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Novo texto da MP 1.045 é aprovado na Câmara dos Deputados, repleto de jabutis

O Senado, como já se afirmou, tem atuado para corrigir ou, no mínimo, reduzir os danos de uma legislação excepcional que pode transformar-se em precariedade legalizada em detrimento da valorização do trabalho humano.

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Atualizado em 25 de agosto de 2021 08:16

(Imagem: Arte Migalhas)

No dia 10 de agosto de 2021, o relator da Medida Provisória 1.045, deputado Federal Christino Áureo (PP-RJ), apresentou ao Plenário da Câmara dos Deputados novo texto da MP, uma Subemenda Substitutiva que acatou emendas no momento da votação. O mérito do texto foi aprovado e, em 11 e 12 de agosto, os deputados e deputadas votaram os destaques.

Ao todo, foram três substitutivos apresentados e a subemenda de plenário.

O texto aprovado, que seguiu para ser votado no Senado Federal, é bastante prejudicial aos trabalhadores e às trabalhadoras, trazendo à tona dispositivos da Medida Provisória 905, de 2019, a denominada MP da Carteira Verde-Amarela, e da Medida Provisória 927/20, e cria três novas modalidades de contratação precarizadas: (1) o Priore - Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego (bastante semelhante ao contrato verde-amarelo); (2) o Requip -  Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva; e (3)  o Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário.

Além disso, o texto contém diversas alterações da legislação trabalhista, que, assim como as novas modalidades de contratação, configuram matérias completamente estranhas ao conteúdo original da MP 1.045, verdadeiros "jabutis", no jargão parlamentar.

A MP 1.045, originariamente, visava tão somente estabelecer regras para garantir empregos e renda, com o pagamento do Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, redução proporcional de jornada de trabalho e salários e suspensão temporária do contrato de trabalho durante a pandemia, como fez a MP 936, convertida na lei 14.020, de 6 de julho de 2020, mas que perdeu validade com o fim do estado de calamidade pública, em 31 de dezembro de 2020.1

Vale lembrar que o Supremo Tribunal Federal, por meio de sua jurisprudência, afirma que a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória, viola a Constituição, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo. 2

Os deputados, como se vê, ignoraram o entendimento do STF, com a justificativa de que é da competência do Poder Legislativo encontrar soluções para a crise trabalhista durante e depois da pandemia. O Deputado Marcelo Ramos, no exercício da Presidência da Câmara, durante a discussão em Plenário, chegou a dizer que se tratava, pasme-se, de "pertinência temática flexível".

Na verdade, a Câmara dos Deputados, sem nenhum debate com a sociedade e de forma açodada, repassa a conta da crise econômica à classe trabalhadora: troca empregos formais, seguros e com direitos por modalidades precárias, com menos direitos, privilegiando apenas as empresas.

Vejamos, em resumo, os principais pontos prejudiciais:

  • Possibilidade de acordo individual escrito sobre a suspensão do contrato e a redução de jornada e de salário, ou seja, a MP desprestigia a negociação coletiva e a atuação das entidades sindicais.
  • Possibilidade de dispensa sem justa causa, mesmo havendo na MP garantia provisória de emprego durante a sua vigência.
  • Compensação em caso de recebimento indevido do Benefício Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, por erro do empregador ou do próprio governo: haverá desconto dos valores nas futuras parcelas de abono salarial ou de seguro-desemprego a que o trabalhador tiver direito.
  • Possibilidade de o trabalhador com contrato de trabalho suspenso contribuir à Previdência como segurado facultativo, conforme as alíquotas estabelecidas para o segurado obrigatório. O ideal seria que o empregador pagasse a contribuição previdenciária, e não o trabalhador, em momento de pandemia e dificuldades financeiras.
  • Alteração de vários artigos da legislação atual, com graves modificações nas normas sobre fiscalização, jornada de trabalho, saúde, atuação da Justiça do Trabalho e a gratuidade da justiça (e não só na esfera trabalhista).
  • Criação do Priore, do Requip e do Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário.

Modificações à legislação atual

  1. Fiscalização

O texto altera a fiscalização trabalhista, prevendo que as empresas só poderão ser multadas por descumprir a lei depois de duas visitas dos auditores do trabalho. O que era exceção, o critério da dupla visita, agora vira regra, que vale até para casos de trabalho análogo ao escravo.

Há interferência na instauração dos procedimentos para a ação fiscal e na autonomia do Ministério Público do Trabalho, com a possibilidade de celebração de termos de ajuste de conduta com prazos e multas inferiores aos atuais.

Além do mais, a MP estabelece que o planejamento das ações de inspeção contemple projetos especiais de fiscalização setorial para a prevenção de acidentes de trabalho, doenças ocupacionais e irregularidades trabalhistas a partir da análise dos dados de acidentes e adoecimento ocupacionais, ações essas em que não caberá a lavratura de autos de infração.

Modifica, ainda, procedimentos sobre recurso de decisão que impuser multa administrativa, tudo, como se vê, para dificultar que as empresas sejam punidas e paguem por descumprir a lei.

  1. Jornada de trabalho

A MP prevê inclusão da extensão da duração normal do trabalho até o limite de 8 horas diárias no caso de atividades ou profissões com jornadas diferenciadas estabelecidas em lei, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, assegurado ao empregado o pagamento de hora adicional com valor de 20% da hora normal.

Permite, assim, que pessoas com jornada de trabalho especial, como as de telemarketing e jornalistas, tenham sua jornada estendida até 8 horas diárias, recebendo as horas excedentes com o acréscimo de 20%. O trabalhador deveria, na verdade, receber o acréscimo como hora extra, em 50%, como garante a Constituição federal, em seu art. 7º, inciso XVI.

Nesse ponto, chama a atenção a incongruência da Medida. Por um lado, para manter e criar empregos, reduz a jornada e o salário. Para essas categorias com jornadas especiais, de outro, possibilita o aumento da jornada, que é reduzida justamente para garantir a saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras, em razão das atividades que exercem.

Cria figura jurídica heterodoxa e inconstitucional: a jornada normal estendida. O Senado tem atuado para corrigir ou, no mínimo, reduzir os danos de uma legislação excepcional que pode transformar-se em precariedade legalizada em detrimento da valorização do trabalho humano.

  1. Saúde

O texto prevê a inclusão do § 8º ao art. 168 da CLT, para dispor que o empregador poderá, a seu critério, optar pela realização dos exames médicos ocupacionais periódicos, para os trabalhadores em atividade presencial ou em teletrabalho, por meio de telemedicina, sem diferenciar o tipo de atividade exercida.

  1. Homologação de acordo extrajudicial perante a Justiça do Trabalho

A MP determina ser dever do juiz do trabalho decidir pela homologação ou não de acordo entre empregado e empregador em sua integralidade, não podendo retirar cláusula nele inserida e ajustada entre as partes, mesmo que a considere ilegal ou inconstitucional. No exame do acordo, a Justiça do Trabalho deverá analisar exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 do Código Civil.

  1. Benefício da justiça gratuita

A MP contém inúmeras alterações à CLT em relação ao benefício da justiça gratuita. E não só: modifica a lei 5.010/66, que organiza a Justiça Federal; a lei 10.259/01, lei dos Juizados Especiais Federais; e a lei 13.105/15, Código de Processo Civil, especialmente para estabelecer que terá direito a esse benefício a pessoa pertencente à família de baixa renda.

Qual a pertinência temática, mesmo que flexível, dessas limitações ao acesso à Justiça?

Somente poderão ter direito ao benefício aqueles com renda familiar mensal per capita de até meio salário-mínimo; ou com renda familiar mensal de até três salários-mínimos.

A prova dessa condição deverá ser realizada por meio da apresentação de comprovante de habilitação em cadastro oficial do governo instituído para programas sociais, não bastando a mera apresentação de declaração de insuficiência de recursos para o pagamento das custas e honorários do processo, como é atualmente.

No que se refere ao processo trabalhista, propõe que terá direito ao benefício da justiça gratuita a pessoa física que, durante a vigência do contrato de trabalho mais recente, tenha percebido salário igual ou inferior a 40% do limite máximo dos benefícios do RGPS (art. 790, § 3º, II, da CLT).

Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego - Priore

Como já dito, o Priore traz à tona inúmeros dispositivos da MP 905, MP da Carteira Verde-Amarela, já que destinado às pessoas com idade entre 18 e 29 anos, relativamente ao primeiro emprego com carteira assinada, e às pessoas acima de 55 anos que estejam sem o vínculo formal há mais de 12 meses.

Permite a contratação no período de 36 meses, contudo, os contratos que vierem a ser firmados no último mês da vigência vigorarão por até 24 meses, ou seja, o Priore poderá produzir efeitos por até 60 meses, cinco anos.

Um dos principais prejuízos aos contratados pelo Programa será o recebimento do 13º salário e das férias com 1/3 de forma proporcional, se acordado entre as partes. A indenização sobre o FGTS também poderá ser paga de forma antecipada, mensalmente ou em outro período, desde que acordado entre as partes.

E houve redução da alíquota mensal do FGTS paga pelo empregador: de 2%, 4% e 6%, em vez de 8%, além da redução pela metade da indenização paga ao empregado sobre os depósitos do FGTS: 20%, em vez dos atuais 40%.

Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva - Requip

O novo Regime, que terá duração de três anos, pretende garantir a qualificação profissional e a inclusão produtiva do jovem no mercado de trabalho, mas, na verdade, cria subcategoria de trabalhador em uma mesma empresa e abre margem para fraudes na relação trabalhista. As empresas poderão, por exemplo, contratar e não dar qualificação profissional e cobrar essas pessoas como se fossem empregadas. Quem fiscalizará?

Pela MP, a relação não será considerada de emprego, e sim relação civil. A pessoa terá direito apenas ao vale-transporte e não receberá qualquer indenização ao fim do contrato, como aviso-prévio, férias e 13º proporcionais, mesmo que exerça idêntica atividade e desempenhe iguais tarefas de um outro colega de trabalho registrado em carteira de trabalho.

A pessoa contratada pelo Requip, assim, não será empregada, não será estagiária: será uma figura à margem e não terá direitos.

Como se vê, o Requip não é programa de estágio ou contrato de aprendizagem, isto é, não visa, efetivamente, formar mão de obra, mas ocupá-la simplesmente, com a condição de participação em curso de qualificação simultâneo.

O texto também desprestigia a negociação coletiva, ao considerar que os beneficiários do Regime não constituem categoria profissional e, portanto, os dispositivos do Termo de Compromisso de Inclusão Produtiva não serão objeto de negociação coletiva, ficando a empresa autorizada a oferecer liberalidades e condições mais favoráveis

Ao contratado, é assegurado o pagamento do BIP - Bônus de Inclusão Produtiva, de até cerca de R$ 220 mensais, pagos pela União até 31/12/2021, e pelo Sistema S, a partir de 2022. Uma pessoa contratada pelo Requip para trabalhar 22 horas semanais receberá apenas cerca de 40% do salário-mínimo e não terá direito a 13º salário, férias, FGTS e a nenhum direito trabalhista.

A Bolsa de Incentivo à Qualificação (BIQ), também assegurada, terá o mesmo valor, ou seja, a soma dos dois benefícios poderá chegar a R$ 440 mensais.

A BIQ terá caráter indenizatório e será devida com base no valor do salário-mínimo hora, mas limitada a 11 horas semanais, não integrando a base de cálculo da contribuição previdenciária. E o empregador poderá excluir essa despesa do lucro líquido, para fins de imposto de renda, diversamente do que ocorre com os salários.

Como se vê, de novo, apenas as empresas serão beneficiadas pela nova forma de contratação, que custará menos.

Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário

O Programa Nacional de Prestação de Serviço Social Voluntário, outro jabuti introduzido pelo relator, traz mais uma modalidade de precarização e exploração da força de trabalho das pessoas mais jovens e pessoas com mais de 50 anos, com maior vulnerabilidade social e econômica e.

Por ele, as pessoas serão contratadas pelos municípios e prestarão serviços, por até três dias na semana, sem qualquer reconhecimento de que se trata de uma relação de trabalho. Os contratados receberão uma bolsa em contrapartida, paga pela União e outra parcela pelo município.

A adesão ao Programa pelos municípios será voluntária e mediante instrumento de parceria fornecido pelo Ministério do Trabalho e Previdência.

Resistência no Senado Federal e validade da MP

Poderá haver resistência, sim, no âmbito do Poder Legislativo, já que agora o texto foi enviado ao Senado Federal, que deverá discutir e deliberar o tema. A atuação das entidades sindicais e outras da sociedade civil é de extrema importância, como se deu à época da MP 905 e da MP 936.

Os senadores e as senadoras podem se posicionar contrariamente aos inúmeros jabutis, respeitando, inclusive, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal.

O Senado, como já se afirmou, tem atuado para corrigir ou, no mínimo, reduzir os danos de uma legislação excepcional que pode transformar-se em precariedade legalizada em detrimento da valorização do trabalho humano.

Poderá haver, também, se aprovado o texto atual, discussão de sua constitucionalidade no STF, lembrando que o Supremo, infelizmente, não tem privilegiado os direitos da classe trabalhadora, desde antes de Reforma Trabalhista, basta rememorar as discussões sobre terceirização, contribuição sindical, dentre outras.

Por fim, vale lembrar que a MP 1.045 terá vigência até o dia 7 de setembro.

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1 Conforme Decreto 6, de 2020. Disponível aqui. Acesso em 11/08/2021.

2 ADI 5.127, rel. p/ o ac. Min. Edson Fachin, j. 15/10/2015, DJE 11/05/2016.

José Eymard Loguercio

José Eymard Loguercio

Advogado, mestre em Direito pela Universidade de Brasília, especialista em Direitos Humanos do Trabalho e Direito Transnacional do Trabalho pela Universidade Castilla-La Mancha (UCLM), Espanha. Sócio da LBS Advogados e presidente do Instituto Lavor.

Fernanda Caldas Giorgi

Fernanda Caldas Giorgi

Sócia do escritório LBS Advogados.

Antonio Fernando Megale Lopes

Antonio Fernando Megale Lopes

Advogado do escritório Loguercio, Beiro e Surian Sociedade de Advogados.

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