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Formalização de contratos - Cuidados para segmentos sensíveis ou que necessitem de força de cobrança

O cuidado na negociação e formalização de contratos, das mais distintas naturezas, deve envolver todo o work flow dos processos de contratação, seja física ou eletrônica, da empresa.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Atualizado em 26 de janeiro de 2022 10:38

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

"O propósito das leis não é proporcionar a verdade das opiniões, mas a segurança e proteção da comunidade, e da pessoa e dos bens de cada homem particular." John Locke1

Empreendimentos necessitam de seu devido giro comercial/financeiro. Este ciclo natural, tanto na venda de produtos quanto na prestação de serviços (ou em uma operação que una ambas as naturezas, como em muitas franquias empresariais que prestam serviços e vendem produtos), envolve determinada contratualização, seja por meio de documentos físicos/impressos, seja pelo crescente uso de contratação digital/eletrônica. O contrato tem a finalidade de criar, modificar ou extinguir relação jurídica patrimonial, mas determinados cuidados devem ser adotados em função de regras jurídicas ou de necessidade de procedimentos de cobrança.

"O descuido com a formalização de contratos muitas vezes acarreta não somente a dificuldade no procedimento de cobrança, como pode colocar o próprio crédito em risco, por permitir ao devedor manobras de defesa e escusas diversas."

A manifestação de vontades, quando decorrentes de um acordo entre partes requer que o mesmo seja formalizado. Os exemplos são diversos: pode ser uma venda e compra de um bem móvel ou imóvel (aqui são maiores as formalidades legais), compra de insumos, aquisição de um serviço, licenciamento de algum direito de propriedade intelectual, ou até mesmo no caso de um termo de confidencialidade. Na lição de João de Matos Antunes Varela, "o preceito basilar que serve de introdução à teoria dos contratos é o da liberdade contratual"2. Em todos os casos, além de ser importante estar tudo alinhado e bem regulamentado com o que foi negociado, é importante para garantir a segurança das partes que certos requisitos sejam observados.

Superada a negociação preliminar, as partes devem firmar e formalizar a relação por meio de contrato. Na base, os primeiros requisitos que devem ser observados são os chamados requisitos de validade. Nos termos do CC/02 (e a regra aplica-se a qualquer tipo ou modalidade de contrato), para que um contrato seja considerado válido, três regras estabelecidas no art. 104 devem ser verificadas: agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prevista ou não vedada em lei. Para as partes, o agente deve ser capaz, conceito que vai além da capacidade física, e relaciona-se à capacidade de entender e realizar o ato, a chamada capacidade civil. Neste ponto, a falta deste requisito gera a invalidade do negócio jurídico, tornando o contrato nulo (art. 166 e 167, CC/02), ou no caso de incapacidade relativa, o contrato é anulável (art. 171, CC/02). Sobre o objeto, ele deve ser lícito, possível, determinado ou determinável, ou seja, o objeto da contratação deve envolver algo ou uma execução que obedeça aos conceitos legais e sociais não contrariando a lei, deve ser viável sua materialização e ser ou pode ser determinado pelas partes. Sobre a forma, existe a necessidade de que o ato respeite a forma exigida em lei ou não seja proibida por ela.

Um contrato para ser crível, confiável e executável deve observar o rito próprio e ter relacionada toda documentação necessária. É preciso, em sua gênese, identificar muito bem as partes envolvidas (qualificação das partes), com nome completo, nacionalidade, estado civil, profissão, documento de identidade e CPF (boa prática incluiria local de nascimento, telefone e e-mail de contato), e naturalmente o endereço de domicílio de todos que estão envolvidos no evento. Sem esses elementos básicos necessários, em eventual caso de judicialização, certamente será mais difícil encontrar as partes envolvidas para fins de citação e seguimento de um processo (judicial ou arbitral).

Não é demais alertar, para o devido cuidado para com os dados pessoais utilizados na relação negocial, desde primeiras tratativas, até a conclusão, rescisão ou resolução do contrato (e obrigações pós-contratuais), especialmente, para o Brasil, tendo em conta os ditames da LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados, a lei 13.709/183. Referida norma dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural. Para a LGPD, é considerado dado pessoal toda informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável e dado pessoal sensível aquele sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural. O dado genético ou biométrico é aquele ligado às características físicas da pessoa, a exemplo da face humana. O conceito de tratamento de dados para a LGPD é tão amplo que as partes envolvidas devem dar total e devida atenção aos princípios, hipóteses de tratamento e correta observação das bases legais possível.

É vital uma correta e precisa descrição do que está sendo negociado. Um contrato elaborado e firmado é um fato que repercute diretamente no negócio, na economia e na sociedade. Num contrato de consultoria, por exemplo, é muito importante prever, além do escopo, fixar datas e prazos de etapas do trabalho, até para fins de marcação de conclusão de cada uma. Para o caso de venda e compra de imóveis, além de todos os detalhes do imóvel (dados da matrícula e de inscrição em cadastro de contribuintes municipal), o acordo deve regular todas informações do negócio, incluindo-se prazos, formas de pagamento, penalidades, e até como se dará a transmissão de posse e entrega das chaves.

Um ponto técnico de extrema relevância está ligado à possibilidade de execução. Uma formalidade que deve ser cuidada, pois será a chave de distinção entre uma ação de execução ou uma ação de cobrança para reclamar direitos e inadimplência de uma parte, é que o documento seja um título executivo extrajudicial (art. 784 do CPC). Tomemos o exemplo de um contrato rescindido, na qual o credor notifique a parte inadimplente cobrando multa sob pena de rescisão (e que não seja adimplido). Se o contrato estiver subscrito por duas testemunhas instrumentais, ele é título executivo extrajudicial e comporta ação de execução. Caso contrário, o rito é mais longo pela ação de cobrança. Além da celeridade, a grande vantagem é que na ação de execução, caso o inadimplente pretenda defender-se, sua defesa é chamada embargos à execução e, além da necessidade de caucionar o juízo para sustar os atos de execução, no processo haverá a inversão do ônus da prova. Ou seja, para se defender o ônus de provar que está certo é do inadimplente (e que geralmente não terá tal prova).

Existe variável relacionada aos contratos eletrônicos celebrados sem a assinatura de duas testemunhas instrumentais. O art. 784 do CPC determina que são títulos executivos extrajudiciais os documentos particulares assinados pelo devedor e por duas testemunhas instrumentais. Mas o STJ entendeu que tais contratos possuem validade jurídica e, portanto, podem ser executados, ao julgar um caso de execução de uma dívida decorrente de empréstimo firmado via contrato eletrônico, com assinatura digital das partes. Isso porque, no entendimento do STJ, a função das testemunhas instrumentais está relacionada a requisitos de segurança e autenticidade, e "a assinatura digital de contrato eletrônico tem a vocação de certificar, através de terceiro desinteressado (autoridade certificadora), que determinado usuário de certa assinatura a utilizara e, assim, está efetivamente a firmar o documento eletrônico e a garantir serem os mesmos os dados do documento assinado que estão a ser sigilosamente enviados" e neste sentido, reconheceu-se excepcional possibilidade da "executividade de determinados títulos (contratos eletrônicos) quando atendidos especiais requisitos, em face da nova realidade comercial com o intenso intercâmbio de bens e serviços em sede virtual" (ministro Paulo de Tarso Sanseverino)4.

"Os cuidados são distintos, mas a sem a devida contratualização, por forma escrita (ainda que eletrônica / digital), é sempre muito difícil, custoso e demorado provar o direito."

Sem o devido suporte legal, inúmeros problemas podem surgir ou complicar o exercício regular de direitos decorrentes de um acordo/contrato. Desde qualificação imprecisa ou incorreta com dados errados (endereço incorreto impede intimação), até regras e condições dúbias ou obscura que podem levar o juiz a divergir da interpretação esperada pela parte, com uma sentença que acabe por não contemplar todas as expectativas da parte demandante. E neste sentido, vale lição de Guilherme Godoi, que destaca que "custos de transação são uma realidade, a necessidade de institucionalização é imperativa, segundo as colaborações de parte dos teóricos. Em assim sendo, os custos de transação e os direitos de propriedade aparecem como conceitos centrais para o entendimento da realidade social, econômica e política"5. E neste sentido, os custos transacionais envolvem custos de negociação de contratos. Contratos com deficiências, sejam estruturais em cláusulas, sejam formais, em cumprimento de lei ou mesmo com ausência das assinaturas necessárias, podem acarretar, em última instância, dificuldades de execução e enforcement. Para Godoi, "a inexistência de mecanismos efetivos de enforcement pode até mesmo inviabilizar determinado conjunto de transações, dado o alto custo das mesmas quando os direitos de propriedade não estão garantidos"6.

Por fim, vale lembrar que a contratualização deve sempre avaliar os impactos financeiros, contábeis e fiscais, desde eventos quando o desembolso financeiro esteja desassociado do evento físico, até mesmo impactos sobre o que deve ser incluído ou não no objeto da contratação, dado que em determinados casos ora os elementos são agrupados e integram a base de cálculo de impostos e/ou contribuições, ora não. Esta preocupação, inclusive, está relacionada aos cuidados de efetiva demonstração da avaliação e valorização na precificação de produtos e serviços - e que podem impactar diretamente na rentabilidade e na correta alocação contábil dos recursos recebidos ou despendidos. Eros Grau traz lição de Carnelutti, ao retornar "à distinção entre dever e ônus ao colocar as noções de ato devido e ato necessário: ato devido é aquele que o direito objetivo impõe na tutela de interesse alheio; ato necessário, o que o direito objetivo exige de quem quer conseguir um certo fim, correspondente ao seu próprio interesse. No primeiro caso, o dever; no segundo, o ônus"7.

O cuidado na negociação e formalização de contratos, das mais distintas naturezas, deve envolver todo o work flow dos processos de contratação, seja física ou eletrônica, da empresa. A preocupação com custos de transação e alocação de recursos deve necessariamente envolver todas as questões contratuais, sejam os arranjos contratuais ex ante, seja o monitoramento ex post, inclusa toda a relação e responsabilidades pós-contratuais. O contrato, além da importância empresarial (segurança jurídica para as partes envolvidas), é um instrumento fundamental para a direção e gestão de negócios - e pode ser determinante para sucesso ou fracasso de determinado empreendimento.

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1 LOCKE, John. Carta sobre a Tolerância. Tradução de Adail Sobral. Petrópolis, RJ : Vozes, 2019, pág. 45.

VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Volume 1. 4a ed. Coimbra: Almedina, 1982, pág 214.

Lei 13.709/18. Disponível aqui

4 REsp 1.495.920/DF - STJ, no julgamento do REsp 1.495.920/DF, Terceira Turma, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 15/05/2018.

5 GODOI, Guilherme Canela de Souza. Direitos de propriedade, custos de transação e questões regulatórias. Revista Leviathan, nº 01, p. 155 - 180, Universidade de São Paulo (USP) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH ) São Paulo-SP, 2004, págs. 156.

6 GODOI, Guilherme Canela de Souza. op. cit, pág. 160.

GRAU, Eros Roberto. Notas sobre a Distinção entre Obrigação, Dever e Ônus. IN Revista Da Faculdade De Direito, Universidade De São Paulo, nº 77, págs. 177-183. Disponível aqui (recuperado), pág. 182.

Luís Rodolfo Cruz e Creuz

Luís Rodolfo Cruz e Creuz

Advogado. Sócio de Cruz & Creuz Advogados. Doutor em Direito Comercial pela USP (2019); Certificate Program in Advanced Topics in Business Strategy University of La Verne - Califórnia (2018); Mestre em Relações Internacionais pelo Programa Santiago Dantas UNESP/UNICAMP/PUC-SP (2010); Mestre em Direito e Integração da América Latina pelo PROLAM/USP (2010); LLM - Direito Societário, do INSPER (São Paulo) (2005); Bacharel em Direito pela PUC/SP. Autor do livro "Acordo de Quotistas - IOB-Thomson, 2007

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