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Guerra judicial como violência de gênero institucional: mulheres vítimas de violência no contexto da Lei Maria da Penha se tornam rés

"Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes das minhas."

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Atualizado às 12:14

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

O combate da violência doméstica e familiar contra a mulher encontra um enorme obstáculo na obtenção dos registros de violência e posterior persecução penal. Os motivos que levam as mulheres a não realizar as denúncias são inúmeros e devem ser observados e compreendidos para que estas se sintam cada vez mais amparadas e confortáveis para seguir em frente com a identificação de situações e violência e denúncias, um dos motivos mais pertinentes para o não registro dos casos é com relação a culpabilização da vítima, que acaba sofrendo da sociedade o julgamento e a responsabilização por se encontrar naquela situação. Sabe-se, portanto, que o número de subnotificações de casos de violência doméstica no Brasil é bastante alto e não reflete totalmente a realidade dos casos.

As mulheres que decidem enfrentar os abusos sofridos e seguir com a denúncia, entretanto, têm sofrido um obstáculo ainda pouco discutido e que deriva dessa culpabilização que impede as vítimas de seguir com as denúncias. Em muitos casos, após a denúncia ser concretizada e ao longo do seguimento do curso processual, o jogo se inverte, e as vítimas se encontram na outra ponta do processo, como acusadas. As denúncias ajuizadas contra as vítimas variam entre calúnia, injúria, difamação, todas com base na violação de direitos de dignidade e honra dos autores da violência doméstica e em alguns casos, de outras partes que possuem ligação direta com o agressor.

O que se observa é quase como uma tentativa de vingança contra as vítimas que decidem ir em frente com as denúncias dos abusos sofridos decorrentes de violência doméstica, por vias legais. Há casos, em que não se vislumbra nem mesmo a possibilidade de seguimento das queixas, uma vez que não se encontram os requisitos necessários para a configuração do crime, ficando, portanto, uma tentativa de reprovação simbólica contra a mulher que denunciou seu agressor. Um caso que tem ganhado bastante atenção midiática é o caso de violência doméstica sofrido pela atriz Duda Reis (Maria Eduarda Reis Barreiros), praticado por seu então namorado, o cantor Nego do Borel (Leno Maycon Viana Gomes). O cantor é acusado de estupro de vulnerável, ameaça, injúria, lesão corporal, violência doméstica e transmissão de HPV, ocorridos ao longo de seu relacionamento com Duda. Após a acusação, a defesa de Nego do Borel ajuizou queixa-crime contra Duda, alegando injúria e difamação pelas acusações da atriz realizadas em sua conta de Instagram. A queixa-crime foi rejeitada tendo em vista o decurso do prazo decadencial para o registro, de 6 meses.

Nesse sentido, é necessário analisar o real objetivo dos registros de queixas-crime contra vítimas de violência doméstica, que podem desencorajar as vítimas em seguir com as denúncias de violência doméstica e em alguns casos, até mesmo gerar consequências jurídicas para essas mulheres, nos casos em que o contexto fático não fique bem claro e os papéis de vítima e acusado não se encontrem bem delimitados.

A estratégia processual de reforçar o abuso e o poder contra as vítimas de violência doméstica, realizada pelos agressores ou partes diretamente ligadas aos agressores têm sido cada vez mais comum no âmbito do poder judiciário e pode ser denominada como litigância abusiva. Embora o termo ainda seja pouco explorado, é possível identificar a prática com bastante clareza nos processos em que as mulheres figuram com vítimas de violência, e é preciso estar atento para que este estilo de conduta processual não alcance seu objetivo, qual seja, reforçar o papel da vítima como inferior e invalidá-la.

A violência de gênero é um fenômeno social, difuso, cuja complexidade ainda não conseguiu ser apreendida pela lei penal e, consequentemente, pelos atores do sistema de justiça criminal. A Lei Maria da Penha (lei 11.340/06) não cuidou de descrever tipos penais, mas, procurou descrever o contexto em que a violência se manifesta, em seu artigo 5º, para ser qualificada como violência doméstica, familiar ou no âmbito das relações de afeto, como espécie de violência de gênero. O esforço da lei é o de evidenciar que o demarcador fundamental dessa criminalidade é a relação de domínio e poder, que se estabelece entre ofensor e vítima, marcada pelas regras de status do gênero. A partir dessa relação, as condutas podem ser tipificadas no Código Penal ou em leis esparsas.

O Direito Penal, como âmbito do Direito Público, foi concebido a partir da ideia da persecução de condutas que representassem ameaça ou dano à acumulação de patrimônio, conforme nos ensina Alessandro Baratta (1999): "O direito penal é um sistema de controle específico das relações de trabalho produtivo, e, portanto, das relações de propriedade, da moral do trabalho, bem como da ordem pública que o garante" (In CAMPOS, Carmen Hein de. (Org.). Criminologia e Feminismo.). Não estava o Direito Penal destinado à intervenção nas relações da vida privada, ou, ao menos, não ao ponto de subverter o regime patriarcal, já que o próprio sistema penal é integrativo deste regime: "Juntamente com outros sistemas da esfera pública, o penal contribui, inclusive de modo integrativo, com o sistema de controle informal que age nas esferas privadas, na reprodução das relações iníquas de gênero" (BARATTA, Alessandro, In CAMPOS, Carmen Hein de. (Org.). Criminologia e Feminismo.). É nesse contexto que se dá a criminalização do aborto, inclusive, como mecanismo de controle dos corpos femininos. O Estado-Penal toma para si o corpo das mulheres.

Os estudos da criminologia crítica e criminologia feminista denunciam, assim, que o sistema de justiça criminal tem uma vocação a ser muito mais um dispositivo para a manutenção das estruturas que sustentam o regime patriarcal, do que para enfrentá-lo.

No Brasil, as relações da vida privada - sob o signo da violência doméstica e familiar - não eram nominalmente tuteladas até 2003, quando o Código Penal, passou a descrever o crime de lesão corporal no âmbito das relações domésticas e familiares, em seu artigo 129, §9º. Foi, entretanto, a Lei Maria da Penha, em 2006, que teve o êxito de trazer a descrição da violência doméstica e familiar contra a mulher como opressão de gênero, e a invocar especial tutela penal, por meio de juizados com competência própria, os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a mulher.

Portanto, apesar de nada honrosa, o status de vítima de violência doméstica e familiar é uma conquista para as mulheres no âmbito do Direito Penal, posto que é a superação do dito popular "em briga de marido e mulher não se mete a colher": no Brasil, apenas a partir de 2006, com o advento da Lei Maria da Penha, é que o direito humano das mulheres de viver sem violência no âmbito das relações privadas, tal como preconizado na Convenção de Belém do Pará (1994), ganhou dignidade de bem jurídico penal:

Nesse sentido, os movimentos feministas que agendam suas pautas de reconhecimento e redistribuição de direitos através dos processos de criminalização, reivindicam que enunciar uma conduta de violência contra as mulheres enquanto crime é um recurso de valorar corpos e, portanto, é estar incluída enquanto bem jurídico relevante de tutela num Estado garantidor de direitos (MARTINS, 2021)

Entretanto, trata-se de uma proteção em um ambiente - o penal - organicamente demarcado pelo machismo e misoginia, daí a dificuldade dos atores do sistema de justiça criminal em superar essas condições estruturais que permeiam as relações, por conta da norma hierárquica imposta pela categoria do gênero. Sabe-se que a mulher que se coloca na condição de vítima na persecução penal acaba por sofrer revitimização, a chamada vitimização secundária, com os mesmos ingredientes machistas, perversos, que a fizeram vítima primária do delito.

Ou seja, o sistema de justiça criminal, como integrado aos dispositivos de controles patriarcais, reproduz, a seu turno, práticas e valores que não reconhecem na mulher um indivíduo autônomo, independente, sujeita de direitos, ainda mais sob o rótulo de vítima: mesmo que a pretexto de proteger, o sistema não deixa de ser violento.

Essa desconfiança com o processo penal pode ganhar potência com o uso abusivo da própria máquina estatal de persecução criminal por parte de homens que se veem na condição - para eles inimaginável - de investigados, acusados por crimes de violência de gênero: postula-se uma queixa-crime contra a mulher, acusando-a de condutas como calúnia (art. 138 do Código Penal), ou tenta-se convocar a atuação do Ministério Público para oferecer denúncia pelo tipo penal da denunciação caluniosa (art. 339 do Código Penal).

Com esta postura, o agressor reivindica para ele a condição de vítima, e assume uma postura de contra-ataque à investida da mulher em procurar as autoridades penais. O agressor convoca a intermediação penal a favor dele, pressionando o sistema de justiça criminal a enquadrar a mulher também como ofensora.

Trata-se de nova violência de gênero, pois se converte em espoliação: a espoliação da condição de ser vítima, de ser protegida, de ter reafirmado o seu status de sujeita de direitos pelo Estado-Penal. Tal situação se agrava exponencialmente nas circunstâncias, muito comuns, em que a mulher, já fragilizada, carente de recursos financeiros em razão da própria ruptura da relação conjugal, amorosa, não tem acesso a advogadas e advogados que possam orientá-la a respeito da possibilidade de elas, então, se transformarem em investigadas, rés.

Nessa situação, a vitimização secundária (para a mulher) ganha contornos de uma sofisticação perversa que só é possível nessas condições estruturais, como o machismo. A estratégia da culpabilização da vítima transpõe as narrativas dos autos processuais em que a mulher figura com vítima e se projeta para uma nova demanda judicial, impondo a ela que reúna mais recursos, materiais e emocionais, para pagar o preço por ter procurado as autoridades penais.

E, talvez mais importante: o novo processo, imputando à mulher a conduta descrita como calúnia ou denunciação caluniosa, acaba sendo encaminhado a um juízo em que não será colocada, necessariamente, a perspectiva de gênero, ou, no mínimo, o rol de medidas de proteção aplicadas nos Juizados de Violência Doméstica dos crimes contra as mulheres, criado e instituído pela Lei Maria da Penha. Ou seja, com esta manobra, os acusados de crime de violência doméstica e familiar, pretendem afastar as conquistas jurídicas que estariam a favor da mulher-vítima, sob o enfoque da perspectiva de gênero, tal como convocado pela lei 11.340/06.

Nesses casos, é imperioso que o sistema de justiça criminal, considerando o devido processo com enfoque de gênero e o recém-lançado Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, pelo Conselho Nacional de Justiça, se organize para não permitir que seus dispositivos sejam cooptados com o objetivo de manipular e controlar os comportamentos de uma mulher que está na condição de vítima de violência doméstica e familiar: eventual lide penal imputando a mulher as condutas de calúnia ou denunciação caluniosa devem ser rechaçadas, ou no máximo, suspensas, aguardando-se o desenrolar dos autos que apuram a violência de gênero.

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BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In CAMPOS, Carmen Hein de. (Org.). Criminologia e Feminismo. (pp. 19-79). Porto Alegre: Sulina, 1999

JUSTIÇA do rio rejeita queixa-crime de nego do borel contra duda reis. Disponível aqui. Acesso em: 23, set. 2021.

LEI MARIA DA PENHA: subnotificações escondem número real da violência. Disponível aqui. Acesso em: 22, set. 2021.

MARTINS, Fernanda. Feminismos Criminólogos. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021, pág. 100

Alice Bianchini

Alice Bianchini

Advogada. Vice-Presidenta da Comissão Nacional da Mulher Advogada - CFOAB. Vice-Presidenta da Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas - ABMCJ. Conselheira Notório Saber do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher - CNDM. Doutora em Direito Penal pela PUC/SP. Coordenadora da Pós-Graduação Direito das Mulheres (www.meucurso.com.br)

Camila Milazzotto Ricci

Camila Milazzotto Ricci

Advogada Criminalista. Coordenadora Adjunta do Grupo de Estudos Avançados "Gênero, Crime e Diversidade", do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Professora Universitária e Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Assis Gurgacz - FAG, em Toledo-PR. Coordenadora dos grupos de pesquisa Elza Soares e Fronteiras do Gênero, da FAG TOLEDO-PR, sobre violência de gênero.

Mariana Lopes da Silva Bonfim

Mariana Lopes da Silva Bonfim

Advogada. Mestranda em Direitos Humanos e Políticas Públicas pela PUC Paraná. Presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB/PR e Membra Consultora da Comissão Nacional da Mulher Advogada do CFOAB.

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