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Seguro de Acidente e a Morte por Covid-19: um debate necessário sobre o nexo de causalidade

A regulação do sinistro do seguro de acidente deve partir da análise do nexo de causalidade entre o exercício profissional do segurado (por exemplo, médico trabalhando durante a pandemia) e o sinistro decorrente deste fato (morte) e não apenas da causa da morte.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Atualizado em 31 de agosto de 2021 11:05

(Imagem: Arte Migalhas)

 

1. Introdução.

Está havendo intenso debate jurídico sobre o cabimento, ou não, de indenização proveniente de seguro de acidente decorrente de morte por Covid-19.

As seguradoras defendem que as garantias contratadas para o seguro de acidente não cobrem morte por COVID-19, por entenderem que não se trata de um acidente, mas de morte natural, razão pela qual negam a cobertura1.

O cerne da questão reside da análise do próprio conceito do que se entende como morte natural ou acidente pessoal para fins de cobertura securitária. A discussão sobre a responsabilidade civil passa pelo nexo de causalidade2. Em certas situações o Covid-19 por ser considerado acidente de trabalho. 

2. Nota Técnica SEI 56376/20, do Ministério da Economia. Inciso III do artigo 21 (doença acidentária), da Lei 8.213, de 1991. Covid-19. Causa Acidentária a depender do nexo de causalidade.

O Ministério da Economia editou Nota Técnica SEI 56376/2020/ME3 de cunho orientativo, com o objetivo de esclarecer acerca da adequada interpretação jurídica a ser dada aos arts. 19 a 23 da Lei  8.213, de 1991 no que tange à análise e configuração do nexo entre o trabalho e a COVID-19, patologia viral recente, provocada pelo SARS-CoV-2.

A orientação se fez necessária em virtude do intenso debate surgido após a publicação da Medida Provisória 927, de 22 de março de 2020, a qual previa, em seu art. 29, a seguinte redação:

Art. 29. Os casos de contaminação pelo coronavírus (Covid-19) não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo causal.

Tal dispositivo teve sua aplicação suspensa em caráter liminar por decisão proferida pelo E. STF no julgamento das ADIs nº. 6344, 6346, 6348, 6349, 6352 e 63544.

Em que pese a vigência da MP 927, de 2020, ter sido encerrada sem a sua conversão em lei e as referidas ADIs terem perdido objeto, certo é que o debate acerca do nexo entre a COVID-19 e o trabalho extrapolou, segundo o Ministério da Economia declarou5, o disposto no art. 29 do referido normativo, exigindo a consulta a órgãos técnicos e jurídicos para uniformização da interpretação dos arts. 19 a 23 da Lei nº. 8.213, de 19916.

Assim, em que pese a ausência de uma presunção de que determinada doença não é ocupacional ou que determinada situação não é acidentária, o nexo será estabelecido se demonstrada que a "doença adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente", conforme descrito na Nota Técnica.

O nexo de causalidade é evidente, por exemplo, para o médico que está trabalhando os hospitais no período de pandemia e se infecta por Covid-19 em razão do desempenho das suas atividades profissionais.

Pela Nota Técnica emitida pelo Ministério da Economia fica claro que o sinistro de morte para médicos é decorre de causa acidentária, a saber:

"Ante o exposto, resta evidenciado que "à luz das disposições da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, a depender do contexto fático, a covid-19 pode ser reconhecida como doença ocupacional, aplicando-se na espécie o disposto no § 2º do mesmo artigo 20, quando a doença resultar das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relacionar diretamente; podendo se constituir ainda num acidente de trabalho por doença equiparada, na hipótese em que a doença seja proveniente de contaminação acidental do empregado pelo vírus SARS-CoV-2 no exercício de sua atividade (artigo 21, inciso III, Lei nº 8.213, de 1991)". Nota Técnica SEI nº 56376/2020/ME

A Covid-19 deve ser reconhecida como doença ocupacional7, aplicando-se na espécie o disposto no § 2º do artigo 20 da Lei 8.213, de 1991, quando a doença resulta das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente.

No mesmo sentido, a Covid-19 pode ainda constituir acidente de trabalho por doença equiparada, na hipótese em que a doença seja proveniente de contaminação acidental do empregado pelo vírus SARS-CoV-2, no exercício de sua atividade, nos termos do inciso III do artigo 21 da Lei 8.213, de 1991.

De acordo com o artigo 19 da Lei 8.213/91:

 "Acidente de trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho". (Redação dada pela Lei Complementar nº 150, de 2015).

Há inúmeros artigos científicos comprovando que o Covid-19 pode ser enquadrado como morte acidentária. A matéria foi tratada por LESSA et al. em "Emissão de comunicação de acidente de trabalho (CAT) para trabalhadores que contraíram o novo coronavírus (COVID-19) em decorrências de suas atividades laboratoriais: Diante da pandemia da doença pelo SARS-CoV-2 (COVID-19)", em que analisam os procedimentos quanto à notificação de acidente de trabalho decorrente da Covid-198.

Conforme lecionam CALCINI E KLAUSS, no artigo "Doenças ocupacionais na pandemia do Covid-19 e os impactos trabalhistas e previdenciários", a exposição do empregado a risco ambiental e laboral, com o consequente contágio pelo novo coronavírus, caracterizará doença ocupacional equiparada a acidente do trabalho, podendo acarretar a responsabilização civil do empregador por danos morais e materiais, bem como trazer diversas implicações trabalhistas e previdenciárias ao contrato de trabalho.9

Os acidentes de trabalho e as doenças provocadas pelo exercício do trabalho passaram a ser consideradas como acidente de trabalho desde 1919, conforme esclarece LINZMEYER, no artigo "A COVID-19 diante das doenças ocupacionais"10.

O artigo 336 do decreto 3.048/99 estabelece que para fins estatísticos e epidemiológicos, a empresa deverá comunicar à previdência social o acidente de que tratam os artigos. 19, 20, 21 e 23 da Lei 8.213, de 1991, ocorrido com o segurado empregado, exceto o doméstico, e o trabalhador avulso, até o primeiro dia útil seguinte ao da ocorrência e, em caso de morte, de imediato, à autoridade competente, sob pena de multa aplicada e cobrada na forma do art. 286. Desta forma, fica claro que se a pessoa foi infectada pelo exercício da profissão, trata-se de acidente de trabalho.

Para OLIVEIRA, em "A COVID-19 diante das doenças ocupacionais", conclui que o adoecimento pela Covid-19, ou o falecimento em decorrência desta doença, pode ser o fato gerador de diversas consequências jurídicas que se refletem no (1) contrato de trabalho, (2) nos benefícios acidentários, (3) nas ações regressivas promovidas pela Previdência Social, (4) nas diversas indenizações por responsabilidade civil, (5) na Inspeção do Trabalho, (6) no pagamento de indenização de seguros privados que cobrem a morte ou a invalidez permanente e (7) na reação corporativa do sindicato da categoria profissional11. Para RITZEL, em "COVID-19 como doença ocupacional: uma análise sobre as diferentes posições adotadas entre o poder executivo e o judiciário na pandemia do coronavírus", situações como esta exigem proteção para os segurados12.

Algumas categorias ocupacionais têm risco elevado de exposição à contaminação pelo Covid-19, como os trabalhadores da saúde. O estabelecimento da Covid-19 como doença relacionada ao trabalho para os grupos expostos é um fato notório, conforme ensina HELIOTERIO no artigo "Covid-19: Por que a proteção de trabalhadores e trabalhadoras da saúde é prioritária no combate à pandemia?"13.

Conforme trabalho de autoria de TEIXEIRA et al., que teve como objetivo sistematizar um conjunto de evidências científicas apresentadas em artigos internacionais sobre os principais problemas que estão afetando os profissionais de saúde, ficou claro que:

 "O principal problema é o risco de contaminação que tem gerado afastamento do trabalho, doença e morte, além de intenso sofrimento psíquico, que se expressa em transtorno de ansiedade generalizada, distúrbios do sono, medo de adoecer e de contaminar colegas e familiares" (TEIXEIRA, Carmen Fontes de Souza et al. A saúde dos profissionais de saúde no enfrentamento da pandemia de Covid-19. Ciência & Saúde Coletiva, v. 25, p. 3465-3474, 2020). 

Ademais, o Poder Legislativo, atento à situação excepcional causada pela pandemia do novo coronavírus, tem caminhado para alinhar o ordenamento jurídico à nova realidade enfrentada por milhares de brasileiros que se veem subitamente desamparados com a morte precoce e inesperada de familiares que, em muitos casos, eram o sustentáculo econômico do grupo familiar.

Nesse sentido, ressalta-se o Projeto de Lei 5304/20, atualmente em tramitação junto à Câmara de Deputados, que conta com a seguinte ementa:

Altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil, para estabelecer a obrigatoriedade de cobertura e pagamento dos Seguros de Vida nos casos de morte e de incapacidade do segurado, relacionadas ou provenientes de infecção causada, direta ou indiretamente, por epidemias ou pandemias, declaradas por órgão ou autoridades competentes, afastando-se qualquer contagem de prazo de carência, e para determinar a vedação temporária de reajuste do prêmio e da suspensão ou rescisão unilateral dos Contratos de Seguro de Vida, enquanto durarem os efeitos do Estado de Calamidade Pública, declarado pelo Decreto Legislativo nº 6, de 2020, ou da declaração de emergência de saúde pública de importância internacional, de que trata a Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, decorrente da Pandemia do Coronavírus (Covid-19).

Pelo projeto de lei acima identificado pretende-se estender a situação acidentária para outras categorias profissionais, ainda que o nexo de causalidade não seja tão evidente quanto a situação descrita nestes autos. 

3. Conclusão.

Em conclusão, quando a doença resulta das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente, será considerado acidente de trabalho, como é o caso da contaminação dos hospitais pela doença em relação trabalhista com os profissionais de saúde, podendo ainda constituir acidente de trabalho por doença equiparada, na hipótese em que a doença seja proveniente de contaminação acidental do empregado pelo novo coronavírus SARS-CoV-2, no exercício de sua atividade, nos termos do inciso III do artigo 21 da Lei 8.213/91.

Desta forma, a regulação do sinistro do seguro de acidente deve partir da análise do nexo de causalidade entre o exercício profissional do segurado (por exemplo, médico trabalhando durante a pandemia) e o sinistro decorrente deste fato (morte) e não apenas da causa da morte.

Se a contaminação pelo Covid-19 decorreu de um acidente de profissão, tal como já reconhecido pelo Ministério da Economia na Nota Técnica SEI 56376/2020/ME e em centenas de trabalhos científicos publicados sobre o tema, é devida a indenização prevista no seguro de acidente.

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1 SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS - Conceito de acidente pessoal - Evento com data caracterizada, exclusivo, externo e súbito - Ausência - Predeterminação dos riscos - Contrato de seguro que deve ser interpretado de forma restritiva - Sinistro inexistente - Morte por COVID-19 - Morte por doença - Morte natural não contratada - Risco excluído. Apelação não provida. (TJ-SP - AC: 10113697820208260161 SP 1011369-78.2020.8.26.0161, Relator: Sá Moreira de Oliveira, Data de Julgamento: 29/06/2021, 33ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 29/06/2021)

2 Disponível em clique aqui, acessado em 26.08.2021

3 Nota técnica disponível em clique aqui.

4 STF. MEDIDA CAUTELAR NAS AÇÕES DIRETAS DE INCONSTITUCIONALIDADE 6342, 6344, 6346, 6348, 6352 E 6354. DIREITO CONSTITUTIONAL E DIREITO DO TRABALHO. MEDIDA PROVISÓRIA 927/2020. MEDIDAS TRABALHISTAS PARA ENFRENTAMENTO DO ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA RECONHECIDO PELO DECRETO LEGISLATIVO 6/2020. NORMAS DIRECIONADAS À MANUTENÇÃO DE EMPREGOS E DA ATIVIDADE EMPRESARIAL. ART. 29. EXCLUSÃO DA CONTAMINAÇÃO POR CORONAVÍRUS COMO DOENÇA OCUPACIONAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO EMPREGADOR. ART. 31. SUSPENSÃO DA ATUAÇÃO COMPLETA DOS AUDITORES FISCAIS DO TRABALHO. AUSÊNCIA DE RAZOABILIDADE. SUSPENSÃO DA EFICÁCIA DOS ARTS. 29 E 31 DA MP 927/2020. CONCESSÃO PARCIAL DA MEDIDA LIMINAR. 1. A Medida Provisória 927/2020 foi editada para tentar atenuar os trágicos efeitos sociais e econômicos decorrentes da pandemia do coronavírus (covid-19), de modo a permitir a conciliação do binômio manutenção de empregos e atividade empresarial durante o período de pandemia. 2. O art. 29 da MP 927/2020, ao excluir, como regra, a contaminação pelo coronavírus da lista de doenças ocupacionais, transferindo o ônus da comprovação ao empregado, prevê hipótese que vai de encontro ao entendimento do Supremo Tribunal Federal em relação à responsabilidade objetiva do empregador em alguns casos. Precedentes. 3. Não se mostra razoável a diminuição da atividade fiscalizatória exercida pelos auditores fiscais do trabalho, na forma prevista pelo art. 31 da MP 927/2020, em razão da necessidade de manutenção da função exercida no contexto de pandemia, em que direitos trabalhistas estão sendo relativizados. 4. Medida liminar parcialmente concedida para suspender a eficácia dos arts. 29 e 31 da Medida Provisória 927/2020. (STF - ADI: 6344 DF 0088743-96.2020.1.00.0000, Relator: MARCO AURÉLIO, Data de Julgamento: 29/04/2020, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 12/11/2020)

5 Ver nota técnica Nota técnica disponível em clique aqui.

6 Lei LEI Nº 8.213, DE 24 DE JULHO DE 1991 que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.

7 A distinção entre doença ocupacional e acidentária. Enquanto o auxílio-doença é devido em razão de uma incapacidade temporária para o labor, o auxílio-acidente é um benefício indenizatório devido ao segurado que não se recupera totalmente de uma doença ocupacional ou acidente e fica com sequelas permanentes que reduzem a sua capacidade para trabalhar.

8 LESSA, Flávia et al. Emissão de comunicação de acidente de trabalho (CAT) para trabalhadores que contraíram o novo coronavirus (COVID-19) em decorrências de suas atividades laboratoriais: Diante da pandemia da doença pelo SARS-CoV-2 (COVID-19). 2020. Disponível em clique aqui.
 
9 CALCINI, Ricardo; KLAUSS, Priscilla. Doenças ocupacionais na pandemia do Covid-19 e os impactos trabalhistas e previdenciários. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, v. 24, n. 1, p. 184-196, 2020.
 
10 LINZMEYER, Diane. A COVID-19 diante das doenças ocupacionais. 2021. Disponível em clique aqui.
 
11 OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Repercussões do enquadramento da COVID-19 como doença ocupacional. Disponível em clique aqui.
 
12 RITZEL, Guilherme Sebalhos. COVID-19 como doença ocupacional: uma análise sobre as diferentes posições adotadas entre o poder executivo e o judiciário na pandemia do coronavírus. Disciplinarum Scientia| Sociais Aplicadas, v. 16, n. 2, p. 1-14, 2020.
 
13 HELIOTERIO, Margarete Costa et al. Covid-19: Por que a proteção de trabalhadores e trabalhadoras da saúde é prioritária no combate à pandemia?. Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, 2020.

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CALCINI, Ricardo; KLAUSS, Priscilla. Doenças ocupacionais na pandemia do Covid-19 e os impactos trabalhistas e previdenciários. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, v. 24, n. 1, p. 184-196, 2020.

HELIOTERIO, Margarete Costa et al. Covid-19: Por que a proteção de trabalhadores e trabalhadoras da saúde é prioritária no combate à pandemia?. Trabalho, Educação e Saúde, v. 18, 2020.

LESSA, Flávia et al. Emissão de comunicação de acidente de trabalho (CAT) para trabalhadores que contraíram o novo coronavirus (COVID-19) em decorrências de suas atividades laboratoriais: Diante da pandemia da doença pelo SARS-CoV-2 (COVID-19). 2020. Disponível em clique aqui.

LINZMEYER, Diane. A COVID-19 diante das doenças ocupacionais. 2021. Disponível em clique aqui.

OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Repercussões do enquadramento da COVID-19 como doença ocupacional. Disponível em clique aqui.

RITZEL, Guilherme Sebalhos. COVID-19 como doença ocupacional: uma análise sobre as diferentes posições adotadas entre o poder executivo e o judiciário na pandemia do coronavírus. Disciplinarum Scientia| Sociais Aplicadas, v. 16, n. 2, p. 1-14, 2020.

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Guilherme Veiga Chaves

Guilherme Veiga Chaves

Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito Constitucional Internacional pela Universitá di Pisa/UNIPI, Itália. Advogado sócio do escritório Gamborgi, Bruno e Camisão Associados Advocacia.

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