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O Brasil está no rumo da universalização do saneamento?

O amplo conjunto de evidências acerca da trajetória de sistemas de saneamento, no Brasil e no exterior, sugerem que a era inaugurada no País com o início da vigência do MLS deverá ser benéfica para certas regiões e populações, podendo ser ineficaz ou mesmo prejudicial para outras. Para que os avanços prevaleçam, precisaremos saber lidar com fatores para além da lógica formal da legislação.

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Atualizado às 07:30

(Imagem: Arte Migalhas)

O novo Marco Legal do Saneamento Básico foi sancionado pela Presidência da República em 15 de julho de 2020 e o Superior Tribunal Federal, por decisão majoritária, atestou sua plena constitucionalidade em 2 de dezembro de 2021. Desde que entrou em vigor, a nova legislação vem propiciando avanços na privatização de serviços, tendência que, com a maior segurança jurídica provida pela decisão do Supremo, deverá, doravante, se ampliar.

Para que as mudanças em curso configurem um movimento eficaz no sentido do cumprimento das metas de universalização, até 2033, estipuladas pela nova lei, questões decisivas precisam ser identificadas, compreendidas e enfrentadas. Desafios que aumentam na medida em que foram negligenciados ou insuficientemente tratados no debate público acerca do novo marco legal, dominado por argumentos simplistas em favor de uma solução privatizante, "de mercado".

O resultado do julgamento da constitucionalidade da nova legislação pelo Supremo, se, por um lado, proveu mais segurança jurídica para investidores, planejadores e gestores, por outro acrescentou novos pontos de preocupação, sobretudo em relação ao pacto federativo.

Apresentarei a seguir um resumo das novidades e mudanças trazidas pelo novo Marco Legal do Saneamento, bem como uma breve análise do julgamento no STF e questões decisivas para que os rumos do setor possam realmente levar o País à superação do seu grande déficit civilizacional e socioambiental na área do saneamento básico.

Privatizações e investimentos

A vigência do novo Marco Legal do Saneamento (que passarei a designar pela sigla MLS), articulada a novas fontes de recursos públicos criadas para alavancar o avanço da iniciativa privada no setor - com destaque para o papel do BNDES na estruturação de leilões vinculados a linhas de financiamento -, vem gerando resultados expressivos em termos de perspectivas de investimentos.

De acordo com o Ministério da Economia, nos 12 meses entre outubro de 2020 e setembro de 21, os projetos de saneamento em fase de contratação na carteira do BNDES alcançaram a cifra de R$ 35,3 bilhões - montante cerca de dez vezes maior que a média de R$ 3 bilhões anuais registrada nos anos anteriores.

Em vários estados - Alagoas, Amapá, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro -, sobretudo por meio do modelo de concessão, plenas ou parciais, mas também de parceria público-privada (PPP) e subdelegação, importantes blocos territoriais anteriormente a cargo de empresas públicas de saneamento passarão a ser atendidos por agentes privados.

A adesão aos modelos de prestação de serviços de saneamento previstos no MLS e incentivados por oferta ou promessa de recursos federais deverá avançar em 2022, em vários estados. No Rio Grande do Sul, por exemplo, os serviços hoje prestados pela Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) deverão passar a ser integral ou parcialmente prestados pelo setor privado.

Seguindo determinação do marco legal, governos estaduais já definiram mais de 100 blocos territoriais cujos serviços de saneamento deverão ser disputados conforme o modelo concorrencial consagrado pelo MLS. A confirmação da disponibilidade desses lotes para editais e leilões depende agora da adesão - até o fim de março de 2022 - dos municípios que os integram.

Somados, os recursos que deverão ser aportados ao longo da vigência das concessões leiloadas no Rio de Janeiro, Amapá e Rio de Janeiro atingem R$ 47,3 bilhões. Com outras dezenas de bilhões de reais em investimentos projetados por contratos já firmados ou que deverão ser definidos e disputados em breve, entusiastas do MLS estimam que o Brasil consiga nos próximos anos atingir e manter os investimentos em patamar suficientes para o atingimento das metas de universalização até 2033.

Aposta de risco

O aumento de aporte de capital - seja público e privado - é não só bem-vindo como indispensável para a necessária expansão da infraestrutura e dos serviços de saneamento rumo à universalização. Mas para que maiores investimentos se sustentem ao longo da próxima década e resultem no atingimento dessa grande meta nacional, a eficácia dos modelos de prestação de serviços, dos meios de financiamento do setor, das fórmulas de subsídio às populações de menor poder aquisitivo e dos sistemas de regulação, acompanhamento e cobrança de metas será posta à prova.

A aposta do novo MLS para acelerar e sustentar a expansão dos sistemas de saneamento se concentra na abertura de oportunidades e articulação de incentivos para o setor privado. Trata-se de uma fórmula "pró-mercado" (ainda que essa ideia demande qualificação e ressalvas, pois refere-se a serviços públicos que, no âmbito da sua prestação têm natureza monopolista, e cuja viabilidade econômica e eficácia social dependem muito de regulação e financiamento públicos) ao estilo da onda privatizante que prometia revolucionar os serviços públicos nas últimas décadas do século passado. Os principais riscos dessa aposta decorrem do gradual desmonte e provável eliminação do modelo que hoje organiza a maior parte dos melhores e mais consistentes sistemas regionais de saneamento do país: o dos contratos de programa.

Funcionam sob o modelo dos contratos de programa empresas públicas ou de economia mista controladas pelos poderes públicos estaduais como a Sabesp paulista. Por essa fórmula, os sistemas são pensados e geridos regionalmente, permitindo planejamento e gestão que integre os diversos interesses públicos implicados no saneamento, como a máxima cobertura populacional - com tarifas subsidiadas para os mais pobres -, promoção da saúde pública, preservação de mananciais e equilíbrio ambiental.

Outra característica do modelo dos contratos de programa é que, sem ferir a titularidade municipal do saneamento, oferece a muitos municípios desprovidos de recursos para elaborar e gerir planos qualificados de saneamento a possibilidade de adesão a sistemas regionais operados por companhias sob controle do poder público estadual, propiciando solidez econômica, benefícios socioambientais advindos da gestão regional integrada e ganhos de escala.

É verdade, sem dúvida, que o bom funcionamento de contratos de programa em várias regiões do país não cancela a necessidade premente de busca por alternativas para levar saneamento de qualidade para as muitas localidades e regiões ainda desassistidas ou precariamente atendidas. Contraste que se pode constatar, por exemplo, comparando-se os cenários de São Paulo e do Brasil. No estado mais rico da federação, 96% da população recebe água tratada, 90% conta com coleta de esgoto e 65% com esgoto tratado. No país todo, 84% das pessoas recebem água tratada e 54% contam com esgotamento sanitário, sendo que quase a metade dos esgotos existentes são tratados.

O novo MLS instaura um sistema normativo que, se não inviabiliza imediatamente os contratos de programa, impede que novos sejam firmados e impõe condições e prazos-limite de duração para os atualmente em vigor. Estratégia que visa à abertura dos mercados regionais mais atraentes economicamente para concorrências com participação da iniciativa privada, evidencia o principal risco da fórmula privatizante em vigor ao induzir o desmonte de um modelo estruturado, testado e exitoso em boa parte do País.

Em dezembro de 2021, anunciou-se um primeiro embate entre o espírito privatizante da nova legislação e interesses estaduais e municipais no sentido da continuidade de contratos de programa. A Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar), empresa que, a exemplo da Sabesp, tem ações negociadas em bolsa de valores com controle acionário do governo estadual e dá exemplos de excelência na prestação de serviços, atrelou a atualização dos seus contratos segundo as regras e metas do MLS à sua prorrogação até 2048, argumentando necessidade de equilíbrio econômico-financeiro advinda da própria atualização. Esse arranjo é visto por defensores do MLS como forma de burlar o novo modelo vigente.

As decisões que serão tomadas em relação a conflitos como o que se anuncia no Paraná serão decisivas para os rumos do setor do saneamento nos próximos anos. Mais que isso, poderão abalar o pacto federativo fixado na Constituição.

Aprovação e dissidência no Supremo

No início de dezembro, o STF concluiu julgamento de quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), afirmando, por maioria de 7 votos a 3, a plena constitucionalidade do novo Marco Legal do Saneamento. Nos votos proferidos pelos magistrados que compuseram a maioria, ecoaram argumentos que proveram, ao longo dos últimos anos, no Congresso e mídia, a adoção do MSL.

Unanimemente, os ministros expuseram o grande e grave e atraso nacional no campo do saneamento - déficit de cidadania, de efetividade de direitos constitucionais, humanos e sociais, de saúde pública e de gestão ambiental, além de obstáculo para o desenvolvimento socioeconômico. Concordando se tratar de situação intolerável, os dez magistrados reconheceram a urgência de medidas capazes de colocar a nação, o mais rapidamente possível, no rumo para a universalização dos serviços.

A partir dessas constatações - irrefutáveis dentro de marcos civilizados -, a decisão majoritária e vencedora, no sentido de não dar provimento a nenhum dos pedidos constantes das ADIs, baseou-se em argumentações mais questionáveis. Em síntese, a compreensão político-jurídica prevalecente foi a de que, se o déficit nacional do saneamento vem se perpetuando sob a predominância de um determinado modelo de prestação de serviços, isso por si só é prova suficiente da inadequação generalizada do referido modelo. Assim se justificaria a abolição, ainda que gradual, do referido modelo em todo o País - mesmo em regiões onde vem funcionando a contento e apesar de essa imposição configurar inédita supressão da autonomia constitucional de entes federativos.

Segundo a decisão majoritária do Supremo, o Legislativo Federal pode cassar a autonomia de municípios para escolher entre as diversas formas validadas pela Constituição de prestação de serviços públicos sob sua titularidade. Cerceamento justificado em três etapas argumentativas: (a) a realidade atual é intolerável, (b) essa realidade decorre essencialmente do modelo vigente, (c) o novo modelo, privatizante, é melhor porque trará mais recursos e eficiência para a expansão do sistema e prestação dos serviços.

A primeira parte do raciocínio é correta, necessária e mostrou-se consensual na corte. A segunda expressa certo simplismo formalista e carente de comprovação fática (uma vez que, entre modelos legais e prestação de serviços públicos, há condições decisivas de efetividade que não decorrem automaticamente da letra da lei, com destaque para vontade política, investimentos e gestão), além de desconsiderar diferentes resultados de um mesmo modelo em regiões e condições distintas.

Como disse o ministro Fachin no seu voto (que abriu a dissidência, seguida por Weber e Lewandowski): "não há como compreender que a prestação direta do serviço seja necessariamente a única responsável pela precariedade da situação do saneamento no país, nem a privatização por si só assegura de antemão adequada prestação do serviço público, nem mesmo deve ser demonizada a prestação direta, mormente diante da tendência de estatização dessa modalidade de serviços verificada em muitos países."

A terceira ideia-chave no raciocínio básico em defesa do MLS, da evidente vantagem de um modelo privatizante, mostra-se marcadamente ideológica quando genérica e desprovida de evidências específicas. Generalizada, essa ideia não corresponde ao variado cenário brasileiro e internacional do saneamento, repleto de bons e maus exemplos públicos, privados e mistos - contendo, inclusive, muitos exemplos de regiões e localidades que privatizaram a prestação de serviços, mas vêm optando pelo retorno a modelos estatais ou a arranjos encabeçados pelo poder público.

Com base nessa visão, pragmaticamente matizada e atenta à higidez do pacto federativo, os três ministros dissidentes Edson Fachin, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski, apresentaram votos que reconhecem a constitucionalidade da maior parte do MLS, respeitam e saúdam a busca por mais participação privada no esforço de superar o vasto déficit de saneamento no País. Mas que, dando provimento parcial aos pedidos das ADIs, consideram inconstitucionais somente partes da nova legislação que colidem com prerrogativas constitucionais dos municípios.

Referindo-se ao grave déficit do saneamento no País, o ministro Fachin frisou que "a divergência que há é em relação aos remédios para curar a doença". Em seguida, deixou clara a gravidade do risco implicado na declaração de plena constitucionalidade do novo marco legal: "violando a autonomia dos entes federativos, nomeadamente dos municípios, estamos curando a doença matando o doente".

Se tivessem prevalecido, os votos dissidentes liberariam os municípios para adotar o modelo concorrencial promovido e incentivado pelo novo marco legal, para optar pela prestação direta ou por meio de convênios e consórcios (alternativas previstas no MLS), e também para firmar e manter contrato de programa, desde que incorporassem as metas de expansão e universalização estipuladas pela nova legislação. Como foram vencidos por folgada maioria, a lei em vigor continuará impondo veto ou limitações significativas a essa terceira opção.

Realidade dos desafios

O mundo vive uma crise de paradigmas de desenvolvimento. Impasse que se revela especialmente grave quando qualificamos o sentido de "desenvolvimento" incluindo avanços socioambientais e democráticos - campos nos quais danos, retrocessos e ameaças vêm se avolumando. E esses desafios globais são, hoje, especial e urgentemente brasileiros.

A atual explicitação das limitações e dos desequilíbrios do paradigma neoliberal - e, especialmente, das promessas de desenvolvimento includente por meio da privatização dos serviços públicos, que teve seu auge nas últimas décadas do século passado - não resultou ainda na consagração de um novo modelo.

Diante da urgência da universalização do saneamento no Brasil, não seria razoável deixar de abrir caminho para atração de recursos e atores que possam colaborar nessa tarefa civilizacional e constitucional. Com todas os seus eventuais problemas, o novo Marco Legal do Saneamento despertou a consciência de grande parte da sociedade brasileira para a premência do desafio e está atraindo significativos investimentos para o setor - avanços necessários e muito bem-vindos.

As lições da história recente não devem, de modo algum, nos colocar em oposição a esses avanços. Mas nos alerta no sentido de nos mantermos atentos em relação a soluções simplistas cuja lógica promocional expressa interesses particulares mais do que compreensões consistentes, lúcidas e inclusivas dos desafios nacionais.

O amplo conjunto de evidências acerca da trajetória de sistemas de saneamento, no Brasil e no exterior, sugerem que a era inaugurada no País com o início da vigência do MLS deverá ser benéfica para certas regiões e populações, podendo ser ineficaz ou mesmo prejudicial para outras. Para que os avanços prevaleçam, precisaremos saber lidar com fatores para além da lógica formal da legislação.

O atingimento das metas de universalização com sustentabilidade econômica e socioambiental - cujo desafio central é o atendimento adequado das regiões e populações mais pobres do País - demandará a liderança de um Estado estratégico qualificado e atuante. Precisamos desenvolver e aperfeiçoar sinergias entre público e privado, arranjos consistentes de financiamento a longo prazo, mobilização cidadã e participação democrática. Devemos também cobrar a priorização do saneamento no ciclo eleitoral de 2022 e nas políticas públicas que serão implementadas pelos eleitos.

Rubens Naves

Rubens Naves

Advogado, ex-professor de Teoria Geral do Estado da PUC-SP, coordenador do livro Organizações Sociais - A construção do modelo (ed. Quartier Latin), sócio titular do escritório Rubens Naves Santos Jr. Advogados.

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