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Interrogatório de réu foragido por videoconferência no tribunal do júri - Possibilidade

É legítimo condicionar o exercício do interrogatório à prisão do acusado com mandado de prisão expedido, considerando este ato como um benefício processual?

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Atualizado às 13:47

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Em decisão relativamente recente do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do HC 640.770/SP, asseverou-se que possibilitar o interrogatório de réu foragido por videoconferência, seria como premiar sua condição processual precária.

In casu, tratava-se de um crime de latrocínio, porém, será que este entendimento é o mais adequado?

Vamos estudar mais amiúde este questionamento, mas desta vez com os olhos voltados ao Tribunal do Júri.

É sabido que em se tratando de júri, está constitucionalmente assegurado pela alínea "a", do inciso XXXVIII, do art. 5º, da Constituição Federal, o princípio da plenitude de defesa.

Igualmente é sabido que o interrogatório, além de meio de prova para o processo, é também um meio de autodefesa, podendo o acusado calar-se seletivamente, calar-se em absoluto ou declarar sua versão, cabendo tal decisão somente a ele e sua defesa, não podendo o Estado obriga-lo a nada, nem tampouco impor qualquer ônus relativo à sua escolha.

Não raramente, vemos casos em que réus foragidos e com mandados de prisão expedidos e pendentes de cumprimento em processos de júri, têm sua autodefesa impossibilitada, uma vez que não podiam, até então, ter contato com os juízes do seu processo, júri, em interrogatório e assim exercer plenamente sua defesa.

Nossa vetusta legislação processual penal, condicionava o direito do acusado ao recurso à sua prisão caso condenado e expedido mandado para este fim, porém, com o passar dos anos e com o advento da Constituição cidadã, o diploma processual repressivo teve que ser modernizado para se compatibilizar com a nova realidade.

Hoje em dia, não se revela mais crível a prisão de alguém para ter direito a recorrer.

Em outros tempos, o acusado era ouvido no início da instrução processual penal, mas nos dias de hoje, sua palavra apenas ressoa nos autos e encontra seu lugar como ato de encerramento, assegurando-se o princípio da não-surpresa e boa-fé processuais.

Agora, mais uma vez, com o avanço inexorável do tempo e da tecnologia, o processo penal deve se adequar a fim de que se mantenha alinhado aos princípios constitucionais que devem norteá-lo.

O longo período de pandemia de covid-19 nos trouxe a pulso para uma realidade processual que não imaginávamos pudesse ocorrer tão cedo: a virtualização da justiça penal.

Isto demandou a alteração de legislação e regimentos, bem como a atualização de todos os agentes jurídicos, seja em matéria jurídico-normativa, seja em novas tecnologias.

Em relação ao processo penal, especialmente em júris, dia sim e dia também, se realizam audiências de instrução, debates e julgamento, virtualmente, em que todas as provas são produzidas pela via remota.

Tendo em conta este cenário, em um processo de júri, poderia o juiz negar a realização do interrogatório de um réu que se encontra foragido, durante o sumário de culpa e perante o plenário do júri?

Poderia o delegado deixar de ouvir o investigado suspeito da prática de um homicídio, somente porque o mesmo não se encontra no distrito da culpa, estando em local incerto e não sabido?

É necessário se analisar o caso concreto como um todo, pois nem todo foragido ostenta tal condição porque quer se esquivar da aplicação da lei penal. 

Existem notícias de incontáveis casos em que a pessoa se encontra "foragida", vivendo sua vida normalmente, sem sequer saber ter um mandado de prisão expedido em seu desfavor.

Existem outras situações em que o decreto de prisão se revela tão abusivo e absurdo, que há acusados que preferem manter-se longe dos braços do Estado para não experimentar as agruras do cárcere, desnecessária e injustamente.

Há circunstâncias em que se expede, por equívoco, mandado de prisão para uma pessoa, quando na realidade a medida constritiva de liberdade era para um terceiro indivíduo.  

Considerando os cenários acima, é justo e razoável dizer que o interrogatório remoto de um acusado ou de um investigado evadido, privilegiaria sua condição processual precária?

É possível concluir que todo e qualquer foragido está nesta condição para ter um pseudo privilégio a partir de uma falsa sensação de liberdade?

Não nos parece serem estas as conclusões mais adequadas.

Em primeiro lugar, porque o interrogatório não possui natureza jurídica de benefício ou prêmio processual para quem comparece ao processo, nem tampouco se trata de um favor do Estado ao cidadão, portanto, não existem condições legais para que seja possível seu exercício.

O interrogatório se constitui em um direito do investigado e do acusado, o qual não pode ser negado pelo Estado, nem tampouco condicionado seu exercício.

Nem os próprios acusados e investigados podem dispor de tal direito, uma vez que quando o silêncio é exercido, isto se dá em um auto de qualificação e interrogatório, em que se registra a vontade do cidadão em permanecer calado durante o interrogatório.

Ora, se é possível ler uma carta do acusado em plenário ou exibir um vídeo ou um áudio de sua autoria, gravado e juntado aos autos durante a plenária, desde que juntado nos autos tempestivamente, se é possível permanecer calado, por que não possibilitar seu interrogatório em tempo real por videoconferência?

O réu ao desejar ser interrogado, mesmo estando foragido, demonstra um legítimo interesse em contribuir com a justiça e isto deve ser levado em consideração.

Demais disso, a negativa da produção desta importantíssima prova, não encontra qualquer amparo legal.

Somente duas situações, em nosso ponto de vista, permitiriam a mitigação de um interrogatório virtual/remoto: impossibilidade física de falar, escrever e gesticular e/ou impossibilidade técnica.

Em assim sendo, considerando ser o interrogatório um direito e uma fase necessária para o desenvolvimento válido do processo e levando-se em consideração que no Tribunal do Júri vigora o princípio da plenitude de defesa, entende-se não ser possível qualquer restrição e/ou limitação ao exercício deste direito ao cidadão que manifestar o desejo em fazê-lo, mesmo estando foragido, virtualmente, ressalvadas as impossibilidades física e técnica.

Charles Cabral

Charles Cabral

Graduado em Direito pela UniFMU, Pós-Graduando em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS, em Direito Tributário pela PUC/RS e em Direito Empresarial pela FGV/SP.

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