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O Brasil não se preparou para lidar com as patentes do 5G

Não há qualquer solução legislativa em território nacional.

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Atualizado em 3 de maio de 2022 09:29

(Imagem: Arte Migalhas)

Um mesmo problema técnico pode ser solucionado de diversas maneiras. Durante a pandemia da covid-19, em um curto espaço de tempo, o mundo viu o desenvolvimento de diversas vacinas que utilizam tecnologias e métodos diferentes para cumprir o mesmo papel: imunizar a população contra aquela doença.

Quando se fala em vacinas, o fato de existirem soluções distintas não é um problema, pois o resultado é o mesmo - a vacinação funciona de forma coletiva porque com um número significativo de pessoas imunizado, o contágio é reduzido, pouco importando quem tomou qual vacina. As tecnologias são compatíveis, por isso todos devem se vacinar com qualquer vacina disponível que tenha sido aprovada pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Por outro lado, em certas áreas, é preciso escolher uma solução e adotá-la como padrão. Imagine-se, por exemplo, se cada aparelho eletrônico viesse com um formato de tomada diferente ou se cada aeroporto do mundo utilizasse um sistema de comunicação diferente para conectar a torre de controle com os aviões. Seria catastrófico ou, no mínimo, muito caro adaptar a infraestrutura para acolher tantas tecnologias diferentes que performam a mesma função. Por esse motivo a padronização tecnológica é tão relevante.

Assim, agentes econômicos das mais diversas magnitudes se organizam entorno de organizações que têm como objetivo discutir e estabelecer os padrões tecnológicos de determinado setor. São as chamadas SSO (do inglês, Standard Setting Organizations), que incluem, por exemplo, a ISO (International Organization for Standardization).

Contudo, surge um problema nesse contexto. É comum que sejam patenteadas as tecnologias essenciais para a adequação de produtos e serviços às padronizações determinadas em normas expedidas pelas SSOs.

As patentes são direitos conferidos pelo Estado a particulares como forma de recompensar e incentivar os investimentos e os esforços empregados para desenvolver uma nova tecnologia. Se o particular conseguir demonstrar perante a autoridade competente (no Brasil, o INPI) que sua invenção (i) é nova, (ii) não é óbvia para um técnico no assunto e (iii) resolve um problema técnico real, receberá um título que lhe dá o direito temporário de impedir que qualquer terceiro use, produza, venda, oferte ou explore de qualquer maneira aquela tecnologia.

Apesar de serem criticadas por alguns setores da sociedade, as patentes são tão relevantes para o desenvolvimento socioeconômico do país que são consideradas um direito fundamental no Brasil, previsto diretamente pela Constituição da República. Mesmo nos Estados Unidos da América, em que a Constituição é enxuta e cuida apenas de poucos assuntos de grande relevância, as patentes são previstas no texto constitucional.

Não é à toa. Ocorre que, sem patentes, os investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento para certas soluções técnicas seriam inviabilizados. Particulares investem verdadeiras fortunas com o intuito de inventarem algo enquanto, muitas vezes, os custos de reproduzir uma tecnologia já inventada são muito baixos. Nesse sentido, enquanto o inventor precisa ofertar seu produto por um preço que compense seus investimentos no desenvolvimento da tecnologia, os competidores que simplesmente o copiaram poderiam praticar preços mais baixos. A longo prazo, essa dinâmica tiraria o inventor do mercado, desincentivando-o a voltar a investir para criar algo novo. Por isso, as patentes são tão importantes, mesmo aumentando o preço de um novo produto, que se justifica por conta do investimento feito: sem elas, não há incentivos para investir em inovação.

O fato, porém, é que uma patente confere grandes poderes ao seu titular, já que terá o direito de exclusividade para explorar aquela invenção, seja diretamente ou por meio de licenças. Esse poder se torna ainda mais forte quando se fala de uma tecnologia essencial para que os players de um mercado se adequem a uma regra de padronização tecnológica. Afinal, se uma regra impede um agente competidor de utilizar outra tecnologia para solucionar aquele problema técnico, todos dependerão de autorização do detentor daquela patente para entrar no mercado.

Esse, então, é o problema: como lidar com esse superpoder de um detentor de patente de tecnologia essencial, que efetivamente pode escolher quem disputará o mercado ou não? Não é exagero dizer que a forma como o Brasil lidará com essa pergunta poderá mudar os rumos do desenvolvimento econômico e tecnológico no país.

Com a adoção do 5G e com a popularização da Internet das Coisas (IoT, Internet of Things), em que tudo estará conectado, já se percebe no mundo um número crescente de casos judiciais envolvendo patentes essenciais. Afinal, se tudo estará conectado, essa conexão precisará ser feita de forma padronizada para que haja compatibilidade técnica entre os aparelhos.

Não é uma coincidência. Dados de um estudo realizado nos EUA  demonstram que, em 2015, já havia centenas de milhares de patentes declaradas como essenciais no mundo, de propriedade de mais de 2.000 empresas diferentes. O Brasil é o 12º país com o maior número de patentes declaradas essenciais, sendo sua esmagadora maioria relacionada ao campo das comunicações digitais, telecomunicações, tecnologias audiovisuais e de computação.

Nesse contexto, já em 2022, a Ericsson ajuizou uma ação em face da Apple, que pode até mesmo suspender as vendas do iPhone no Brasil. Em 2012, a própria Apple tentou impedir vendas da Samsung nos EUA por infração de patentes essenciais. Em 2019, a Apple e a Qualcomm (empresa de chips eletrônicos) protagonizaram uma verdadeira guerra global envolvendo questão semelhante.

A solução para essas disputas, em geral, vem sendo desenvolvida por empréstimo de uma teoria que nasceu nos Estados Unidos da América - a doutrina da essential facility. Em 1912, uma companhia ferroviária que controlava todas as pontes trilhadas da cidade de Saint Louis passou a não dar autorização para que outras companhias concorrentes atravessassem suas pontes. Com isso, efetivamente, aquela companhia detentora das pontes passou a ter o monopólio dos serviços ferroviários para entrar e sair da cidade. Por isso, a Suprema Corte decidiu, em um caso conhecido como United States v. Terminal Railroad Association, que aquele que detiver uma infraestrutura essencial aos demais competidores será obrigado a garantir o seu uso razoável, ainda que remunerado.

Em uma analogia, órgãos competentes do mundo todo (inclusive no Brasil) vêm utilizando a doutrina da essential facilities para patentes essenciais, onde as patentes seriam como as pontes de Saint Louis - sem usar as pontes, é impossível entrar e sair da cidade levando passageiros, assim como, sem usar a patente, é impossível produzir uma tecnologia dentro do padrão estabelecido pela SSO. Por essa razão, estabeleceu-se que aqueles que detém patentes essenciais são obrigados a licenciá-las em condições justas, razoáveis e não-discriminatórias (em inglês, costuma-se referir a essas condições como FRAND - Fair, Reasonable and Non-discriminatory).

É claro, porém, que esse sistema abre margem para as mais diversas discussões nos casos concretos. Como determinar o que é uma condição justa de licenciamento? Como determinar o que é razoável? Quem irá determinar se é ou não razoável? E o que é ou não discriminatório? E mais: em geral, as SSO requerem que os titulares declarem aquelas patentes que consideram essenciais para cumprimento das suas normas de padronização. Essa tarefa, porém, é tecnicamente complexa e permeada por interesses dos detentores e daqueles que querem ser autorizados a explorar a tecnologia (houve um notório embate acerca desse assunto para patentes entorno da tecnologia LTE de conexão sem fio).

No Brasil, há pouquíssima jurisprudência posta acerca do assunto. Em um caso envolvendo duas gigantes das telecomunicações, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) perdeu a oportunidade de estabelecer parâmetros claros a serem observados no futuro. Por parte do Judiciário, também não há precedentes que solucionam as possíveis complicações dos casos concretos, de modo que provavelmente elas terão que ser importadas de julgados estrangeiros. Mas, importar de onde? Dos EUA, com sua tendência pró-mercado? Da Europa, com sua tendência mais protetiva ao consumidor? Da Ásia, que lidera a corrida das novas tecnologias de comunicação?

A receita para a insegurança jurídica brasileira, como de costume, está posta: sabe-se que é quase inevitável o surgimento de novas ações judiciais debatendo tecnologias essenciais (principalmente envolvendo tecnologias entorno do 5G, como acaba de ocorrer entre Ericsson e Apple). Mas, não há qualquer solução legislativa em território nacional. É singular que ainda não esteja sendo realizado debate profundo acerca desse tema nas mais diversas esferas do poder, sobretudo no Legislativo.

Ao que parece, a não ser que haja uma reação por parte dos legisladores, a definição de uma questão que determinará os rumos do desenvolvimento tecnológico e econômico do país ficará sempre na mão de juízes, que têm formação jurídica, não em engenharia, telecomunicações ou outras áreas do conhecimento relevantes para o debate. Mais do que a receita para a insegurança jurídica, parece a guinada rumo ao ostracismo tecnológico brasileiro.

Pedro de Abreu M. Campos

Pedro de Abreu M. Campos

Advogado especialista em Propriedade Intelectual, mestrando em Direito Civil Contemporâneo e membro do Comitê de Copyright da INTA.

Gabriel Di Blasi

Gabriel Di Blasi

Engenheiro industrial, agente de propriedade industrial, advogado e sócio-sênior do Escritório Di Blasi, Parente & Associados.

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