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Segurança jurídica? A restritiva interpretação da compensação como defesa em embargos à execução fiscal

Considerando que os embargos à execução constituem ação autônoma, ainda que incidental, não pode haver óbice à sua admissão, em caráter de ação de rito ordinário, declaratória ou anulatória, atingindo-se a efetiva finalidade do ato.

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Atualizado às 07:38

(Imagem: Arte Migalhas)

Anos após consolidada a tese do tema 294 sob a sistemática dos recursos repetitivos, acerca da interpretação do artigo 16, §3º da lei 6.830/80 quanto à possibilidade de arguição de compensação em sede de embargos do devedor, o STJ, ao tentar promover a uniformização de entendimento entre a primeira e a segunda turmas, passou a adotar nova e restritiva interpretação a qual ameaça inúmeras ações em curso.

O tema repetitivo 294 firmou a seguinte tese:

"A compensação efetuada pelo contribuinte, antes do ajuizamento do feito executivo, pode figurar como fundamento de defesa dos embargos à execução fiscal, a fim de ilidir a presunção de liquidez e certeza da CDA, máxime quando, à época da compensação, restaram atendidos os requisitos da existência de crédito tributário compensável, da configuração do indébito tributário, e da existência de lei específica autorizativa da citada modalidade extintiva do crédito tributário.

Verifica-se que a tese inicialmente delimitada pelo STJ, em decorrência da interpretação conjunta do mencionado §3º do artigo 6º da lei 8.830/80 com o art. 170 do CTN, permitia a discussão sobre compensação através de embargos do evedor sobretudo quando o crédito havia sido reconhecido como líquido e certo (requisitos de existência do crédito tributário) previamente à execução fiscal, a exemplo de eventual declaração de inconstitucionalidade da exação.

Sob esse entendimento, excluíam-se somente as hipóteses nas quais o contribuinte não havia efetuado a compensação antes do ajuizamento da execução fiscal (devido à incerteza sobre a própria existência do crédito), vedando-se, por óbvio, ao poder judiciário promover o "encontro de contas" para homologar a compensação não declarada.

De fato, a interpretação dada acerca do art. 16 da LEF através do precedente firmado, era clara no sentido segundo o qual a compensação que permitia a discussão em sede de embargos do devedor era aquela previamente transmitida na esfera administrativa ou pleiteada via judicial, ainda que pendente de decisão homologatória. 

Coibia-se, pela explanaçao do tema 294, somente que "o devedor, em sede de embargos à execução, reconhecendo a procedência e a existência da dívida cobrada executivamente, oponha-se ao pagamento do débito alegando que, por ser credor da Fazenda Pública, em razão de indébito tributário por ele suportado, o débito objeto da execução deverá ser extinto pela compensação com o crédito resultante do indébito". Ou seja, impedia-se, corretamente, o denominado "encontro de contas".

Entretanto, no intuito de se promover a uniformização de jurisprudência, recentemente, o STJ passou e exprimir um entendimento muito mais restritivo através do qual apenas as compensações previamente reconhecidas, antes do ajuizamento do executivo fiscal, poderiam ser objeto de discussão mediante a oposição de embargos do devedor.

Pretender limitar a discussão apenas às compensações homologadas é, por razões óbvias, o mesmo que impedir completamente qualquer tipo de discussão judicial acerca de compensação em sede de embargos do devedor. 

Se a compensação for homologada, extingue o crédito tributário nos termos do art. 156, II do CTN e não há como se vislumbrar qualquer hipótese de ajuizamento de execução fiscal, exceto por erro crasso da administração pública.

Dessa forma, a interpretação restritiva ao §6º do art. 16 da LEF inviabiliza o acesso à justiça e não condiz com a própria tese já firmada pelo tema 294 em sede recursos repetitivos. 

Tal limitação afronta, também, os princípios constitucionais previstos na CF/88 da ampla defesa e do devido processo legal. Importante relembrar esses princípios foram expressamente assegurados em momento posterior à edição da lei 6.830/80, o que, a prevalecer esse novo entendimento, acarretaria a inconstitucionalidade do §3º do art. 16.

Entretanto, o que se verifica é que, após serem proferidas decisões pelo E. STJ adotando o entendimento segundo o qual é defeso o acesso ao poder judiciário para debater as compensações não homologadas, alguns julgadores passaram a sustentar a possibilidade de discussão da matéria através de ações autônomas, de rito ordinário.

A esse respeito há inúmeras considerações, ou melhor implicações, a serem feitas.

Primeiramente, deve-se relembrar que ao realizar a compensação sob condição resolutória de homologação, o contribuinte não somente pleiteia o "reconhecimento" do crédito a ser compensado, mas, efetivamente, o declara.

Caso não homologada a compensação, esse débito declarado será inscrito em dívida ativa e, por conseguinte, será ajuizada a exceção fiscal para a qual a legislação prevê, especificamente, a defesa através a oposição de embargos do devedor. 

Se é negada a jurisdição através de embargos, restaria ao contribuinte a propositura de ação anulatória. 

Entretanto, basta que a Fazenda Pública tenha a agilidade e rapidez necessária para ajuizar Execução Fiscal para se impedir completamente a discussão judicial acerca da compensação. Isto porque, como se sabe, a execução prevaleceria, por precedência, sobre ação posteriormente proposta pelo contribuinte. 

Duvidosa seria, também, eventual alegação de conexão entre as ações. Principalmente porque, na hipótese em questão, a execução fiscal visaria a cobrança de um débito confessado (enquanto se pretende, por outro lado, o reconhecimento do crédito pretendido, passível de compensação com outros débitos esses sim exigidos na execução fiscal).

Portanto, a inadequação da ação anulatória para discutir débito declarado torna-se ainda mais evidente ao se considerar que um de seus requisitos é discutir ato da administração pública que imputou, indevidamente, obrigações ilegais.

O débito não é duvidoso, é devido e foi declarado. O que se pretende é, justamente o devido reconhecimento ao crédito.

Assim, não se pode apenas tratar "compensação" de uma única forma para impedir toda e qualquer discussão judicial via embargos de declaração. 

O que se deve ter em conta é que inúmeras são as hipóteses de discussão acerca do crédito pretendido a ser compensado, devendo distinguir-se: (i) as situações nas quais se necessita analisar o próprio crédito em si (por exemplo, em razão do valor), das (ii) situações nas quais, reconhecido o crédito, discute-se a possibilidade de se compensá-lo (como por exemplo, em decorrência de posterior declaração de inconstitucionalidade de dispositivo legal) e (iii) das situações nas quais o débito foi executado e o contribuinte, vislumbrando a existência de um crédito sobre o qual não se pleiteou a compensação, passa a pretender utilizá-lo em sede de embargos do devedor, levando indevidamente o poder judiciário a intermediador de contas.

Não há melhor hermenêutica possível se não aquela segundo a qual o §3º do artigo 16 da lei 6.830/80 pretendeu coibir apenas que a efetiva compensação (mediante o encontro de contas) fosse realizada pelo poder judiciário nos autos dos embargos do devedor.

Entretanto, caso o novo entendimento seja pacificado, há de se fazer uma ressalva às ações judiciais em curso cujos embargos do devedor foram opostos quando a interpretação jurisprudencial acerca da expressão "compensação efetuada" prevista no tema repetitivo 294 (precedente vinculante), era diversa, ou seja, quando ainda não se limitava a discussão apenas para as compensações homologadas.

Para esses casos, deve-se observar (sob pena de ferir irremediavelmente o princípio constitucional da segurança jurídica decorrente do artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal) as disposições expostas do art. 24 da LICC:

Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas. (Incluído pela lei 13.655/18)
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público. (Incluído pela lei 13.655/18)

Outrossim, ainda que supostamente não observadas as disposições do artigo 24 da LICC, pelo princípio da fungibilidade, devem ser resguardados os embargos à execução já opostos e até mesmo em ações futuras.

Ao contrário do defendido por alguns doutrinadores, o princípio da fungibilidade não se restringe somente aos recursos. Deve ser aplicado sempre que for possível resguardar, salvar, aproveitar ato processual a fim de se garantir a eficácia, a economia e a celeridade processual. 

Decorrente do princípio da instrumentalidade das formas, o princípio da fungibilidade ganhou ainda mais amplitude após a edição do CPC de 2015.

Isto porque, o CPC de 2015 teve nítida aspiração de flexibilizar ainda mais prática dos atos processuais, tornar os processos mais rápidos, mais justos e de mais fácil acesso, através menos formalismo conforme se depreende "Exposição de Motivos do Código de Processo Civil": 

"Um sistema processual civil que não proporcione à sociedade o reconhecimento e a realização dos direitos, ameaçados ou violados, que têm cada um dos jurisdicionados, não se harmoniza com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito 

"O novo Código de Processo Civil tem o potencial de gerar um processo mais ce'lere, mais justo, porque mais rente às necessidades sociais e muito menos complexo"

Por sua vez, os artigos 154 e 244 do CPC preveem, respectivamente:

Art. 154 - "Os atos e termos processuais não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencham a finalidade essencial (...)"
Art. 244 - "Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade."

Por essa razão, sempre que não houver má-fé, erro grosseiro, ou enquanto ainda não precluso o prazo para a prática do ato, poderá se abrandar o rigor formal, sanando-se o ato em benefício de uma prestação jurisdicional efetiva.

O próprio STJ, há muito já entendia:

"A garantia constitucional do amplo contradito'rio, a instrumentalidade do processo e o acesso à Justiça, em detrimento do apego exagerado ao formalismo, autorizam a aplicação da melhor interpretação possível dos comandos processuais, para se permitir o equili'brio na ana'lise do direito material em litígio." Resp 556282 SE

Portanto, considerando que os embargos à execução constituem ação autônoma, ainda que incidental, não pode haver óbice à sua admissão (em observância ao princípio da fungibilidade), em caráter de ação de rito ordinário, declaratória ou anulatória, atingindo-se a efetiva finalidade do ato.

Ainda, no entender do próprio STJ:

"O formalismo processual excessivo é a negação do próprio Estado de Direito Democrático, uma vez que inviabiliza, por via tortuosa e insidiosa, a garantia constitucional do efetivo acesso à Justiça. Precedentes." Ag Reg no AI 1775617 RS

Em suma, verifica-se que seja pela tese firmada no tema repetitivo 294, sejam pelas disposições da lei 9.430/96 (ao prever o próprio procedimento de compensação e editada em momento posterior à LEF), sejam pelos direitos fundamentais previstos pela CF/88, seja pelo principio da fungibilidade, da instrumentalidade das formas sejam pelas disposições do CPC/15, seja até mesmo por puro bom senso e razoabilidade: não há outras interpretações minimamente plausíveis para o §3º do art. 16 da lei 6.830/80, que não aquela pela possibilidade de discussão via embargos do devedor de compensações indevidamente não homologadas na esfera administrativa. Não há outra forma de se garantir uma prestação jurisdicional justa e efetiva. 

Karina de Azevedo Scandura

Karina de Azevedo Scandura

Advogada do escritório Daudt, Castro e Gallotti Olinto Advogados.

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