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CDC não é lei total. Aplicável mesmo quando inaplicável

Nem o CDC é uma lei total, aplicável mesmo quando inaplicável, nem existe tutela coletiva, em regime de substituição, se não houver lei prévia a conferir expressamente tal legitimação extraordinária, isto é, tal poder anômalo de procurar em juízo sem procuração.

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Atualizado às 10:09

(Imagem: Arte Migalhas)

Fala-se tanto, e quanto, em microssistema da tutela coletiva. E se diz ainda que o CDC seria a capital dessa terra nova, que já nem é nova. O que não se ouve, ou mal se ouve, é que tal universo paralelo tem, como tudo há de ter, limites - (deonto)lógicos e geográficos. E dois, dentre eles, são: nem o CDC é uma lei total, aplicável mesmo quando inaplicável, nem existe tutela coletiva, em regime de substituição, se não houver lei prévia a conferir expressamente tal legitimação extraordinária, isto é, tal poder anômalo de procurar em juízo sem procuração.

CDC, com efeito, não é lei geral, mas especial. Ele não cobre a totalidade da vida, notadamente relações privadas. Sua incidência material e processual cinge-se, via de regra, a relações de consumo, com as pretensões daí derivadas. CDC, enfim, não é CC, nem tem autonomia de voo para tal, embora, hoje, na prática, sendo tudo consumo, mais pareça ser ele a regra, e não a exceção.

Depois, a circunstância de ninguém, a princípio, poder postular, em nome próprio, por (direito de) outrem, não é mais que um imperativo de liberdade, quando não do bom senso e de uma convivência sadia, calcada no respeito. Não queremos, afinal, tanto quanto pudermos, que ninguém queira por nós. Todos temos o direito individual inalienável de errar e aprender com os próprios erros. Nem deveria a lei, para além do necessário, estimular esse caminhar-se em muletas emprestadas por samaritanos nada desinteressados - cujas multas, aliás, que postulam em juízo vão parar, as mais das vezes, e no final do dia, não no bolso dos tutelados, mas na arca de arcanos fundos.

Bem ou mal, ainda há, entre nós, garantias individuais, apesar do Tema 660 do STF1. E, também bem ou mal, demandas individuais, in terrae brasilis, devem prevalecer sobre a coletiva, apesar do Tema 60 do STJ2. Quantas às primeiras, quem o diz é a Constituição Federal (rol do art. 5º), apesar da intepretação do STF. Quanto às segundas, é o próprio CDC (art. 81 e ss.), apesar da interpretação do STJ. Por lei, portanto, demandas individuais não devem marcar seu passo com o de demandas coletivas. Assim será apenas se o autor individual o quiser, e assim o manifestar expressamente. Não há intuições a priori autorizadas aqui, nem a favor do autor coletivo, nem de magistrados. O próprio incidente de coletivização, originalmente previsto no art. 333 do CPC, foi vetado, ante a "maneira pouco criteriosa"3 de conversão de demandas individuais em ações coletivas. Não há, enfim, no nosso sistema, uma tal procuração geral e irrestrita, nem mesmo para o Ministério Público - e não conseguimos nem imaginar como seria, se houvesse. Em suma: se não há relação de consumo, tratando-se de interesses individuais, homogêneos ou heterogêneos, não se aplica o CDC; e se este não se aplica, não há, nessa hipótese, nem poder haver, regime de substituição.

Ou não será assim? O art. 117 do CDC4 contemplaria esse assombroso passaporte em branco para legitimações extraordinárias interventivas em relações privadas sejam elas quais forem? É evidente que não, nem o dispositivo diz isso. Ele apenas diz que se aplica à tutela coletiva em geral, no que couber, as normas do título III do CDC, que trata da tutela em juízo. Não se diz ali que o CDC é lei total, aplicável tout court a quaisquer relações individuais, ainda que não enquadráveis como relações de consumo. É bem verdade que, com profusa fabricação de princípios e ponderação de valores, chega-se, hoje, a qualquer lugar da imaginação. No entanto, se tudo é defensável, assim o é desde que exista. Se algo nem sequer existe (v.g., uma relação de consumo), então não é defensável (aplicar-se o CDC, ainda mais para fins de tutela coletiva). E se dizer paradoxos e disparates faz bem para a alma, isso vale para a arte, não para a vida de relação. Mas o fato é que o Direito também tem seus paradoxos, ou ao menos sua aplicação pode ser paradoxal.

E foi assim, paradoxalmente, que o STJ declarou que o capítulo do CDC destinado às ações coletivas não se limitaria "às demandas que envolvam relações de consumo"5 (assertiva que deve, como visto ser contextualizada). Nessa mesma linha paradoxal, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro conferiu recentemente à Defensoria Pública legitimidade extraordinária para atuar, sem prova de representação, na defesa de direitos individuais de usuários de plano de saúde administrado por autogestão, "mesmo que não se trate de relação de consumo"6, já que a Súmula 608 do STJ7 já havia placitado não aplicar-se o CDC a tais planos, tudo com vistas a obstar a reformulação de modelo de custeio insolvável e a migração para nova operadora, já anuída por mais de 85% dos assistidos.

Esse paradoxo é incompatível com a legalidade. E por legalidade entende-se algo muito sério: se o Estado quer alguma coisa - leia-se, se entende que deve intervir em determinada relação, para além do tanto que já intervém -, que o diga clara e previamente em lei, e não a posteriori, por interpretação criativa. No fim de contas, o CDC tem servido de instrumento de controle: uma ferramenta normativo-ideológica do credo da salvação pelo coletivo, laico no verniz e messiânico no conteúdo. Um credo, seja como for, politicamente delicado, historicamente perigoso, e, não bastasse, estupidamente falso: cresce o Estado, cresce o coletivo; crescem as autoridades, crescem as disputas internas de poder; e o indivíduo diminui, junto com a sociedade. Afinal, quem reparte o bolo, diz-nos, não o mero dito, mas a experiência da vida, reserva a si a melhor fatia.

Só, portanto, em paragens pastorais, cultoras da tradição do autoritarismo, tal apelo bovino ainda dá frutos. E, se não tivemos modernidade - saltando direto para novos reacionarismos, estes pós-modernos -, é porque ainda não vimos, com uma cegueira de séculos, que o indivíduo é a única realidade, que ninguém se transforma senão por si mesmo, e que a democracia vale, afinal, na medida em que promove a ambos, ao indivíduo e a essa transformação. São mais de trinta anos da Constituição Cidadã, a carta do solidarismo ufanista. E, em dados recentes, são quase 35 milhões de indivíduos, que, solidariamente, não tem acesso a água, e cerca de 100 milhões de indivíduos, sempre solidariamente, que não tem acesso ao esgotamento sanitário. Isso para ficar no que há de mais básico.

Mas o Congresso estuda um novo marco legal do saneamento, o que venderá muitos livros, organizará muitos colóquios e renderá muitos votos. A república da coletivização como princípio seguirá adiante com seus princípios coletivizantes. Seguirá, enfim, o mau fado do pior cego, que já não é o que não quer ver, mas o que trabalha internamente elaborados discursos e estruturas de autojustificação para turvar e tolher a todos a visão de que "uma nação vale o que vale a soma dos seus indivíduos"8. Aqui será, quando for, como for, e se for, como tem sido, quando Hegels quiserem.

_________

1 "Alegação de cerceamento do direito de defesa. Tema relativo à suposta violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa, dos limites da coisa julgada e do devido processo legal. Julgamento da causa dependente de prévia análise da adequada aplicação das normas infraconstitucionais. Rejeição da repercussão geral." (STF, ARE 748.371 RG, relator min. Gilmar Mendes, julgado em 6/6/13, DJe 31/7/13. Disponível aqui.

2 Tese firmada: "Ajuizada ação coletiva atinente a macro-lide geradora de processos multitudinários, suspendem-se as ações individuais, no aguardo do julgamento da ação coletiva". Disponível aqui.

3 Razões do veto: "Da forma como foi redigido, o dispositivo poderia levar à conversão de ação individual em ação coletiva de maneira pouco criteriosa, inclusive em detrimento do interesse das partes. O tema exige disciplina própria para garantir a plena eficácia do instituto. Além disso, o novo Código já contempla mecanismos para tratar demandas repetitivas. No sentido do veto manifestouse também a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB."

4 Art. 117. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.

5 REsp 1.101.057-MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 7/4/2011

6 Agravos de Instrumento nºs 0085624-17.2020.8.19.0000 0088028-41.2020.8.19.0000, julgados em conjunto pela 9ª CC do TJRJ em 10/08/2021

7 Súmula 608 - Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão.

8 - PESSOA, Fernando, in "Fascismo, a ditadura militar e Salazar", Lisboa, Tinta da China, 2017, p. 357. 

Bruno Di Marino

Bruno Di Marino

Bacharel em Direito pela PUC/RJ. Mestre em Teoria Geral do Estado e Direito. Constitucional pela PUC/RJ. Advogado do escritório Basilio Advogados.

Marcos de Campos Salgado

Marcos de Campos Salgado

Advogado e sócio do Basilio Advogados.

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