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A responsabilidade civil na pesquisa com seres humanos

Promover a ponderação entre os interesses voltados para a evolução da ciência e aqueles concernentes à ampliação da qualidade da vida do ser humano através das pesquisas clínicas é fundamental, destacando-se a prevalência dos valores extrapatrimoniais em detrimento dos patrimoniais a fim de evitar agressões à humanidade, conforme ocorrido no passado.

quarta-feira, 23 de março de 2022

Atualizado às 13:15

 (Imagem: Artes Migalhas)

(Imagem: Artes Migalhas)

1.Introdução

De acordo com a ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, os ensaios clínicos são pesquisas que objetivam "descobrir ou confirmar os efeitos clínicos e/ou farmacológicos e/ou qualquer outro efeito farmacodinâmico do medicamento experimental e/ou identificar qualquer reação adversa ao medicamento experimental e/ou estudar a absorção, distribuição, metabolismo e excreção do medicamento experimental para verificar sua segurança e/ou eficácia".

Com efeito, percebe-se que os ensaios clínicos proporcionam o progresso científico e o subsequente avanço no tratamento de doenças, revelando-se um importante instrumento de melhoria das condições de saúde e bem-estar da população.   

Por outro prisma, a liberdade científica (art. 5, IX, da CF) possui limites estabelecidos na ordem constitucional, notadamente o direito à vida e à integridade psicofísica, bens jurídicos tutelados pelo princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1, III, da CF), base do sistema jurídico brasileiro.

Nessa toada, promover a ponderação entre os interesses voltados para a evolução da ciência e aqueles concernentes à ampliação da qualidade da vida do ser humano através das pesquisas clínicas é fundamental, destacando-se a prevalência dos valores extrapatrimoniais em detrimento dos patrimoniais a fim de evitar agressões à humanidade, conforme ocorrido no passado.

Historicamente, a mudança efetiva do olhar da sociedade em relação à pesquisa com seres humanos teve início na 2ª Guerra Mundial quando das atrocidades ocorridas nos experimentos nazistas1.

Por conseguinte, após o julgamento dos médicos nazistas responsáveis pelos cruéis experimentos realizados com seres humanos, com o escopo de evitar que tal fato pudesse ocorrer novamente, foi elaborado o Código de Nuremberg (1947), documento que se tornou um marco histórico da humanidade, estabelecendo diversas recomendações sobre aspectos éticos pertinentes à experimentação com seres humanos.2

Não obstante a importância do Código de Nuremberg, outro documento de cunho internacional foi formulado, a Declaração de Helsinque, a qual, dentre outras questões, buscou diferenciar a pesquisa médica terapêutica (que objetiva o diagnóstico ou terapia de determinado paciente) da não terapêutica (que visa adquirir conhecimento científico para desenvolvimento de determinado tratamento), assim como fincou o princípio da prevalência do interesse do individuo frente os interesses da ciência e da sociedade.3

Alguns casos marcantes sobre a experimentação com os seres humanos merecem destaque, tal como o Caso Tuskegee, em que foi realizada uma pesquisa médica com 600 homens negros, durante o período de 1932 a 1972, no estado do Alabama nos EUA. O objetivo da pesquisa era o estudo da sífilis, doença que acometia parte da população daquele local. No entanto, os participantes não sabiam que participavam de uma pesquisa, nem tampouco eram informados se possuíam ou não a referida doença. Em que pese a penicilina ter sido descoberta no período da pesquisa, possibilitando o tratamento da sífilis, os participantes não foram tratados.4

Em segundo lugar, vale ressaltar um evento de grande repercussão no Brasil, o caso da talidomida, uma droga desenvolvida na Alemanha para controlar a ansiedade, tensão e náuseas, mas que causou a malformação dos fetos nas mulheres grávidas, dentre outros problemas. Milhares de pessoas foram afetadas pelo uso da talidomida em diversos países do mundo, sendo este caso considerado como o maior desastre da história da medicina5.

Nota-se, portanto, que o desafio do interprete será o de salvaguardar a saúde, a integridade psicofísica e, de modo especial, a autodeterminação do participante da pesquisa, cruzando, durante este caminho, com os interesses humanitários, científicos e econômicos envolvidos nos ensaios clínicos.

2. Princípios e normas

Apesar de não existir lei específica sobre os ensaios clínicos6, além do Código de Nuremberg e a Declaração de Helsinque, os princípios bioéticos originários do Relatório Belmont e da obra Principles of biomedical Ethics de Beauchamp e Childress7, juntamente com o CEM - Código de Ética Médica8 as resoluções do CNS - Conselho Nacional de Saúde e Recomendações do CFM - Conselho Federal de Medicina9, também orientam e regulam as pesquisas.

Em relação aos princípios bioéticos, inicialmente, destaca-se o princípio da beneficência10, o qual dispõe sobre a obrigação ética de buscar, em primeiro lugar, o benefício do participante. Nesta linha, o princípio da não-maleficência11 versa que a ação do médico deve causar o menor prejuízo à saúde ao participante.

O princípio da autonomia12 está diretamente ligado ao direito de escolha do participante, à necessidade do seu consentimento livre e esclarecido em todas as fases da pesquisa. Já o princípio da justiça13 traz o dever ético de tratar os participantes de forma igualitária, inclusive de modo a distribuir as verbas da pesquisa de forma justa.

A resolução CNS 510/16 dispõe sobre o princípio da precaução14, visando tutelar o participante quando o ensaio clínico for capaz de causar uma ameaça grave ou irreversível15, com o intuito de minimizar os riscos que a pesquisa com seres humanos pode ocasionar16 

3. Sujeitos e fases

A resolução 466/12 denota os seguintes sujeitos envolvidos nos ensaios clínicos: o patrocinador17, o pesquisador18 o participante19, a instituição de pesquisa e a CONEP - Comissão de Ética em Pesquisa.

Os ensaios clínicos costumam possuir três fases, as quais iniciam com um número pequeno de participantes e crescem de acordo com a evolução do estudo. Na fase I, os participantes são saudáveis, enquanto que na fase II são enfermos e, na fase III, há uma mescla destes perfis. 

Uma questão tormentosa que circunda o participante da pesquisa refere-se à possibilidade de este ser remunerado, diante da autorização descrita na resolução n 466/12 para as hipóteses de pesquisas na fase I ou de bioequivalência. Sobre o tema, Heloisa Helena Barboza defende que o pagamento de participantes em pesquisas clínicas "destrói os laços de solidariedade, podendo culminar na promoção da mercantilização do corpo humano, conseguintemente tornando-o mais uma commodity na sociedade de consumo".

  • Confira aqui a íntegra do artigo.
Alan Sampaio Campos

VIP Alan Sampaio Campos

Sócio do escritório Safer Advogados. Pós-graduado em Direito Civil-Constitucional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestrando em Direito Civil-Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC - Rio).

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