Maia Filho, "é a regra áurea dos julgamentos humanos, aquela que orienta e modera o ímpeto sancionador que muitas vezes assalta e domina o espírito de julgadores experimentados" (REsp 1.426.697/MA, dec. 2/3/17).

Há um aspecto, entretanto, que ainda merece ser revisitado. Embora a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça seja veemente quanto à existência de litisconsórcio passivo até a prolação da sentença, os julgados nesse sentido partem de uma premissa inequívoca: naqueles casos, a instrução do feito era necessária para a delimitação da responsabilidade de cada réu.

Basta observar que, ao invocar o entendimento firmado pelo STJ, ao proferir o voto condutor do acórdão do AgInt no AREsp 1.406.782/MG, o E. ministro Sérgio Kukina afirmou: "Ora, como até o presente estágio da instrução processual da subjacente ação civil pública não é possível aferir o grau de participação de cada réu nas condutas ímprobas que lhes são imputadas, devem permanecer indisponíveis tantos bens quantos forem suficientes para fazer frente à execução, em caso de procedência da ação".

Em rigor, portanto, o litisconsórcio não perdura necessariamente até a sentença, mas até o momento em que se torne possível delimitar a responsabilidade de cada réu. A distinção é de suma relevância para aqueles casos em que, embora a petição inicial reúna diversos réus, os fatos atribuídos a cada um sejam, desde logo, separadamente identificados.

Ilustra-se o problema: imagine-se o caso em que determinado Município realiza diversas contratações para a execução de uma obra complexa, com lotes distintos e contratos independentes. Ao final da obra, o Ministério Público ajuíza uma só ação de improbidade administrativa versando sobre supostas irregularidades havidas ao longo da execução dos diversos contratos firmados para a conclusão da mesma obra. Questiona-se, então: seria razoável que o réu A, contratado para executar o Lote 1, de quem se pretende obter a reparação de um dano no valor X, seja privado de seu patrimônio no valor de 4X para assegurar eventual satisfação do dano causado por outro réu, contratado para executar o Lote 5, acusado de causar dano no valor de 3x?

A resposta não poderia ser outra e, se bem compreendida a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, só pode mesmo ser negativa. As afirmações dos acórdãos que exigem litisconsórcio até o encerramento da fase instrutória partem da premissa de que a produção de prova seria necessária para identificar a cota de responsabilidade de cada réu (nesse sentido: 2ª T., REsp 1.610.169/BA, rel. min. Herman Benjamin, j. 2/5/17). Aquela era a realidade dos casos julgados naquelas oportunidades e delas não se extrai regra universal. Hipóteses distintas devem ser tratados de acordo com suas respectivas diferenças.

Em casos como o do exemplo acima, o marco a ser observado, à luz da Justiça e da proporcionalidade, é o momento em que se pode separar os fatos e danos imputáveis a cada réu. Se tal separação é feita pela própria petição inicial, que persegue a reparação de danos distintos, atribuindo valores certos a réus determinados, inexiste razão idônea para aglutinar o somatório e fazer um réu responder por fatos atribuídos a terceiros.

A indisponibilidade de bens deve ser limitada ao dano que se atribui àquele réu. É descabido alegar solidariedade entre agentes que não concorreram para o mesmo dano, pois, à luz do art. 275 do Código Civil, "[o] credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum". Sendo identificadas e segregadas as responsabilidades de cada agente, não há que se falar em solidariedade.

Portanto, se inexiste concurso de agentes para o mesmo dano, não há fundamento para os patrimônios dos réus serem conjuntamente constritos, sob pena de excesso de cautela. Essa é a norma extraída da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.5

_________

1 Confira os julgados: 1ª turma: AgInt no REsp 1.803.368/SP, rel. min. Regina Helena Costa, j. 5/9/19; 2ª turma: AgInt no REsp 1.859.574/PR, rel. min. Mauro Campbell Marques j. 24/8/20.

2 AgInt no REsp 1.609.492/SP, rel. min. Mauro Campbell Marques, j. 16/3/17; AgInt no REsp 1.772.897/ES, rel. Min, Sérgio Kukina, j. 05/12/19.

3 STJ-1ª T.: AgRg no AREsp 698.259/CE, rel. min. Benedito Gonçalves, j. 19/11/15; AgInt no AREsp 1.406.782/MG, rel. p/ o acórdão Min. Sérgio Kukina, j. 10/12/19.

4 STJ-1ª T.: REsp 1.119.458/RO, rel. min. Hamilton Carvalhido, j. 13/4/10; REsp 1.731.782, rel. min. Regina Helena Costa, j. 4/2/18; AgInt no AREsp 1.437.494/SE, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j.  1/12/20.

5 Como evidenciam os seguintes acórdãos: 2ª T., MC 9.675/RS, rel. min. Mauro Campbell Marques, j. 28/6/11; 1ª S., REsp 1.319.515/ES, rel. p/ o acórdão min. Mauro Campbell Marques, j. 22/8/12; 2ª T., REsp 1.438.344/SP, rel. Min. Assusete Magalhães, j. 2/10/14; 2ª T., EDcl no AgRg no REsp 1.351.825/BA, rel. Min. Og Fernandes, j. 22/9/15.

Evane Beiguelman Kramer

Evane Beiguelman Kramer

Advogada do escritório Dal Pozzo Advogados.

Mário Henrique de Barros Dorna

Mário Henrique de Barros Dorna

Bacharel e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP.

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