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Prestação de serviços pelo sócio à sociedade limitada: um ensaio sobre a IN 88/22/DREI

Uma revisão da redação, portanto, recomenda-se, deixando claro que a prestação de serviço não é permitida como forma de contribuição para a formação do capital, ainda que não seja proibido que sócios trabalhem para a sociedade de maneira diversa a do múnus da administração.

terça-feira, 21 de março de 2023

Atualizado às 08:36

Recentemente, o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração - DREI, editou a Instrução Normativa 88/22 (que alterou a IN 81/2020), norma que segue o esforço daquele órgão em dinamizar e modernizar o Direito Societário brasileiro, nomeadamente no que diz respeito ao Registro Público. No entanto, uma parte da norma chama atenção. No anexo que cuida das sociedades limitadas, lê-se:

4.3.6. Contribuição ao capital social com prestação de serviços

.......................................................................................................................

É lícito que o sócio preste serviços à sociedade, em caráter oneroso ou não, ainda que não ostente a condição de administrador.

Aparentemente, a norma conflita com o disposto no parágrafo 2°, do art. 1.055 do Código Civil que, cuidando das sociedades limitadas, assim estabelece:

Art. 1.055. O capital social divide-se em quotas, iguais ou desiguais, cabendo uma ou diversas a cada sócio.

§ 1º Pela exata estimação de bens conferidos ao capital social respondem solidariamente todos os sócios, até o prazo de cinco anos da data do registro da sociedade.

§ 2º É vedada contribuição que consista em prestação de serviços. (grifamos)

Essencialmente, por norma imperativa, na sociedade limitada não há sócio prestador de serviços (art. 1.055, § 2º). Todos os sócios têm de contribuir com recursos em dinheiro ou em qualquer outra sorte de bens com expressão econômica. Os sócios são

investidores e nenhum deles tem o direito ou a obrigação de contribuir para o capital social com a prestação de serviços. Sob tal prisma, o item 4.3.6 do Manual da Sociedade Limitada, em sua nova redação, dada pelo IN DREI 88/2022, contraria o Código Civil.

Mas é possível compreender a norma de outra forma: ler a norma não como regulamentadora de uma forma vedada de integralização do capital social de limitadas - a prestação de serviços - mas, de acordo com o dever de lealdade, colaborar com a execução do objeto social. Noutras palavras, aceitando, senão propondo, que o sócio tenha uma postura proativa, trabalhando a bem do objeto social. Seria uma falha de redação? O que o regulamentador quis dizer seria diverso?

"É lícito que o sócio preste serviços à sociedade, em caráter oneroso ou não, duradouro ou eventual, ainda que não ostente a condição de administrador, vedada a previsão de que tal serviço seja usado para integralizar o capital social."

Isso incluiria, mesmo, a prestação de serviços que decorra simplesmente da condição de sócio. Uma interpretação interessante, embora, em tese, a sociedade limitada tenha sido pensada pelo legislador de forma diversa: a posição do mero sócio (não administrador) é de investidor. Não lhe cabe trabalhar para sociedade, salvo relação extra societária de empregado, autônomo ou pessoa jurídica, estes dois últimos desde que não haja subordinação, como se deixou claro na Reclamação n. 56.499 de 19.12.2022, item 12, julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Desse modo, são lícitos, ainda que para a execução da atividade-fim da empresa, os contratos de terceirização de mão de obra, parceria, sociedade e de prestação de serviços por pessoa jurídica (pejotização), desde que o contrato seja real, isto é, de que não haja relação de emprego com a empresa tomadora do serviço, com subordinação, horário para cumprir e outras obrigações típicas do contrato trabalhista, hipótese em que se estaria fraudando a contratação.

Veja que se está diante de um impasse que decorre da fragilidade do sistema. Transformamos sociedades limitadas em sociedades em nome coletivo ou simples (ou vice-versa), nas quais o sócio atua, pessoalmente, na realização do objeto social. É por isso que juízes se sentem tão à vontade para avançar sobre o patrimônio do sócio: a ideia de que é preciso proteger o investimento se desfaz diante da constatação de que se está protegendo é a ação pessoal, ainda que em nome da sociedade. E a realidade sociológica, aquela que a gente vivencia no cotidiano do mercado é diversa: sócios trabalham (prestam serviços) pela realização do objeto social. Não ocupam, na esmagadora maioria dos casos, a condição de mero investidor. Aliás, é muito comum que o administrador societário, mais que cumprir sua função de diretor corporativo, gerencie a empresa, senão a conduza pessoalmente: os três sócios da transportadora que tocam as vans para fazer entrega.

Considerando essa realidade sociológica - o que efetivamente vivemos no mercado - a norma lê-se de forma diversa. Afinal, é do interesse de toda a sociedade a execução do objeto social. E nessa linha os sócios poderiam atuar na realização do objeto social, ou seja, prestar serviços à sociedade, ainda que gratuitamente. Ainda que não seja o administrador, que ocupe a posição de investidor, o sócio não precisa caminhar de modo passivo. Não se pode desconsiderar que há várias sociedades limitadas em que a contribuição do sócio é essencial para a execução do objeto social. A sociedade limitada não é uma sociedade anônima simplificada. É tipo societário com lógica diversa.

Há mais. Não se pode olvidar que, havendo integralizado o capital social em dinheiro ou bens com expressão econômica, o sócio pode se obrigar, no contrato social, a determinada prestação de serviços. Por exemplo, sociedades de médicos, de contadores, um restaurante cuja sociedade é formada por um chef e um sommelier. Nesta hipótese, a contratação seria possível e ele está obrigado a cumprir o contratado. Teria sido essa a intenção do DREI: é possível criar uma obrigação para o sócio numa sociedade limitada? Não haveria ilegalidade se ele houver contribuído para o capital social normalmente.

A intenção seria correta, mas a redação cria um grande desafio e, sim, gera confusões, com destaque para o título do item: contribuição para o capital social. O rótulo enviesa a interpretação no sentido errado. Afinal, se a intenção é criar sócio de serviço, a opção legal não é por limitada, mas a sociedade simples pura, prevendo que uns sócios são prestadores de capital e outros, de serviços. Com o perdão do trocadilho, é simples assim (art. 997, IV e V, do Código Civil). Ou a sociedade em nome coletivo com aplicação supletiva das normas da sociedade simples (artigo 1.040). O que realmente não se comporta é forçar um tipo societário para incluir previsão de outro. Existe um cardápio de tipos societário e justamente para atender aos mais variados interesses.

ma revisão da redação, portanto, recomenda-se, deixando claro que a prestação de serviço não é permitida como forma de contribuição para a formação do capital, ainda que não seja proibido que sócios trabalhem para a sociedade de maneira diversa a do múnus da administração. E nisso haveria uma cláusula não essencial, mas acidental, do contrato social. Enquanto essa nova redação não vem - se vier - a interpretação do item teria que ser: os sócios podem se obrigar, mesmo no contrato social, a contribuir com sua atuação pessoal (prestação de serviços) para com a realização do objeto social. Mas isso, desde que tenham se comprometido a integralizar suas quotas em dinheiro, crédito ou bens com expressão pecuniária e que não esteja caracterizada a subordinação típica das relações de trabalho.

Ronald Sharp Jr.

Ronald Sharp Jr.

Auditor Fiscal do Trabalho do Ministério da Economia e Professor e Mestre em Direito Comercial/Empresarial pela UERJ. Ex-advogado do BNDES

Gladston Mamede

Gladston Mamede

Professor de Direito Comercial/Empresarial.

Giovani Magalhães

Giovani Magalhães

Professor de Direito Comercial/Empresarial.

Henrique Haruki Arake

Henrique Haruki Arake

Mestre e doutor em Análise Econômica do Direito Aplicada ao Direito Processual Civil e especialista em direito societário, investigação e prevenção de fraudes corporativas, falimentar e recuperacional. Pesquisador e professor da graduação e da pós-graduação das disciplinas Direito Societário, Direito Falimentar, Direito dos Contratos e Análise Econômica do Direito (AED).

Paulo Henrique Franco Palhares

Paulo Henrique Franco Palhares

Sócio do Carvalho Dantas, Lelis e Palhares Advogados. Membro do Instituto Brasiliense de Direito Empresarial - IADE. Mestre em Direito Econômico. Professor de Direito Empresarial da Graduação e da Pós-graduação do Centro Universitário de Brasília - UniCeub, IBMEC Brasília e IDP - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa.

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