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O fim do direito ao silêncio no Brasil?

Não é possível que o direito à não autoincriminação seja fracionado de modo que o indivíduo intimado para depor como investigado sobre certos fatos tenha de responder como testemunha sobre os mesmos fatos.

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Atualizado às 16:58

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

A decisão proferida nos autos do HC 204.422/ DF autoriza o fracionamento da garantia de não autoincriminação, de modo que o indivíduo convocado para prestar depoimento como investigado nas Comissões Parlamentares de Inquérito teria de prestar compromisso de responder a verdade sobre perguntas em que figuraria supostamente como testemunha, com base exclusivamente na discricionariedade da autoridade que presidir o ato de investigação.

Com efeito, a não autoincriminação tem assento constitucional, instaurando direito subjetivo, a ser exercido por qualquer cidadão, de não produzir prova contra si mesmo. Por óbvio, o primeiro juízo sobre o conteúdo desse direito compete ao seu próprio titular, a quem cabe a avaliação inicial sobre os impactos da produção de determinada informação sobre a sua própria esfera jurídica. Nesse sentido, é o titular do direito quem exterioriza a primeira manifestação de vontade em relação ao exercício da não autoincriminação.

Por outro lado, nenhum direito fundamental é absoluto, muito menos pode ser exercido para além de suas finalidades constitucionais. Nesse ponto, às Comissões de Parlamentares de Inquérito, como autoridades investidas de poderes judiciais, recai o poder-dever de analisar, à luz de cada caso concreto, a ocorrência de alegado abuso do exercício do direito de não-incriminação. Se assim entender configurada a hipótese, dispõe a CPI de autoridade para a adoção fundamentada das providências legais cabíveis.

A perigosa decisão vai à contramão da Constituição Federal e do Código de Processo Penal, trazendo não só insegurança ao investigado, que deverá responder perguntas sob compromisso de dizer a verdade, como se testemunha fosse, sobre o fato que é investigado, como ensejando violação o princípio de vedação de retrocesso de direitos fundamentais.

Assim, a confusão estabelecida pelo HC 204.422/ DF é tamanha que a garantia fundamental do investigado cujo escopo é viabilizar o direito à ampla defesa, momento que é lhe é oportunizada a realização da sua autodefesa, se transforma em ônus para si, uma vez que lhe recaí a obrigação de dizer a verdade, e em algumas hipóteses confessar o crime sobre fatos em que inequivocamente ostenta qualidade de investigado.

De acordo com a decisão monocrática, quem realiza esse juízo não é próprio investigado, mas a autoridade que o interroga. Entretanto, na sistemática constitucional o responsável pelo juízo sobre se um fato indagado no depoimento é ou não incriminador deve ser do depoente, em conjunto com a sua defesa técnica, sob o risco de se retirar do advogado a sua sagrada prerrogativa de conduzir a causa que lhe foi confiada, bem como de transformar o investigado em um refém da autoridade policial, parlamentares, Ministério Público ou magistrados, circunstância inaceitável com o Estado Democrático de Direito.

Admitir essa conjuntura representaria retrocesso à época da inquisição onde o papel do advogado se limitava a respaldar a confissão do crime de seu constituinte, para que este fosse condenado a uma pena com menor sofrimento.

Noutro giro, o principal direito do indivíduo dentro de um procedimento criminal é o de não produzir provas contra si, nemo tenetur se detegere. Tamanha essa garantia que o legislador constitucional a erigiu em cláusula pétrea, por se tratar de direito individual, estando presente no inciso LXIII1, artigo 5°, além dos artigos 1862 e 1983 do Código de Processo Penal. 

Assim, sob a sistemática legal, há somente duas posições possíveis para um depoente: o de investigado ou de testemunha, não havendo uma figura híbrida, meio testemunha, meio investigado. A teratologia do argumento é manifesta, distorcendo por completo a harmonia do sistema jurídico vigente.

Nesse sentido, Aury Lopes Jr ressalta4 que o interrogatório deve ser tratado como um verdadeiro ato de defesa, em que se da à oportunidade ao imputado para que exerça sua autodefesa. Para isso deve ser considerado como um direito e não um dever, assegurando-se o direito de silêncio e de não produzir prova contra sí mesmo, sem que dessa inércia resulte em qualquer prejuízo jurídico.

Da mesma forma, no HC 68.9295, da relatoria do ministro Celso de Mello, assegurou-se que o direito ao silêncio, constitucionalmente reconhecido, decorre da prerrogativa processual do acusado de negar, ainda que falsamente, a prática da infração. 

Já especificamente em relação às Comissões Parlamentares de Inquérito, dentro da lógica do sistema constitucional, o ministro Gilmar Mendes6 é preciso em afirmar que "consolidou-se orientação no Supremo Tribunal de que o direito ao silencio em relação a fatos que possam constituir autoincriminação tem aplicação à situação dos depoentes nas Comissões Parlamentares de Inquérito, entendendo-se que a invocação não pode dar ensejo a ameaça ou decretação de prisão por parte da autoridade do Estado."

Desta forma, caso prevaleça o entendimento exposto na liminar sob análise, será criada no País uma nova espécie de colaboração, de forma coercitiva e sem prêmio algum.

O problema em questão, no âmbito das investigações conduzidas pelo Ministério Público, autoridade policial, parlamentares e Poder Judiciário, se amplifica ao se cogitar que a grave mitigação da garantia da não autoincriminação será aplicada também em sede de oitiva investigativa e judicial, extirpando do ordenamento jurídico com o direito ao silêncio, o qual como destacado, não tem o escopo somente de garantir que o investigado não produza provas contra si, mas que tenha a faculdade de escolher o melhor momento para a produção da prova.

A solução para essa grave violação constitucional está na aplicação do princípio da colegialidade, levando-se a liminar para ser apreciada pelo plenário do pretório excelso, como ressaltou o ministro Luiz Fux em seu discurso de posse: "o Supremo do futuro é um Supremo que sobreviverá sempre realizando apenas sessões plenárias. Será uma corte em que sua voz será unívoca".

Portanto, como destacado, não é possível que o direito à não autoincriminação seja fracionado de modo que o indivíduo intimado para depor como investigado sobre certos fatos tenha de responder como testemunha sobre os mesmos fatos, como estabelecido na decisão proferida no HC 20422/DF. Agora, incube ao plenário do Supremo Tribunal federal a grande responsabilidade de fazer valer a Constituição, obstaculizando severo retrocesso de direitos no Brasil.

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1 LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

2 Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.         

Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa. (...)

3 Art. 198.  O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.

4 Lopes Jr, Aury. Direito Processual Penal- 9. Ed. Ver e atual- São Paulo- Saraiva- 2012. P. 250

5 "habeas corpus" - interrogatorio judicial - ausência de advogado - validade - princípio do contraditorio - inaplicabilidade - persecução penal e liberdades publicas - direitos publicos subjetivos do indiciado e do réu - privilegio contra a auto-incriminação - constrangimento ilegal não caracterizado - pedido indeferido. - a superveniencia da nova ordem constitucional não desqualificou o interrogatorio como ato pessoal do magistrado processante e nem impôs ao estado o dever de assegurar, quando da efetivação desse ato processual, a Presenca de defensor tecnico. a ausência do advogado no interrogatorio judicial do acusado não infirma a validade jurídica desse ato processual. a legislação processual penal, ao disciplinar a realização do interrogatorio judicial, não torna obrigatoria, em consequencia, a presenca do defensor do acusado. - o interrogatorio judicial não esta sujeito ao princípio do contraditorio. subsiste, em consequencia, a vedação legal - igualmente extensivel ao órgão da acusação-, que impede o defensor do acusado de intervir ou de influir na formulação das perguntas e na enunciação das respostas. a norma inscrita no art. 187 do código de processo penal foi integralmente recebida pela nova ordem constitucional. - qualquer individuo que figure como objeto de procedimentos investigatorios policiais ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica de imputado, tem, dentre as varias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. "nemo tenetur se detegere". ninguem pode ser constrangido a confessar a pratica de um ilicito penal. o direito de permanecer em silencio insere-se no alcance concreto da cláusula constitucional do devido processo legal. e nesse direito ao silencio inclui-se até mesmo por implicitude, a prerrogativa processual de o acusado negar, ainda que falsamente, perante a autoridade policial ou judiciária, a pratica da infração penal. (Hc 68.929, Min Celso de Mello, Publicação em 28/8/1992)

6 Mendes, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional/ Gilmar Ferreira Mendes; Paulo Gustavo Gounet Branco-m16 ed- São Paulo- Saraiva educação 2021. P. 692

Lucas Gomes de Vilhena Toledo

Lucas Gomes de Vilhena Toledo

Graduado em Direito pelo Uniceub em Julho de 2021, integrante da Advocacia Assis Toledo & Vilhena Toledo.

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