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Responsabilidade civil do empregador decorrente do uso indevido de software

Rafael Lacaz Amaral, Rodrigo da Rosa e Victor Lima

O empregador deve fiscalizar o uso adequado de softwares nas atividades in loco e externas, precipuamente em trabalhos remotos, uma vez que a legislação garante sua responsabilidade civil caso um colaborador viole direitos autorais durante a atividade laboral ou em proveito da empresa.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Atualizado às 09:07

O trabalho remoto e o híbrido foram impulsionados em função da pandemia causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e suas mutações, o que está mudando a perspectiva de modelo ideal de trabalho e de produtividade, visto que a flexibilidade proporcionada possibilita, em geral, maior bem-estar e tempo hábil para os colaboradores. Ou seja, ao invés de desperdiçar horas e horas em trânsito a caminho da empresa, o ínterim pode ser usufruído em uma atividade esportiva, em um momento com a família, em um hobby ou em um curso de especialização. Nesse viés, de acordo com pesquisa realizada pela PwC Brasil em 2022, já chega a 67% o percentual de colaboradores no território nacional que preferem o regime de teletrabalho integral ou híbrido1.

Embora haja demasiados aspectos positivos relativos ao trabalho flexível, o empregador deve considerar múltiplos fatores para garantir a conformidade da atividade laboral. Aplicativos de celular e programas de computador são ferramentas essenciais para qualquer atividade atualmente e, desta forma, torna-se cada vez mais importante que seu uso seja supervisionado diariamente pela empresa, a fim de evitar danos a terceiros e, por conseguinte, a sua responsabilização.

Por meio da leitura dos arts. 932, III, e 933 do Código Civil (lei 10.406/02), conclui-se que o empregador ou comitente é também responsável, independentemente de culpa, pela reparação civil decorrente de danos provocados por seus colaboradores que forem ocasionados no exercício do trabalho que lhes competir ou em razão dele. A doutrina intitula este cenário como responsabilidade objetiva, também chamada, neste contexto, de teoria do risco do empreendimento, ou do risco do negócio.

Além disso, a jurisprudência majoritária entende que a responsabilidade do empregador recai sobre todos os colaboradores, latu sensu, inobstante a vínculo trabalhista. Dessa forma, torna-se indiferente o fato de o dano ter sido provocado por um celetista, estagiário, preposto, terceirizado.

RECURSO DE REVISTA DA RECLAMADA INTERPOSTO ANTES DA LEI 13.015/2014. RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR. ATO ILÍCITO COMETIDO POR PREPOSTO NOS TERMOS DO CÓDIGO CIVIL. INEXIGÊNCIA DA CONDIÇÃO DE EMPREGADO DO PREPOSTO. INAPLICABILIDADE DOS TERMOS DA SÚMULA 377 DO TST.

(...). Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do art. antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos (...) contudo, não há exigência de que a figura do preposto do art. 932, III, do Código Civil seja empregado, bastando ser pessoa que, no exercício do trabalho que a competir, viole o direito de outrem, sendo presumida a culpa do patrão ou comitente, conforme disposto na Súmula 341 do Supremo Tribunal Federal. No caso, como bem assentado pelo TRT, transcrevendo lição do doutrinador Sebastião Geraldo de Oliveira, "o vocábulo preposto, indicado no art. 932, III, do Código Civil, tem sido interpretado com bastante amplitude, entendendo-se como tais os autônomos, prestadores de serviço em geral, estagiários, cooperados, mandatários, parceiros, representantes comerciais, dentre outros. (...)

Nesse contexto, o entendimento da Súmula 377 do TST, que exige a condição de empregado do preposto não se estende ao disposto Código Civil quando trata da responsabilidade objetiva do empregador ou comitente.

(TST - RR: 8616820115070005, Relator: Maria Helena Mallmann, Data de Julgamento: 7/11/18, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 9/11/18)

Nos termos do art. 2º da Lei de Software (lei 9.609/98), o regime de proteção aos programas de computador é o mesmo conferido às obras literárias previsto na Lei de Direitos Autorais (lei 9.610/98). Não se trata de uma inovação jurídica brasileira, pois este regime encontra respaldo no art. 10 do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, também conhecido como TRIPS, o qual dispõe que os programas de computador - seu código fonte - serão protegidos como obras literárias conforme a Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas de 1886.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê, no art. 5º, XXVIII, alínea b, o direito fundamental de fiscalização do aproveitamento econômico da obra autoral, amparando ainda mais o direito de os desenvolvedores de software gerenciar e fiscalizar os seus ativos, em consonância com os termos de uso da licença (End User License Agreement). Tal direito conferido aos desenvolvedores se mostra especialmente relevante perante a realidade brasileira, uma vez que, segundo a Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES), em uma pesquisa realizada em 2018, o prejuízo estimado devido ao uso de software sublicenciado, vulgarmente chamado de pirata, chegava a US$ 1,7 bilhão2.

Considerando a proteção jurídica outorgada aos softwares, o empregador também deve observar as implicações do art. 104 da Lei de Direitos Autorais na atividade laboral, visto que esta norma jurídica impõe a responsabilidade solidária àqueles beneficiados com a contrafação. Dessa forma, a empresa será solidariamente responsável em decorrência do uso indevido da licença do software caso tal utilização importe em alguma forma de proveito econômico, tal como viabilizar ou melhorar a produção de um bem ou a realização de um serviço. 

Ante os dispositivos mencionados, observa-se que a empresa deve fiscalizar não apenas o licenciamento dos softwares instalados em máquinas de inventário, porque mesmo se colaborador estiver utilizando um software em não conformidade com os termos de uso (End User License Agreement) em um computador externo, o empregador também poderá ser penalizado por violação de direitos autorais se o uso for realizado na atividade laboral. Por conseguinte, os cuidados e os meios de supervisão devem estar alinhados tanto nas atividades in loco quanto nas flexíveis, precipuamente se o colaborador trabalha através de um computador pessoal, no qual a supervisão do empregador é, naturalmente, mais difícil de ser aplicada.

Deve-se destacar que os Tribunais brasileiros frequentemente lidam com litígios relativos ao uso indevido de programas de computador, razão pela qual os empregadores não devem negligenciar a fiscalização de softwares nas máquinas de inventário e a supervisão das atividades dos seus colaboradores. A título de exemplo, recentemente, no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, a Excelentíssima Juíza de Direito Srª. Caroline Bündchen Felisbino Teixeira condenou uma empresa a pagar R$ 1.186.410,00 por uso indevido de software3.

A decisão em comento encontra respaldo em uma jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no sentido de condenar o empregador por uso indevido de software, podendo a indenização ser quantificada em até 10 vezes o valor de mercado dos programas irregulares identificados, como se observa abaixo:

RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. PROPRIEDADE INTELECTUAL. CONTRAFAÇÃO. PROGRAMAS DE COMPUTADOR (SOFTWARE). CARÁTER PUNITIVO E PEDAGÓGICO. ARTIGOS ANALISADOS: ART. 102 DA LEI 9.610/98.

1. (...)

2. (...)

3. A exegese do art. 102 da Lei de Direitos Autorais evidencia o caráter punitivo da indenização, ou seja, a intenção do legislador de que seja primordialmente aplicado com o escopo de inibir novas práticas semelhantes.

4. A mera compensação financeira mostra-se não apenas conivente com a conduta ilícita, mas estimula sua prática, tornando preferível assumir o risco de utilizar ilegalmente os programas, pois, se flagrado e processado, o infrator se verá obrigado, quanto muito, a pagar ao titular valor correspondente às licenças respectivas.

5. (...) 

6. É razoável a majoração da indenização ao equivalente a 10 vezes o valor dos programas apreendidos, considerando para tanto os próprios acórdãos paradigmas colacionados pela recorrente, como os precedentes deste Tribunal em casos semelhantes.

7. Recurso especial provido." (STJ. REsp 1.403.865/SP. Min. Relatora Nancy Andrighi. Terceira Turma. Julgado em 17/11/13)

AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ORDINÁRIA COM PEDIDO INDENIZATÓRIO. REPRODUÇÃO INDEVIDA DE PROGRAMA DE COMPUTADOR. QUANTUM INDENIZATÓRIO. RAZOABILIDADE. PRECEDENTES. AGRAVO NÃO PROVIDO.

1. (...) A fixação do valor da indenização pela prática da contrafação deve servir, entre outras coisas, para desestimular a prática ofensiva, sem, no entanto, implicar enriquecimento sem causa do titular dos direitos autorais violados" ( AgRg nos EDcl no REsp 1.375.020/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe de 20/8/13).

 2. Assim, mostra-se razoável a condenação ao pagamento do equivalente a dez vezes o preço de mercado do produto violado na data do ilícito praticado.

3. Agravo interno a que se nega provimento. (STJ - AgInt no REsp: 1300021 MS 2011/0294232-9, Relator: Ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), Data de Julgamento: 17/10/17, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/10/17)

Ademais, importante ressaltar que a consumação do ato ilícito ocorre na instalação indevida do programa de computador. Dessa forma, a razão, o motivo e a periodicidade não são argumentos capazes de afastar a responsabilidade pelo dano causado, embora possa eventualmente atenuar a indenização.

Portanto, o investimento em uma política interna de license compliance, a fim de treinar os colaboradores, supervisionar as atividades e estabelecer responsabilidades, além do investimento em equipes de Tecnologia da Informação são soluções que empresas podem adotar para mitigar os riscos relativos à violação de direitos autorais, principalmente no contexto atual de popularização do teletrabalho. Nesse sentido, o empregador também pode contratar sistemas que inviabilizam a instalação de programas de computador pirateados, assim como rever os contratos de trabalho, de modo a garantir mais proteção à sua atividade, visto que dormientibus non succurrit jus.

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1 Dado em: https://www.pwc.com.br/pt/sala-de-imprensa/release/No-retorno-ao-trabalho-presencial-maioria-dos-profissionais-prefere-ir-ao-escritorio-ate-duas-vezes-na-semana.html. Acesso em 09 de julho de 2022.

2 Dado em: https://abessoftware.com.br/prejuizo-com-software-pirata-chega-a-us-17-bilhao-no-brasil/. Acesso em 03 de julho de 2022. 

3 Saiba mais em: https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/comerciante-pagara-r-1-1-milhao-por-uso-indevido-e-sem-licenca-de-programa-de-software?redirect=%2Fweb%2Fimprensa%2Fnoticias. Acesso em 03 de julho de 2022. 

Rafael Lacaz Amaral

Rafael Lacaz Amaral

Advogado e Sócio de Kasznar Leonardos Advogados. Especializado em Contencioso Judicial em Propriedade Intelectual. Coordenador da equipe de Antipirataria Digital e License Compliance.

Rodrigo da Rosa

Rodrigo da Rosa

Colaborador da equipe de Antipirataria Digital e License Compliance da Kasznar Leonardos Advogados. Graduando em Direito pela UFRJ.

Victor Lima

Victor Lima

Líder da equipe de Antipirataria Digital e License Compliance da Kasznar Leonardos Advogados. Cofundador da LAPI-UFRJ.

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