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O novo decreto de regulamentação da lei federal de incentivo à cultura e o limite de contrapartidas aos patrocinadores

Considerando os prazos usuais para aprovação e execução dos projetos culturais regidos pela lei 8.313/91, a percepção que a Constituição e a lei de Introdução colocam o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada a salvo de modificações legais posteriores é fundamental para entender os limites de aplicação de eventuais novas regras.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Atualizado às 08:16

(Imagem: Arte Migalhas)

Recentemente, foi publicado o decreto 10.755/21, que regulamenta a lei 8.313/91 - a lei Federal de Incentivo à Cultura. Também conhecida como lei Rouanet, a norma trata do Programa Nacional de Apoio à Cultura e permite que pessoas físicas e jurídicas façam aportes para projetos com incentivo fiscal, na forma de desconto no seu Imposto de Renda1. Esses repasses viabilizam o desenvolvimento de diversas ações, como a produção de espetáculos teatrais, exposições de artes visuais, publicação de livros, gravação de músicas, entre outras.

O incentivo aos projetos pode ser feito na forma de doação ou patrocínio. O que diferencia os dois mecanismos é que, no patrocínio, o incentivador tem o objetivo de promoção da sua marca ou imagem, que é associada ao projeto cultural2.

É comum ainda que os patrocinadores recebam parte dos produtos do projeto, em contrapartida ao valor repassado. Isso acontece, por exemplo, na forma de ingressos para os eventos realizados pelos proponentes. Porém, essas contrapartidas devem observar determinados limites, para que não sejam consideradas vantagem financeira indevida para o patrocinador.

Na vigência do decreto 5.761/06, o limite individual para cada apoiador e o teto geral para concessão de contrapartidas era de 10% dos produtos culturais:

Decreto 5.761/06

Art. 31.  Não constitui vantagem financeira ou material a destinação ao patrocinador de até dez por cento dos produtos resultantes do programa, projeto ou ação cultural, com a finalidade de distribuição gratuita promocional, consoante plano de distribuição a ser apresentado quando da inscrição do programa, projeto ou ação, desde que previamente autorizado pelo Ministério da Cultura.

Parágrafo único. No caso de haver mais de um patrocinador, cada um poderá receber produtos resultantes do projeto em quantidade proporcional ao investimento efetuado, respeitado o limite de dez por cento para o conjunto de incentivadores.

Porém, esse dispositivo foi alterado recentemente pelo decreto 10.755/21, sendo essa uma das modificações mais polêmicas introduzidas por essa nova norma. No caso de projetos incentivados por apenas um patrocinador, os proponentes podem destinar até 5% dos produtos culturais a título de contrapartida ao patrocínio. Caso haja mais de um apoiador, o total destinado a todos eles deve observar um teto geral de 10% dos produtos:

Decreto 10.755/21

Art. 31. Não constitui vantagem financeira ou material a destinação ao patrocinador de até cinco por cento dos produtos resultantes do programa, projeto ou ação cultural, com a finalidade de distribuição gratuita promocional, consoante plano de distribuição a ser apresentado quando da inscrição do programa, projeto ou ação, desde que previamente autorizado pela Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo.

Parágrafo único. No caso de haver mais de um patrocinador, cada um poderá receber produtos resultantes do projeto em quantidade proporcional ao investimento efetuado, respeitado o limite de dez por cento para o conjunto de incentivadores.

Vale mencionar que o decreto 10.755/21 foi publicado em 26 de julho de 2021, entrando em vigor na mesma data. E, ainda, que a concessão de contrapartidas em desacordo com a legislação pode ser considerada vantagem financeira indevida, nos termos da lei 8.313/913, sujeita a penalidades como o recolhimento do valor atualizado do Imposto de Renda que foi objeto de abatimento fiscal:

Lei 8.313/91

Art. 30.  As infrações aos dispositivos deste capítulo, sem prejuízo das sanções penais cabíveis, sujeitarão o doador ou patrocinador ao pagamento do valor atualizado do Imposto sobre a Renda devido em relação a cada exercício financeiro, além das penalidades e demais acréscimos previstos na legislação que rege a espécie.

Dada a relevância do tema, é importante analisar como essa nova regra impacta os projetos que já estavam em andamento e com patrocínios e doações já firmados, inclusive com contrapartidas já acordadas. Vale destacar, inclusive, que usualmente os aportes são negociados e celebrados no final de cada ano fiscal, para que os projetos sejam executados no ano seguinte. E, ainda, que os valores são depositados em conta bancária específica, cuja movimentação só é liberada após aprovação por parte da Secretaria Especial de Cultura do Governo Federal.

Assim, com essa nova regulamentação, como ficaria a negociação firmada entre as partes? Os proponentes seriam obrigados a renegociar as contrapartidas com os patrocinadores?

O decreto 10.755/21 não traz nenhuma regra de transição relativa a esse ponto. Porém, a Constituição da República de 1988 e a lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657/42) indicam que uma nova legislação não poderá contrariar o ato jurídico perfeito:

CR/88

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;

LINDB

Art. 6º A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. (Redação dada pela lei 3.238, de 1957)

§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. (Incluído pela lei 3.238, de 1957)

Contratos firmados observando os elementos jurídicos básicos para realização de negócios (as partes serem agentes capazes, e que o objeto e a forma que não contrariem a lei vigente na data da sua celebração), são tipicamente considerados atos jurídicos perfeitos4. Logo, não podem ser prejudicados por legislação superveniente. Nesse sentido, os contratos de doação ou patrocínio firmados antes da edição do novo decreto 10.755/21 devem permanecer sujeitos aos limites de contrapartida previstos no decreto 5.761/06 (que era a regra vigente no momento da sua celebração), sendo inconstitucional e ilegal qualquer exigência de sua alteração aos tetos mais baixos introduzidos pela nova regra.

Considerando os prazos usuais para aprovação e execução dos projetos culturais regidos pela lei 8.313/91, a percepção que a Constituição e a lei de Introdução colocam o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada a salvo de modificações legais posteriores é fundamental para entender os limites de aplicação de eventuais novas regras. Em um momento de discussão contínua sobre as leis de incentivo, esse tipo de garantia jurídica é de suma importância.

________

1 Nos termos da lei 8.313/91: "Art. 18. Com o objetivo de incentivar as atividades culturais, a União facultará às pessoas físicas ou jurídicas a opção pela aplicação de parcelas do Imposto sobre a Renda, a título de doações ou patrocínios, tanto no apoio direto a projetos culturais apresentados por pessoas físicas ou por pessoas jurídicas de natureza cultural, como através de contribuições ao FNC, nos termos do art. 5o, inciso II, desta lei, desde que os projetos atendam aos critérios estabelecidos no art. 1o desta lei. (Redação dada pela lei 9.874, de 1999) § 1o .Os contribuintes poderão deduzir do imposto de renda devido as quantias efetivamente despendidas nos projetos elencados no § 3o, previamente aprovados pelo Ministério da Cultura, nos limites e nas condições estabelecidos na legislação do imposto de renda vigente, na forma de: (Incluído pela lei 9.874, de 1999) a) doações; e (Incluída pela lei  9.874, de 1999) b) patrocínios. (Incluída pela lei 9.874, de 1999)

2 Nos termos do Decreto 10.755/2021: "Art. 4º Para fins do disposto neste Decreto, considera-se:

(...) IV - doação - a transferência definitiva e irreversível de numerário ou bens em favor de proponente, pessoa física ou jurídica sem fins lucrativos, cujo programa, projeto ou ação cultural tenha sido aprovado pela Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo; V - patrocínio - a transferência definitiva e irreversível de numerário ou serviços, com finalidade promocional, a cobertura de gastos ou a utilização de bens móveis ou imóveis do patrocinador, sem a transferência de domínio, para a realização de programa, projeto ou ação cultural que tenha sido aprovado pela Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo;

3 Art. 23. Para os fins desta lei, considera-se: (...) § 1o Constitui infração a esta lei o recebimento pelo patrocinador, de qualquer vantagem financeira ou material em decorrência do patrocínio que efetuar.

4 De acordo com Fabio Ulhoa Coelho: "O ato jurídico é perfeito se consumado de acordo com a lei vigente à época de sua realização. Os contratos, testamentos ou outras declarações de vontade considerados e aperfeiçoados no momento em que se reúnem todas as condições legais para a respectiva constituição, segundo o disposto na lei vigente ao tempo em que foram feitos. Se a lei nova passa a condicionar a validade de um negócio ao atendimento de certa forma, os negócios do mesmo tipo celebrados anteriormente não podem ser considerados inválidos por faltar-lhes tal condição." (COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito civil: parte geral, volume 1. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. np)

Renato Dolabella Melo

Renato Dolabella Melo

Sócio do escritório Dolabella Costa Campos Advocacia e Consultoria. Doutor e mestre em Propriedade Intelectual e Inovação. Mestre em Direito Econômico. Professor nas áreas de Terceiro Setor e PI.

Mariana Mendes Álvares da Silva Campos

Mariana Mendes Álvares da Silva Campos

Advogada do escritório Dolabella Costa Campos Advocacia e Consultoria. Pós-graduada em Direito Público pela PUC/MG. Secretária Geral da Comissão de Direito das Parcerias Intersetoriais e Organizações da Sociedade Civil da OAB/MG.

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