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Democracia em mesa num jogo de blefes trocados: a disputa entre TSE e Bolsonaro

Quando decide se um cidadão pode ou não se candidatar a cargo eletivo, a Justiça Eleitoral afere se ele incide ou não em alguma inelegibilidade.

sexta-feira, 2 de julho de 2021

Atualizado às 13:17

Desde as eleições municipais de 2000, os brasileiros escolhem seus representantes políticos exclusivamente na urna eletrônica. De lá para cá, sem que qualquer fraude tenha sido denunciada e comprovada, as urnas eletrônicas elegeram Jair Bolsonaro quatro vezes deputado federal e uma vez presidente. Ainda assim, o atual ocupante do mais elevado cargo da República parece ter dúvidas sobre a confiabilidade do sistema.

Logo após as eleições de 2018, sustentou que teria sido eleito em primeiro turno, não fossem as fraudes ocorridas nas urnas eletrônicas1. Não foram poucas as "denúncias" de que as eleições de 2018 teriam sido fraudadas e de que as urnas eletrônicas seriam vulneráveis. Até agora, a despeito de dizer que as teria em suas mãos, não apresentou prova alguma. Até aqui, tudo não passa de um blefe.

Diante de tais alegações, o Tribunal Superior Eleitoral limitava-se a declarações de seu presidente ou de seu vice-presidente. O ministro Luís Roberto Barroso defendeu que "se o presidente da República ou qualquer pessoa tiver provas tem o dever cívico de entregá-la ao Tribunal"2. Já o ministro Luiz Edson Fachin, sob o pretexto de repudiar o golpe militar dado em Mianmar, asseverou que a "não aceitação do resultado eleitoral em eleição normal e legítima pode resultar em violência, mortes e ditadura"3.

Até então, as iniciativas da Justiça Eleitoral diante das graves alegações de fraude - graves porque infundadas - limitaram-se a declarações de seus membros.

Mas, na última semana, o TSE interpelou oficialmente Jair Bolsonaro. Buscando levantar e analisar "elementos que possam ter comprometido a regularidade dos pleitos anteriores", instaurou procedimento administrativo e determinou que o Presidente apresentasse "informações ou evidências que disponham, relativas à ocorrência de eventuais fraudes ou inconformidades em eleições anteriores" (portaria CGE 01/2021).

Paralelamente, no MS 38.005, proposto pelo partido Rede Sustentabilidade junto ao Supremo tribunal Federal, o Relator, ministro Gilmar Mendes, determinou a intimação do Presidente para que fizesse o mesmo.

Esta providência do TSE mostra que a Justiça Eleitoral deixou de lado a postura de mera espectador de suspeitas infundadas. O ministro Luís Roberto Barroso sabe que a crescente contestação do sistema de votação - que há mais de vinte anos funciona sem evidências verossímeis de fraude - atingem diretamente a imagem da Justiça Eleitoral e a integridade da própria democracia brasileira.

É pouco provável que provas concretas sejam apresentadas. Em duas ocasiões, a Advocacia-Geral da União, diante de decisão judicial que determinava a apresentação de provas, sustentou que as alegações seriam meras falas informais, sem maiores repercussões.

Tão logo instaurado o procedimento administrativo no TSE, passaram a circular rumores de que a responsabilização de Bolsonaro pelas suspeitas infundadas levantadas junto à sua militância poderia levar à sua retirada da disputa pela reeleição em 20224.

A primeira pergunta que se levanta é: existem caminhos jurídicos para isso?

Quando decide se um cidadão pode ou não se candidatar a cargo eletivo, a Justiça Eleitoral afere se ele incide ou não em alguma inelegibilidade. Não é ali, na análise da candidatura, que o cidadão é "tornado" inelegível. Essa condição advém de uma condenação (em regra5) anterior, cabendo à Justiça Eleitoral apenas dar seus efeitos no bojo do registro da candidatura.

No caso das alegações de fraude eleitoral, Bolsonaro poderia incorrer na causa de inelegibilidade da alínea e. Por ser dever, e não faculdade, de todo agente público latu sensu levar ao conhecimento das autoridades os ilícitos que tenham conhecimento no exercício de suas funções. A omissão em apresentar as provas às autoridades eleitorais tão logo tivesse delas tomado conhecimento implicaria a prática do delito de prevaricação do art. 319 do Código Penal.

Trata-se de crime comum a ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal depois de denúncia do Procurador-Geral da República e autorização da Câmara dos Deputados (art. 86 da Constituição). Considerando a atuação até aqui desempenhada pelos dois ocupantes do mais alto posto do Ministério Público Federal e da câmara baixa do Poder Legislativo, parece esse ser um cenário remoto.

Igualmente remota seria a inelegibilidade decorrente da condenação do presidente por incitar, fazer propaganda ou ameaças concretas de não aceitação do futuro resultado eleitoral (especialmente mediante uso da força), ao regime democrático e às instituições, que pode muito bem ser enquadrado nos arts. 17, 18, 22, I e III, 23, I, II, III e IV, e 26 da Lei de Segurança Nacional - curiosamente, o mesmo diploma utilizado por Bolsonaro para interpelar judicialmente os críticos a seu governo.

A omissão em apresentar provas poderia, ainda, configurar o ato de improbidade administrativa de "retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício" (art. 11, II, da lei 8.429/92). Contudo, na forma do alínea l do inciso I do art. 1º da LC 64/90, a mera prática do ato é insuficiente para configurar inelegibilidade: além da condenação em segundo grau e da suspensão de direitos políticos, é necessário que o ato sancionado tenha causado lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito.

Assim, difícil enquadrar a conduta de omitir supostas provas de fraude eleitoral nessa causa de inelegibilidade.

Por fim, o levantamento de suspeitas de fraude pela Justiça Eleitoral sem provas pode configurar crime de responsabilidade do Presidente tanto por atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário quanto por atentar contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais. Eventual cometimento destes crimes, respectivamente previstos no inciso II e III do art. 85 da Constituição, art. 85, II e III, seria analisado pelo Congresso Nacional mediante processo de impeachment.

Levando em conta que são 122 pedidos de impeachment esperando admissão na presidência da Câmara dos Deputados, parece ser esse uma difícil via de tornar Bolsonaro inelegível. Mas, na hipótese de isso vir a acontecer, sua condenação somente redundaria no impedimento à participação nas eleições em caso de aplicação, pelo Senado, da pena de inabilitação para o exercício de cargos públicos, prevista no art. 52, parágrafo único da Constituição.

Portanto, por mais áridos e tortuosos que sejam, há caminhos que poderiam levar à inelegibilidade de Jair Bolsonaro.

Daí a segunda pergunta: o TSE declararia a inelegibilidade? Para responder, vale lembrar que as eleições de 2018 foram marcadas pela exclusão de Lula (à época líder das pesquisas) da disputa por decisão folgada, vencido apenas o ministro Luiz Edson Fachin, desconsiderando a medida cautelar do Comitê de Direitos Humanos da ONU, com base em condenações hoje anuladas pela suspeição do ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro.

Ainda que a resposta institucional seja necessária, é importante que as instituições não entrem em um jogo de blefes trocados. Se Bolsonaro blefa com o discurso sem provas de fraude eleitoral, é fundamental que as instituições tenham a mão boas cartas e estejam dispostas a usá-las. Do contrário, um all in mal colocado não apenas manchará a imagem da Justiça Eleitoral, mas colocará em risco a própria democracia.

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1 Bolsonaro diz que foi alvo de fraude e pede mobilização a eleitores.
2 Bolsonaro tem 'dever cívico' de mostrar prova de fraude na eleição, diz Barroso.
3 Fachin: não aceitação do resultado eleitoral pode resultar em mortes e ditadura.
4 Magistrados endurecem e pensam até em Bolsonaro inelegível se seguir com ataques às eleições.
5 Em regra, pois também é possível a análise de inelegibilidades supervenientes ao registro, nos casos previstos em lei.

Luiz Eduardo Peccinin

Luiz Eduardo Peccinin

Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Direito Administrativo e em Direito Eleitoral. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP.

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