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As decisões judiciais brasileiras e as rotineiras zonas de autarquia

A operação do direito exige uma visão crítica acerca dos atos jurisdicionais, priorizando uma análise de legitimidade dos conceitos adotados pelo decisor e o combate específico das abusividades para repudiar qualquer tentativa de perversão do direito.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Atualizado às 07:46

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A justificação das decisões judiciais brasileiras vem passando por regulações progressivas em relação à sua forma de desenvolvimento. A partir da disposição constitucional do art. 93, inciso IX, o Código de Processo Civil de 2015 inaugurou um rol de orientações legais à atividade jurisdicional na produção das decisões. Posteriormente, as diretrizes foram reinseridas no ordenamento jurídico com a lei 13.964/19, que positivou as obrigações de fundamentação no Código de Processo Penal pátrio.

Contudo, a existência de normas sobre a produção das decisões judiciais não garante que as decisões sejam corretas, tendo em vista o constante descompasso da prática com a legislação processual. Pode-se considerar que esse problema se deve, em parte, ao fato de que até a Suprema Corte brasileira profere decisões com fundamentações duvidosas, sem atenção ao direito positivo e aos princípios gerais do ordenamento pátrio, ou com argumentos meramente retóricos e despidos de uma justificação racional - no sentido pregado pelas Teorias da Argumentação Jurídica.

Esse movimento, de conferir uma aparência de justificação às decisões que não estão justificadas, é chamado por José Rodrigo Rodriguez de "zona de autarquia" (RODRIGUEZ, 2015).

Rodriguez, partindo da obra de Franz Neumann, expõe que as instituições tendem a manipular o direito para "conferir aparência jurídica a espaços de puro arbítrio" (RODRIGUEZ, 2015, p. 103). Por sua vez, essa manipulação pode ser feita a partir de três situações: com a fuga do direito, propriamente; na utilização de uma falsa legalidade; e na criação de zonas de autarquia.

As três espécies de manipulação são classificadas por Rodriguez como "figuras de perversão", por possuírem a finalidade de perverter o direito, o que enfraquece, consequentemente, o próprio estado de direito. Afinal, substituir a legalidade pelo critério da arbitrariedade é uma conduta que se alinha ao estado de exceção.

Para o desenvolvimento abaixo, evidenciamos apenas a figura de perversão das zonas de autarquia, ante a importância do conceito no entendimento das operações judiciais.

De acordo com Rodriguez, a zona de autarquia é "um espaço institucional em que as decisões são tomadas sem que se possa identificar um padrão de racionalidade qualquer, ou seja, em que as decisões são tomadas num espaço vazio de justificação" (RODRIGUEZ, 2013a, p. 172 apud RODRIGUEZ, 2015, p. 106). Evidentemente, a zona de autarquia não é um espaço no qual o decisor declara que decide apenas porque quis. São apresentados, de acordo com o autor, elementos de aparência do direito a fim de que os atos de arbitrariedade passem despercebidos.

Para compreender como o conceito se encaixa em determinadas decisões judiciais brasileiras, dois questionamentos são suficientes: a decisão analisada, em atenção aos termos legais e às diretrizes dogmáticas e doutrinárias, é aceitável? Pode-se afirmar que a justificação apresentada tem fundamento no ordenamento pátrio ou se trata de um artifício retórico de escolha?

Nesse contexto, pode-se afirmar que a última grande repercussão sobre uma zona de autarquia foi a decisão proferida pelo ministro Alexandre de Moraes que determinou a prisão do então deputado Daniel Silveira. O assunto já foi debatido com muita classe no portal do Migalhas, e faço referência aos textos publicados pelo advogado Rodrigo Barbosa e o magistrado Fernando Barbagalo, que evidenciam como a decisão do Supremo Tribunal Federal perverte os conceitos jurídicos para obtenção de um resultado que põe os interesses do tribunal à frente do direito.

Não há dúvidas que as ofensas proferidas pelo deputado são extremamente reprováveis e desrespeitosas, extrapolando a liberdade de expressão e veiculando um discurso de ódio repulsivo. Contudo, sem se ater a qualquer aspecto político, uma decisão que decreta prisão em flagrante (incoerência) contra um deputado por um crime que não é inafiançável (ilegalidade) é uma decisão justificada nos padrões normativos do Brasil?

A justificação de uma decisão não é uma simples delimitação de razões para obtenção do resultado. O ato de justificar exige uma fundamentação nas premissas utilizadas para a conclusão, e, atualmente, não é necessário um aprofundamento em Alexy ou MacCormick para compreender esse ônus judicial. O art. 489, CPC/15 - assim como o art. 315, do CPP -, afirma que não se considera fundamentada uma decisão que se limita à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida, muito menos uma decisão que emprega conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso - art. 489, §1º, incisos I e II, do CPC/2015.

As obrigações que são elencadas pelo dispositivo acima representam a necessidade de fundamentação das premissas: o que significam os conceitos aplicados e como eles se enquadram à situação de fato. Em atenção ao que fora decidido pelo STF, por exemplo, o que se entende por crime inafiançável? Trata-se de mera negativa de fiança ou da impossibilidade de concedê-la? O decisor, no entanto, não desenvolveu sua justificação sobre esse elemento.

Cabe ressaltar que a prisão em flagrante "decretada" recentemente pelo Min. Alexandre de Morais não é o único ato que se encaixa no conceito de zona de autarquia. Trata-se de mais uma em um vasto repertório de decisões infundadas nas operações jurisdicionais, que se estendem desde quando se acreditava em um "livre convencimento".

Nesse ponto, o papel da conceituação proposta por Rodriguez à luz de Neumman é simples: precisamos enxergar o movimento político nas decisões para criticar, constranger e contra-argumentar rotineiramente os atos infundados de poder - no caso, Judiciário. Não só como operadores do direito, mas como críticos de sua aplicação. Afinal, não se constrói estado de direito sem observância ao direito.

As normas não são critérios de aplicação que podem ser esquecidos por liberalidade, para satisfação de interesses pessoais, institucionais ou para conferir aparência de direito ao ato de escolha do decisor. Assim como a decisão do STF, quantas zonas de autarquia um operador do direito enfrenta semanalmente com decisões que aparentam possuir uma justificação? Não há dúvidas que o problema da decisão como ato de escolha atinge qualquer área ou esfera decisória.  

A partir dessas indagações, fica a reflexão teórica para a observância das decisões judiciais como espaços de indeterminação e de poder, como zonas de autarquia. Jurisprudências aleatórias, conceitos indeterminados e argumentos genéricos não combinam com as exigências legais e constitucionais para os atos jurisdicionais em nosso Estado de Direito. Para o operador do direito, a conformidade em relação à perversão do sistema pode ser pior - processualmente - do que a própria perversão.

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BRASIL. lei 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF, 16 mar. 2015. Disponível aqui. Acesso em: 08 mar. 2021.

RODRIGUEZ, José Rodrigo.  As figuras de perversão no direito: para um modelo crítico de pesquisa empírica. Revista Prolegómenos - Derecho y Valores, II, p. 99-124, 2015.  Disponível aqui.

BARBAGALO, Fernando Brandini. Temas controversos na prisão de parlamentar federal no Brasil. Migalhas, [S. l.], p. -, 23 fev. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 2 mar. 2021.

BARBOSA, Rodrigo Pedroso. Negativa de fiança não significa inafiançável:: Prisão de Daniel Silveira. Migalhas, [S. l.], p. -, 18 fev. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 2 mar. 2021.

Caio Vilela Costa

Caio Vilela Costa

Sócio da Queiroz Cavalcanti Advocacia. Mestrando em direito. Especialista em direito penal. Professor de direito processual penal.

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