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O que não se falou sobre a lei do CARF: Dispensa de garantia aos processos em curso

Em que pese a louvável iniciativa, algumas lacunas no texto legal podem resultar na ineficácia da medida criada pelo legislador.

quinta-feira, 21 de março de 2024

Atualizado às 08:04

A lei 14.689/23 introduziu alterações significativas na legislação processual tributária, merecendo destaque a regulamentação de diversos aspectos envolvendo os julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF na hipótese de empate na votação.

Dentre essas mudanças, a lei 14.689/23 inovou o regramento da defesa judicial dos contribuintes em Execução Fiscal ao garantir que, nas hipóteses nas quais as exigências tributárias restarem confirmadas por meio do voto de qualidade no julgamento do CARF, os contribuintes estarão dispensados da apresentação de garantia para discussão judicial (art. 4º da lei 14.689/23).

Para tanto, o contribuinte deverá: (1) demonstrar capacidade de pagamento do débito mantido pelo CARF, que será aferida mediante relatório de auditoria independente; (2) apresentar bens livres e desimpedidos para futura garantia em caso de sentença desfavorável; (3) não possuir créditos em situação de exigibilidade perante a Fazenda Pública; e (4) possuir CND/CPDeN expedida conjuntamente pela Receita Federal do Brasil e pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional por mais de três meses, consecutivos ou não, no período de doze meses que antecederem o ajuizamento da medida judicial.

Anteriormente, os contribuintes só poderiam opor Embargos à Execução Fiscal, salvo exceções1, mediante a garantia integral do crédito tributário questionado, usualmente realizada por meio de depósito judicial, seguro garantia ou fiança bancária.

Ocorre que, por muitas vezes, demonstra-se elevado o ônus a ser suportado pelo contribuinte para garantir o crédito e ter a sua defesa analisada pelo Poder Judiciário, tendo em vista o custo para manutenção das garantias no curso do processo.

Em caso de depósito judicial, por exemplo, haverá uma privação de recursos financeiros da empresa que poderiam ser destinados às suas atividades ou a investimentos com melhores índices de remuneração que os praticados pelo Poder Judiciário.

Outra forma de garantir o crédito tributário é por meio da contratação de seguro garantia ou fiança bancária. Nessas hipóteses, os custos de manutenção da apólice do seguro garantia ou da carta fiança poderão se revelar altos, a depender dos valores em discussão e do período de tramitação do processo de execução que, em regra, é de 8 anos e 10 meses2.

Assim, o art. 4º da lei 14.689/23, ao dispensar os contribuintes dos ônus da garantia, representa um verdadeiro benefício econômico às empresas.

Em que pese a louvável iniciativa, algumas lacunas no texto legal podem resultar na ineficácia da medida criada pelo legislador. 

De acordo com os arts. 919, §1º e 921, II, do CPC, um dos requisitos para atribuição de efeito suspensivo aos embargos à execução fiscal é que haja a garantia do crédito executado. Considerando que a lei 14.689/23 dispensa o contribuinte de garantir o crédito tributário, há risco de se entender pela ausência dos requisitos para concessão dos efeitos suspensivos à execução fiscal. 

Além disso, tendo em vista que o art. 9, §3º, da LEF, atribui às modalidades de garantia os mesmos efeitos da penhora, pode-se entender que o contribuinte não terá direito à emissão de CPDeN nos termos do art. 206 do CTN, uma vez que o crédito tributário não estará garantido, ante a dispensa prevista no art. 4º da lei 14.689/23.

Contudo, a partir de uma análise sistemática e teleológica desses dispositivos (art.  5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB), pode-se afirmar que os contribuintes que deixarem de garantir o crédito, em razão da nova dispensa legal também devem ter garantido o direito à suspensão da execução e à emissão do CPDeN. Caso contrário, a nova disposição legal não cumpriria com o seu propósito. 

Fixadas tais premissas, surge o questionamento sobre a possibilidade de aplicação deste novo regramento às execuções fiscais em curso, pois, embora a apresentação da garantia tenha ocorrido nos termos da legislação vigente à época, a questão deve ser avaliada à luz do princípio processual do tempus regit actum.

De acordo com o referido princípio, a lei processual alcança o processo em sua fase atual, desde que a aplicação da nova legislação não prejudique as partes envolvidas e preserve a eficácia dos atos processuais já praticados3.

Recentemente, a min. Regina Helena Costa proferiu decisão afirmando que, em se tratando de "norma de caráter claramente processual", autoriza-se a "sua aplicação aos feitos em curso (CPC/15, art. 14)" 4, impedindo, no caso concreto, que a União liquidasse seguro garantia judicial antes do trânsito em julgado da ação, sob o fundamento de que "a legislação de regência foi modificada".

De acordo com Humberto Theodoro Júnior:

A regra de direito intertemporal a prevalecer, na espécie, é no sentido de que a lei processual nova deve respeitar os atos processuais já realizados, bem como os seus efeitos, aplicando-se somente aos atos subsequentes que não tenham nexo imediato e inafastável com o ato praticado sob o regime da lei antiga ou com os seus efeitos.5

A obrigação de manter o crédito garantido era uma exigência continuada que inviabilizava o curso da ação e a partir da superveniência da lei 14.689/23, deixou de ser condição para o trânsito da defesa judicial, nos casos em que aplicado o voto de qualidade no CARF, desde que atendidas as condições do art. 4º da lei 14.689/23.

Assim, considerando que (1) eventual levantamento da garantia respeitaria os atos passados, pois até o momento em que era exigido os débitos estavam garantidos e que (2) a União não terá prejuízos, pois há requisitos a serem observados, inclusive relacionados à capacidade de pagamento, deve-se permitir o levantamento da garantia judicial com fundamento no princípio do tempus regit actum.

Por fim, vale ressaltar que o art. 4º da lei 14.689/23 ainda será objeto de regulamentação pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e a expectativa dos contribuintes é de que as imprecisões técnicas, mencionadas acima, sejam solucionadas, garantindo a efetividade da intenção do legislador.

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1 Como por exemplo, nos casos em que comprovado que o executado não possui condições para garantir o crédito exequendo, conforme entendimento fixado pelo STJ (REsp 1.487.772/SE).

2 Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Justiça em Números, edição 2023.

3 REsp 1.404.796/SP, 1ª Seção, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, p. 09/04/14.

4 REsp nº 2.077.314/SC, Min. Regina Helena Costa, p. 26/02/24.

5 JUNIOR, Humberto Theodoro. O direito intertemporal e o Novo Código de Processo Civil (com particular referência ao processo de conhecimento), disponível em: https://www.trt3.jus.br/escola/download/artigos/direito%20intertemporal%20novo%20codigo.pdf - Acessado em 26 de fevereiro de 2023.

Gustavo Henrique Olescki

Gustavo Henrique Olescki

Advogado do escritório Gaia Silva Gaede Advogados. Pós-graduando em Direito Tributário no Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET), formado pela Faculdade de Direito.

Lucas Gouvea Manoel Bitterbir

Lucas Gouvea Manoel Bitterbir

Advogado do escritório Gaia Silva Gaede Advogados. Cursando MBA em Gestão Tributária na Universidade de São Paulo (USP), formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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