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Considerações sobre o princípio da norma mais favorável no direito do trabalho

Marcelo de Azevedo Granato

No intuito de contribuir com o debate, os itens abaixo apresentarão razões por que o uso indistinto, imperioso desse princípio pode gerar diferentes problemas.

segunda-feira, 19 de julho de 2021

Atualizado às 10:29

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em livros e decisões judiciais no campo do direito do trabalho, encontram-se diversas referências ao chamado princípio da norma mais favorável.

Em termos gerais, esse princípio comanda que, diante de duas normas jurídicas de direito do trabalho contrastantes, o juiz deve optar por aquela que for "mais favorável" ao trabalhador, que frequentemente é parte hipossuficiente na relação. Via de regra, a norma "menos favorável" não deve ser aplicada mesmo que se trate de uma norma hierarquicamente superior, especial e/ou posterior à "mais favorável".

No intuito de contribuir com o debate, os itens abaixo apresentarão razões por que o uso indistinto, imperioso desse princípio pode gerar diferentes problemas.

I. Princípio da norma mais favorável como metanorma

Observe-se, primeiro, que o princípio da norma mais favorável não parece ser, exatamente, um princípio. Ele funciona, sim, como um critério de aplicação das normas, determinando que, num conflito concreto, o intérprete opte sempre pela "mais favorável" em detrimento da "menos favorável" (qualquer que seja a compreensão/o sentido atribuído a essas duas normas, pelo que dito princípio configura critério de aplicação, não de interpretação, de normas).

Sendo assim, o princípio da norma mais favorável não é diretamente aplicado ao caso concreto; o que se aplica ao caso é a norma "mais favorável" em detrimento da "menos favorável". Tal princípio, como dito, apenas orienta o intérprete na aplicação das normas pertinentes, não conflitando, assim, com nenhuma delas.

Some-se a isso o fato de que a formulação desse princípio não parece coincidir com as características normalmente atribuídas aos princípios jurídicos, ou seja, ele não se apresenta como uma norma que mira um estado ideal de coisas, fundamenta outras normas do sistema etc.

Em suma: o chamado princípio da norma mais favorável caracteriza-se não exatamente como uma norma (seja princípio ou regra), mas como uma metanorma.

Daí derivam alguns problemas do seu uso indiscriminado.

II. Princípio da forma mais favorável e Constituição Federal

Um deles é a ocasional prevalência de uma norma "mais favorável" infraconstitucional sobre uma norma "menos favorável" constitucional.

Admitir, por exemplo, que uma norma da CLT possa prevalecer sobre uma norma constitucional conflitante (i.e. incompatível, incombinável) é comprometer a estrutura do sistema jurídico. Tal como se o decreto-lei 5.452/43 (CLT) pudesse ter fundamentado a edição do artigo 180 da Constituição de 1937 ou a alteração de um artigo da CLT reclamasse um procedimento mais complexo que o da alteração de um dispositivo constitucional.

Ou como se o juiz de uma determinada causa, diante de uma norma da CLT "mais favorável" ao trabalhador do que a norma constitucional conflitante, pudesse se investir do poder de não aplicar a Constituição, despindo-a de "força normativa" ou "máxima efetividade" (conforme o conhecido princípio de interpretação constitucional).

A normatividade da CLT não pode ser determinada pela maior ou menor vantagem que uma disposição sua gera ao trabalhador num dado processo; ela é determinada pelo conjunto das disposições jurídicas que, com ela, conformam o sistema jurídico; um sistema que, sem unidade e coerência, não tem como ser racionalmente operado, não tem como garantir segurança jurídica aos cidadãos.

Assim, a aplicação da norma constitucional "menos favorável" ao invés da norma da CLT "mais favorável" no exemplo acima não representa violação ao princípio da norma mais favorável seja porque, a rigor, ele não é uma norma passível de ser violada, seja porque a não aplicação da CLT em tal exemplo decorre já da prevalência da disposição constitucional. Em outras palavras: não pode o recurso a uma metanorma (princípio da norma mais favorável) impor a não aplicação de uma disposição constitucional.

III. Princípio da norma mais favorável e LINDB

O mesmo se afirma no caso de normas infraconstitucionais (de mesma hierarquia). Suponha-se que, à disciplina geral de um assunto, sobrevenha uma nova lei trabalhista que regule especificamente a situação de alguns sujeitos, por força de peculiaridades do seu trabalho. Essa nova lei, então, traz algumas disposições especiais conflitantes e "menos favoráveis" àqueles sujeitos, frente à disciplina geral do assunto - ainda que, na prática, a identificação de normas mais ou menos "favoráveis" não seja simples nem incontroversa.

Inclusive, a avaliação daquilo que é "mais favorável" ao trabalhador, vale dizer, à "melhoria de sua condição social" (artigo 7º da Constituição), também deveria levar em conta o favorecimento do trabalho como um todo, incluindo a "busca do pleno emprego" (artigo 170 da Constituição), ou seja, uma perspectiva que fosse além da consideração de situações específicas.

De todo modo, segundo a interpretação prevalecente do princípio da norma mais favorável, no caso acima, a nova lei (específica) não poderia ser aplicada por ser "menos favorável" aos sujeitos envolvidos do que a lei geral.

O recurso à norma mais favorável também geraria problemas aqui, já que imporia violação ao artigo 2º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro/LINDB (decreto-lei 4657/42), vale dizer, aos tradicionais critérios aplicáveis no caso de normas incompatíveis (critérios cronológico, hierárquico e da especialidade). A aplicação desses critérios na hipótese acima, ressalvada alguma inconstitucionalidade, determina a prevalência da lei nova específica sobre a lei geral no que se refere à atividade e aos sujeitos abrangidos por aquela lei.

IV. Princípio da norma mais favorável e convenções internacionais

Resta a hipótese de uma norma "mais favorável" infraconstitucional em desacordo com uma norma "menos favorável" proveniente de um diploma internacional incorporado ao ordenamento jurídico de um mesmo país.

O exame dessa questão pode ser feito com base no status com que o diploma internacional ingressa no ordenamento do país. No caso do Brasil, a análise da legislação e da jurisprudência revela que tratados e convenções internacionais tanto podem equivaler a leis ordinárias quanto a emendas constitucionais (v. nota abaixo sobre o posicionamento do STF).

Mas, para além dessas hipóteses, não pode o país signatário de uma convenção (ou seu Judiciário) ignorar uma disposição dela - a que aderiu consensual e voluntariamente, incorporando-a ao seu próprio sistema - diante da simples existência de uma "norma mais favorável" aos seus nacionais na sua legislação ordinária.

Adaptando o exemplo anterior, imaginemos uma convenção internacional que regule especificamente a situação de alguns sujeitos, por força de peculiaridades do seu trabalho; e que essa nova convenção traga algumas disposições conflitantes e "menos favoráveis" àqueles sujeitos, frente à disciplina geral do assunto (ainda que, como dito, a identificação de normas "mais favoráveis" seja equívoca, e o propósito da 'melhoria da condição social' do trabalhador também recomende o favorecimento do trabalho como um todo, não só dos envolvidos em situações específicas).

Nesse caso, não há lugar para aplicação do princípio da norma mais favorável porque não há, propriamente, conflito de normas. A convenção internacional resulta do exercício de competência(s) compartilhada(s) entre os signatários, visando a disciplina comum de um tema que, não fosse a convenção, seguiria as disposições do direito interno de cada um deles.

Assim, no que diz respeito às atividades/sujeitos que disciplina, a convenção internacional não revoga a legislação nacional; ela a excepciona. Ou seja, nenhuma disposição nacional é revogada; ela apenas não disciplinará as atividades/os sujeitos previstos na convenção.

A convenção internacional molda o alcance da lei nacional, sem invalidá-la. Havendo a denúncia dessa convenção, a lei nacional se aplicará normalmente (não incide, no caso da denúncia, o artigo 2º, parágrafo 3º, da LINDB)¹.

Cabe dizer, ainda, que essa conclusão não é alterada pelo artigo 19, parágrafo 8º, da Constituição da Organização Internacional do Trabalho. Esse artigo estabelece que as disposições de uma convenção internacional não podem afetar leis, sentenças, costumes ou acordos "que assegurem aos trabalhadores interessados condições mais favoráveis que as previstas pela convenção".

É importante notar que o artigo19 não determina que atos normativos provenientes de um país signatário devem prevalecer sobre as normas da convenção internacional simplesmente por serem "mais favoráveis".

Para que se dê essa prevalência, dois requisitos parecem implícitos. Primeiro, (i) que esse ato normativo do país signatário regule ou decorra de regulação interna da mesma atividade regulada pela convenção. Ou seja, não basta que exista uma norma interna "mais favorável" em algum lugar do ordenamento do país signatário, qualquer que seja o assunto de que cuide; é preciso que essa norma integre a disciplina nacional do mesmo tema disciplinado pela convenção internacional.

Além disso, por imposição da isonomia, (ii) a hipótese de incidência do ato normativo "mais favorável" deve ter, como destinatários desse ato, não só os nacionais de um país signatário, mas os "trabalhadores interessados" de que fala o artigo 19 da Constituição da OIT. Mas quem são esses "trabalhadores interessados"? São todos os trabalhadores abrangidos pela convenção internacional que conteria a disposição "menos favorável". O tratamento "mais favorável" deve caber a todos.

Disso resulta que as disposições (de leis, acordos etc.) "mais favoráveis" do ordenamento interno abarcadas pelo artigo 19 são, notadamente, disposições (decorrentes) de tratados sobre direitos humanos incorporados àquele ordenamento. Isso porque tais disposições ("mais favoráveis") não se aplicariam apenas aos nacionais do país que as incorporou, mas a todos os indivíduos (trabalhadores), nacionais ou estrangeiros.

Esse ponto adquire especial importância quando a atividade objeto da convenção internacional envolvida é exercida por pessoas de diferentes nacionalidades. Nesse caso, pouco importa se os trabalhadores que a exercem estão num ou noutro país signatário, de que sejam ou não nacionais. Tratar de modo "mais favorável" sujeitos que desenvolvem a mesma atividade, com base apenas no fato de serem nacionais de um país, é desigualar iguais, é atribuir um privilégio. A isonomia repudia o privilégio, inclusive quando é travestido de "proteção". Esse é o sentido, aliás, de mais de uma Convenção da OIT (v. Convenções 100, 111).

Por isso, o artigo 19 autoriza a prevalência de leis, acordos etc. nacionais "mais favoráveis", sobre disposições de uma convenção internacional, quando essas leis e acordos têm por destinatários legais os mesmos destinatários da convenção internacional preterida, o que ocorre no caso de tratados sobre direitos humanos incorporados ao ordenamento nacional.

Compreende-se que o privilégio ao trabalhador de um dado país não seja um problema para a legislação e o Judiciário desse país. Ocorre que o artigo 19 em comento integra a Constituição da Organização Internacional do Trabalho; para ela, o privilégio a(o trabalhador de) uma específica nacionalidade decerto é um problema, ainda mais se no mesmo ambiente de trabalho.

Inclusive porque a Conferência Internacional do Trabalho, ao "elaborar uma convenção ou uma recomendação de aplicação geral", já deve "levar em conta os países que se distinguem pelo clima, pelo desenvolvimento incompleto da organização industrial ou por outras circunstâncias especiais relativas à indústria, e deverá sugerir as modificações que correspondem, a seu ver, às condições particulares desses países". É o que estabelece o parágrafo 3º do mesmo artigo 19 da Constituição da OIT.

Por todos esses motivos, a aplicação do parágrafo 8º desse artigo se vê atrelada, ainda que com potenciais variações, à observância dos requisitos (i) e (ii) acima.

V. Conclusão

O recurso ao princípio da norma mais favorável pode ter consequências positivas para o trabalhador envolvido em dada situação/processo - o que, por si só, não é um problema, já que frequentemente se trata da parte hipossuficiente da relação. Entretanto, além da dificuldade em se identificar as normas "mais favoráveis" na variedade dos casos (a par de a vantagem de determinados trabalhadores poder ser a desvantagem de todo o mercado de trabalho), o recurso a esse "princípio" não pode negligenciar comandos constitucionais potencialmente aplicáveis, como a isonomia, a livre iniciativa, a segurança jurídica, a busca pelo pleno emprego, nem sobrepor-se ao sistema jurídico erigido com a Constituição ou violar a jurisdição das convenções internacionais.

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1- Deve-se registrar, de outro lado, que o entendimento do STF sobre esse ponto é que "tornou-se regra geral o reconhecimento de que a normatividade emergente dos tratados ou convenções internacionais que disponham sobre matérias comuns, que não aquelas de direitos humanos ou de natureza tributária, situa-se, no sistema jurídico brasileiro, no que concerne à hierarquia das fontes, no mesmo plano e no mesmo grau de eficácia em que se posicionam as leis internas, ressalvadas situações em que tais atos de direito internacional veiculem cláusulas especializantes, circunstância que lhes conferirá precedência por efeito de sua qualificação como verdadeiras 'leges speciales', como tem advertido a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal" (voto do min. Celso de Mello no RE 460320/PR, de 2020).

Marcelo de Azevedo Granato

Marcelo de Azevedo Granato

Doutor em Direito pela USP e pela Università degli Studi di Torino; integrante do Instituto Norberto Bobbio; professor da FACAMP.

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