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Regulamentação da cannabis medicinal no Brasil: avanços e obstáculos à concretização de direitos fundamentais garantidos pela Constituição

A garantia à saúde pública prevista em nosso Diploma Constitucional significa acesso universal e democrático a tratamentos médicos, isto é, todos os cidadãos e cidadãs tem o direito de receber recursos médico-hospitalares diversos, inovadores e qualificados.

quinta-feira, 7 de abril de 2022

Atualizado em 8 de abril de 2022 08:44

(Imagem: Arte Migalhas)

A legislação relativa à regulamentação da cannabis medicinal tem produzido avanços, ainda que por vezes tímidos, e certamente um dos destaques diz respeito à autorização para importação de produtos do gênero, primeiro e principal modal regulamentado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa em prol dos pacientes que buscavam adquirir tratamento médico por meio de ativos da cannabis, cujo acesso é restringido no Brasil.

Hoje a importação é regida pela Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 335, de 24 de janeiro de 2020, que estabeleceu novos critérios e procedimentos concernentes à referida aquisição, revogando as diretrizes anteriores, mais burocráticas, advindas da RDC 17, de 6 de maio de 2015.

Há alguns meses, as regras aplicáveis à importação de produtos canábicos para fins medicinais foram mais uma vez atualizadas, dessa vez pela RDC 570, de 6 de outubro de 2021, com o objetivo de simplificar ainda mais a legislação, tendo em vista o crescimento exponencial da busca pelo procedimento. A normativa trouxe como novidade a possibilidade de algumas importações receberem autorizações automaticamente. Caso o produto esteja listado em Nota Técnica emitida pela Gerência de Produtos Controlados da Anvisa, a autorização será liberada de forma imediata, sem a necessidade de trâmites internos mais demorados (art. 5º-A da RDC 335/2020, modificada pela RDC 571/2021).

Outra Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa, a RDC 327, de 09 de dezembro de 2019, chega a autorizar a fabricação no Brasil de produtos de cannabis destinados à finalidade medicinal, medida que aos poucos poderia trazer outras opções ao paciente diferentes da importação. Contudo, ainda não houve suficiente desenvolvimento do setor para baratear tal confecção e tornar o produto acessível, possivelmente em razão da rigidez dos processos industriais e do cultivo da planta em solo nacional ainda permanecer proibido pela agência.

Por outro lado, fervilham nas Casas Legislativas Brasileiras discussões sobre a garantia do tratamento por meio de ativos da cannabis àqueles pacientes que necessitam desses tipos de medicamentos para combater determinada enfermidade ou transtorno de saúde. As audiências públicas e reuniões parlamentares têm cada vez mais provocado o debate, especialmente quanto à regulamentação do uso medicinal da cannabis, à garantia de tratamento através da rede pública de saúde, ao fomento de pesquisas científicas sobre potenciais benefícios, e à própria descriminalização do uso da planta no Brasil.

Esses debates levaram à publicação da recente lei 11.055/22 pelo Estado do Rio Grande do Norte, que dentre outras questões, dispõe sobre o direito ao tratamento de saúde com produtos de cannabis e seus derivados. A Lei potiguar, em seu artigo 2º, estabelece como seus objetivos a garantia do direito à saúde, a promoção à educação em saúde e o incentivo à produção científica e ao desenvolvimento tecnológico.

É certo que o imbróglio envolvendo a regulamentação da cannabis medicinal ultrapassa a garantia de atendimento ao essencialíssimo direito à saúde. O estudo da planta também está fundamentado em direitos e garantias previstos em nossa Constituição da República, por vezes menos ressaltados, como o direito fundamental à expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5º, IX); a determinação de promoção e incentivo ao desenvolvimento científico, à pesquisa, à capacitação científica e tecnológica e à inovação pelo Estado (art. 218 e seguintes); e a previsão do desenvolvimento científico e tecnológico e da inovação como uma das atribuições do Sistema único de Saúde (art. 200, V).

A lei 11.343/06 (Lei de Drogas), no parágrafo único de seu artigo 2º, inclusive faz ressalva aos seus termos no sentido de permitir o estudo medicinal e científico de vegetais dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas, dependendo apenas de regulamentação pelo Poder Executivo, instância da qual a Anvisa faz parte.

A lentidão do Poder Executivo para produzir normas que verdadeiramente supram as demandas da população pressupõe a ação do Poder Legislativo referente à regulamentação do uso da planta. Enquanto o Congresso Nacional ainda não produziu uma Lei apropriada, os Poderes Legislativos Estaduais têm avançado na discussão, a exemplo da Lei do Rio Grande do Norte aqui mencionada, uma das últimas a entrarem em vigor no Brasil.

Outrossim, o Estado da Paraíba já publicou a lei 11.972/21, que fomenta o estudo e o tratamento medicinal com a cannabis, e no Estado do Rio de Janeiro houve a criação de política de prevenção da saúde e de incentivo às pesquisas científicas com cannabis medicinal, através da lei 8.872/20.

Em São Paulo, a Assembleia Legislativa do Estado implantou a Frente Parlamentar em Defesa da Cannabis Medicinal e do Cânhamo Industrial e desde o início deste ano tem promovido reuniões disseminando ideias sob diferentes aspectos relativas ao cultivo e uso medicinal de cannabis, como as possibilidades de tratamento, a posição do setor industrial médico, de tecnologia e informação e do cânhamo industrial.

De igual forma, tem tramitado na Assembleia Legislativa do Estado do Pernambuco o projeto de lei 3098/22, que trata do cultivo e do processamento da cannabis sativa para fins medicinais, veterinários, científicos e industriais, nos casos em que houver autorização por meio da Anvisa, pela legislação federal ou pelo judiciário. A proposição é inspirada nas Leis Estaduais aqui citadas e já conta com audiência pública encaminhada ao fim do mês de março.

Pelo que se observa, a discussão somente tem ganhado força nos últimos anos, fundamentada também na jurisprudência formada pelo judiciário em favor de pedidos de cultivo da cannabis por pacientes que dela necessitem. A demora do Congresso Nacional deu ensejo à ação dos Legislativos Estaduais e reação do Poder Judiciário, mas para o alcance de verdadeira segurança jurídica e real atendimento a direitos basilares do cidadão, é necessária forte, apropriada e eficaz cobertura legislativa federal.

Vale trazer que a garantia à saúde pública prevista em nosso Diploma Constitucional significa acesso universal e democrático a tratamentos médicos, isto é, todos os cidadãos e cidadãs tem o direito de receber recursos médico-hospitalares diversos, inovadores e qualificados, o oposto de uma política que restringe e recorta referida acessibilidade.

Por isso, a aprovação, ao menos, do PL 399/2015, em trâmite na Câmara dos Deputados, é crucial para a concretização do direito ao tratamento por cannabis medicinal, sem esquecer da salvaguarda ao incentivo tecnológico e às pesquisas científicas em nosso país. A proposição ainda não recebeu aprovação final na Câmara dos Deputados e precisa também passar pelo Senado Federal.

Maria Luiza Xavier Lisboa

Maria Luiza Xavier Lisboa

Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito Constitucional e Administrativo pela Escola Paulista de Direito - EPD. Advogada do escritório Celso Cordeiro & Marco Aurélio de Carvalho Advogados.

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