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Anatel, marketplaces e o limite da competência regulatória

É imprescindível que a segurança jurídica reine na relação entre as agências reguladoras, as companhias e os consumidores.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Atualizado às 13:11

Em campanha aberta por mais poderes, a Anatel reconheceu publicamente que aguarda autorização legislativa para fiscalizar o ambiente digital. Apesar disso, a agência tem expedido ordens, realizado fiscalizações online e presenciais, aplicado multas e agora ameaça bloquear sites de marketplaces. 

O caso mais recente envolveu uma medida cautelar administrativa, anunciada em coletiva de imprensa, pela qual a Anatel exigiu que os principais marketplaces removessem, em prazo exíguo, anúncios de produtos para telecomunicação supostamente não homologados, sem sequer especificá-los. Além de basear a cautelar em amostragem não fidedigna, a medida ignorou três travas jurídicas. Primeiro, a incompetência da agência para editá-la, pois a lei geral de telecomunicações não lhe outorgou competência para regular o comércio na internet. Segundo o marco civil da internet, de acordo com o qual a remoção de conteúdo na internet só pode se dar mediante ordem judicial prévia e específica. Ao interpretar essa lei, por sinal, o STJ consolidou o entendimento de que marketplaces não podem ser obrigados a monitorar preventivamente ofertas de terceiros - exatamente o que a Anatel determinou fosse feito na medida cautelar. 

Terceiro, o princípio geral de proporcionalidade, pois as sanções previstas na cautelar partem de multa diária cujo valor pode superar R$ 7 milhões, até a previsão de bloqueio integral dos sites. Nas palavras do presidente da Anatel: "vamos tirar o site inteiro do ar, não importa o que tem (sic) lá dentro". Com isso, milhões de consumidores brasileiros estão na iminência de não mais poder realizar milhares de compras online, porque a Anatel arrogou-se uma competência que a lei não lhe conferiu para regular e fiscalizar as transações comerciais realizadas via marketplaces. Já os milhares de vendedores que se utilizam dos marketplaces para comercializar seus produtos - a maioria dos quais sequer comercializa produtos sujeitos à homologação da Anatel - podem ter sua atividade econômica abruptamente paralisada.

A determinação de bloqueio, chocante por si só, dar-se-ia de forma linear, sem considerar as circunstâncias específicas de cada empresa. Há grandes marketplaces em que, por exemplo, os produtos sujeitos à certificação da Anatel representam 0,1% do universo de ofertas e que, ainda assim, enfrentam o risco de terem suas operações interrompidas pela agência. Em suma, o caso representa um desafio aos predicados de sensatez, equilíbrio e justiça que devem orientar a ação estatal.

A agência pretende contornar esses obstáculos valendo-se de frágil silogismo: se pode certificar equipamentos de telecomunicações, também poderia exercer poder de polícia sobre quem os vende. Mas não é isso o que prevê a lei geral de telecomunicações, que limita as competências sancionatórias da Anatel aos agentes que efetivamente prestem ou utilizem serviços de telecomunicação. Fabricantes, importadores e lojistas - on-line ou off-line - não se enquadram nessa hipótese.

O caso revela um paradoxo. Ao admitir publicamente que não detém competência, a Anatel confessa que suas medidas contra marketplaces carecem de fundamento legal. Ainda assim, opta por autoconferir poderes, na expectativa de que o Congresso faça, em algum momento, a regularização ex post. Inverte-se, assim, a lógica das coisas: primeiro a ação e a punição, depois, quem sabe, a lei que lhes sirva de amparo. Ficam no caminho o devido processo legal, a liberdade econômica - e o constrangimento de criar um precedente perigoso para qualquer ente público tentado a usurpar o Poder Legislativo e a legislar por conta própria.

As agências reguladoras foram concebidas para conferir técnica e estabilidade às políticas públicas, sempre nos limites previstos em lei e pela via do diálogo institucional. Esse diálogo deve ser pautado pela temperança, pela legalidade e pelo respeito às competências legais e constitucionais. Quando a autoridade administrativa admite a própria incompetência e ainda assim adentra o território que a lei não lhe reservou, o sinal de alerta deve soar. Mais do que proteger as empresas que operam no comércio eletrônico, é preciso preservar o equilíbrio institucional que garante a qualquer cidadão - vendedor ou comprador - a segurança jurídica de saber de antemão quais são as regras do jogo e quem pode, de fato, ditá-las.

Diego Herrera Alves de Moraes

Diego Herrera Alves de Moraes

Sócio do escritório Mattos Filho.

Fernando Dantas M. Neustein

Fernando Dantas M. Neustein

Sócio do Mattos Filho.

Marselhe Cristina de Mattos

Marselhe Cristina de Mattos

Advogada com atuação no Contencioso e Arbitragem no escritório Mattos Filho.

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