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Justa causa indevida por resistência do trabalhador à vacinação contra a covid-19

Penso ser necessário existir um regramento específico, voltado para o direito do trabalho, limitando o direito fundamental dos empregados ou das pessoas em geral, a fim de enquadrá-lo como justa causa, ainda que provisório tal mandamento, pois somente assim o empregador poderá impor ao empregado a pena capital de justa causa.

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Atualizado às 14:43

(Imagem: Arte Migalhas)

Art. 5º -
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

Tem sido apregoado por alguns a pena de justa causa ao trabalhador que se negar em vacinar-se contra a Covid-19, inclusive com recomendação do próprio Ministério Público do Trabalho. Nada mais enganoso.

Não duvidamos da gravidade da pandemia que abate o mundo, principalmente porque no Brasil já ceifou mais de 500 (quinhentos) mil vidas, sendo imperioso mantermos os cuidados individuais e coletivos para evitarmos a transmissão e o contagio do vírus, por meio do uso de máscaras, do distanciamento e da não-aglomeração e da vacina, pois o vírus é perigoso e mortal.

Contudo, a Constituição deve ser sempre a baliza para criar, impor, restringir, limitar ou extinguir direitos. Por isso, não podemos esquecer-nos do primado da legalidade de que fala o inciso II do art. 5º, segundo o qual ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Dito isso, o primeiro questionamento que nos ocorre é acerca da existência de lei impondo a todos a obrigatoriedade de vacinar-se contra a Covid-19. Pois muito bem. De logo nos vem à memória a lei 13.979, de 06 de fevereiro de 2020, que passou a viger em 7 de fevereiro de 2020, a qual dispôs do enfrentamento da emergência de saúde pública no Brasil, instalada com a chegada do coronavirus em nosso país. Feito isso, adveio o Decreto legislativo 6, de 20 de março de 2020 e, consoante art. 1º1 reconheceu o estado de calamidade pública no Brasil, com efeitos operantes até 31 de dezembro de 2020.

Todavia, o art. 3º da lei supracitada, facultou às autoridades competentes, no âmbito de suas competências, adotarem as medidas de que falam os incisos I e II, ou seja, o isolamento e a quarentena tinham caráter não-obrigatóro. Contudo, o inciso III2 do mesmo artigo, tornou compulsória a realização de exames médicos, testes de laboratório, coleta de amostras clínicas, vacinação e outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos.

Como se constata, torna-se imprescindível que autoridades públicas competentes e, segundo o STF, seriam governadores e prefeitos, consoante extraio da ADI 6.341-MC, a qual reconheceu competência comum administrativa entre a União, os Estados e os Municípios para a tomada de medidas normativas e administrativas acerca de "questões envolvendo saúde".

Assim, no âmbito federal, não há lei tornando a vacinação contra a Covid-19 obrigatória, já que, a teor do caput do art. 3º c/c inciso III, letra "d", da lei 13.979-2020, caberão às autoridades competentes, determinar a realização compulsória da vacinação, sendo, destarte, facultativa a sua adoção. Logo, imprescindível existir ato normativo de autoridade competente concretizando essa compulsoriedade da vacina no âmbito nacional, estadual ou local.   

Vale ressaltar que o STF já extraiu tese através do tema 11033, por meio do RE 1293130, de 18 de dezembro de 2020, no sentido de reconhecer essa obrigatoriedade, desde que a vacina seja incluída no Programa Nacional de Imunização; tenha sua aplicação determinada por lei; ou haja determinação dessa obrigatoriedade decretada pela União, Estado, Distrito Federal ou Município, hipótese em que não haverá violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica.

Ocorre que, no âmbito da União temos a lei 13.979-2020, porém, segundo os termos do art. 8º, sua vigência foi temporal e condicional aos efeitos do Decreto Legislativo 06-2020, o qual vigeu até 31.12.2020, verbis:

Art. 8º - Esta lei vigorará enquanto estiver vigente o Decreto Legislativo 6, de 20 de março de 2020 , observado o disposto no art. 4º-H desta lei.

Em outras palavras, no Brasil o estado de calamidade pública vigeu até 31 de dezembro de 2020, consoante dispôs o art. 1º do Decreto Legislativo 6, de 20 de março de 2020. Contudo, sem nenhum constrangimento ou temor, o Min. Ricardo Lewandowski, nos autos da ADI 6.625/DF, concedeu liminar para prorrogar a vigência de parte da lei supracitada, caduca pelo tempo e, inacreditavelmente, a decisão judicial decretou que, apesar de a lei ter perdido sua vigência em 31.12.2020, os arts. 3º, 3º-A até 3º-J continuavam vigendo, ou seja, uma decisão judicial represtinou os efeitos de parte de uma lei, verbis:

"Em face do exposto, defiro parcialmente a cautelar requerida, ad referendum do Plenário desta Suprema Corte, para conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 8° da lei 13.979/2020, com a redação dada pela lei 14.035/2020, a fim de excluir de seu âmbito de aplicação as medidas extraordinárias previstas nos arts. 3°, 3°-A, 3°-B, 3°-C, 3°-D, 3°-E 3°-F, 3°-G, 3°-H e 3°-J, inclusive dos respectivos parágrafos, incisos e alíneas. Comunique-se com urgência."

Publique-se.

Brasília, 30 de dezembro de 2020

Ministro Ricardo Lewandowski

Relator

A decisão liminar do Min. Ricardo Lewandowski embora seja moralmente justificada, porém, não o é juridicamente. Em primeiro lugar, decretou a inutilidade do Congresso quando alterou a redação do art. 8º da lei 13.979/2020, a manu judicialli, ressuscitando o estado de calamidade pública no Brasil, de forma completamente ilegítima. A decisão do ministro enxertou uma exceção inexistente na norma revogada pelo tempo, tendo usurpado competência do Parlamento.

Juridicamente, a decisão supracitada não se sustenta, não só por transgredir a teoria dos direitos fundamentais, em especial quanto à assertiva de que eles somente podem ser restringidos por lei, consoante melhor doutrina4, mas por violar, ainda, a teoria de validade das normas, prevista na lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB, especialmente o §4º do art. 1º e o art. 2º e seu §3º, verbis:

Art. 1º -

§ 4o  - As correções a texto de lei já em vigor consideram-se lei nova.

Pareceu-nos claríssimo que qualquer correção feita a texto de lei somente poderá ocorrer por nova lei, advinda do Parlamento. Da mesma forma, eventual exceção à regra geral prevista em lei, somente é possível mediante lei nova, não existindo nenhuma possibilidade jurídica de o Judiciário substituir o legislador nessa tarefa, principalmente por se tratar de matéria eminentemente infraconstitucional, sem esquecermos que a vigência da lei 13.979-2020 era temporária, vigendo até 31.12.2020, por pura opção política do legislador, em inteira harmonia com o art. 2º e seu §3º da LINDB, abaixo transcritos.

Art. 2o - Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

§ 3o  - Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.

Portanto, somente o Parlamento poderia promover alguma exceção na norma já vencida, principalmente por se tratar de vigência temporal, hipótese em que seguirá seu itinerário independente da vontade subjetiva de qualquer pessoa, instituição ou poder. O prazo é peremptório, preclusivo e continuo, salvo se nova lei o alterar. Por outro lado, não sendo temporária a vigência da lei, ela vigerá até que outra a modifique ou a revogue, consoante a lei de introdução.

Portanto, com a exceção criada pelo Min. Ricardo Lewandowski, os cidadãos brasileiros poderão ser ilegalmente constrangidos, por decisão judicial, em seus direitos fundamentais de liberdade de consciência, de convicção filosófica ou política, haja vista que, a manu judiciali, o cidadão continuará sujeito à vacinação obrigatória por ato de autoridade estadual ou municipal, em face da represtinação judicial dada à redação dos arts. 3º e 3-A até 3-J da lei da pandemia, sem esquecermos à violação frontal ao direito de personalidade das pessoas, ex vi do art. 155 do Código Civil brasileiro.

Não fosse tudo isso, a ressalva criada pela decisão judicial do Min. Ricardo Lewandowski transgrediu o disposto no inciso II do art. 5º da CF, pois, não raro, eventual questão de validade das regras deve ter preferência aquela decretada pela autoridade competente, a norma mais recente ou mais especifica ou, ainda, aquela que regule inteiramente a matéria, em perfeita harmonia com o disposto no §1º do art. 2º da LINDB, verbis:

§ 1o - A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

Por tudo estudado, ressai cristalina que inexiste lei federal válida a obrigar o cidadão a se submeter à vacinação da Covid-19, sendo a decisão liminar do Min. Lewandowski inconstitucional por violar a literalidade do inciso II do art. 5º da Constituição brasileira, além de ilegal por afrontar o art. 2º, §§1º e 3º da LINDB.

  • Clique aqui para conferir a íntegra do artigo.

_________

1 Art. 1º Fica reconhecida, exclusivamente para os fins do art. 65 da lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, notadamente para as dispensas do atingimento dos resultados fiscais previstos no art. 2º da lei 13.898, de 11 de novembro de 2019, e da limitação de empenho de que trata o art. 9º da lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, com efeitos até 31 de dezembro de 2020, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem  93, de 18 de março de 2020.

Art. 3º - Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas:

III - determinação de realização compulsória de:

a) exames médicos;

b) testes laboratoriais;

c) coleta de amostras clínicas;

d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou

e) tratamentos médicos específicos.

3 É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar.

4 O regime próprio dos direitos, liberdades e garantias não proíbe de todo em todo a possibilidade de restrição, por via de lei, do exercício dos mesmos. Mas submete tais restrições a vários e severos requisitos. Para que a restrição seja constitucionalmente legítima, torna-se necessária a verificação cumulativa das seguintes condições: a) - que a restrição esteja expressamente admitida (ou, eventualmente, imposta) pela Constituição, ela mesma (nº 2, 1ª parte); b) - que a restrição vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente  protegido (nº 2, 2ª parte); que a restrição seja exigida por essa salvaguarda, seja apta para o efeito e se limite à medida necessária para alcançar esse objetivo (nº 2, 2ª parte); d) - que a restrição não aniquile o direito em causa atingindo o conteúdo essencial do respectivo preceito (nº 3, in fine).  In CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital, 2007, p. 388.

2. No que diz respeito às espécies de limitações, registra-se substancial consenso quanto ao fato de que os direitos fundamentais podem ser restringidos tanto por expressa disposição constitucional como por norma legal promulgada com fundamento na Constituição. SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional, 2019, p. 394.    

5 Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

Antonio de Pádua Muniz Corrêa

Antonio de Pádua Muniz Corrêa

Me. e doutorando em Direito, MBA em Direito Civil e Processo Civil, Especialista em Direito Constitucional, Autor do Livro "Novo Processo do Trabalho" editado pela LTr, Juiz do Trabalho Titular da 1ª. VT de São Luís - MA, da 16ª. Região.

Paulo Antonio Papini

VIP Paulo Antonio Papini

Advogado em São Paulo. Me. e Doutorando em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa. Pós-graduado em Processo Civil. Especialista em Direito Imobiliário. Professor na ESA/UNIARARAS e ESD-Campinas.

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