Uma revisitação à Política Nacional de Saneamento Ambiental após o marco regulatório da lei 14.026/20
O saneamento ambiental é holístico, abrangendo água, esgoto, lixo, solo e controle de doenças. A legislação deve refletir essa abordagem para promover qualidade de vida.
terça-feira, 10 de junho de 2025
Atualizado às 12:49
1. Aspectos gerais
1.1 O saneamento ambiental como conceito holístico e base tutelar do sistema normativo
Apesar de consolidada na doutrina e na legislação a rubrica saneamento básico, é importante discutir a necessidade e a adequação de seu uso.
O saneamento, tal como descrito na lei 11.445/07, bem como nas normas de regência, envolve ações para a sociedade, com o objetivo de fazer com que todos tenham acesso ao abastecimento de água potável, à coleta e disposição de resíduos sólidos e líquidos, ao uso compatível do solo, ao controle de doenças transmissíveis e ao meio ambiente equilibrado. Traz, em sua essência, os elementos primordiais para a promoção da qualidade de vida da população, abrangendo o controle de todo meio físico para um desenvolvimento saudável para todos.
O saneamento, por conseguinte, é holístico e não segmentado, envolvendo uma ideia de maior abrangência a exigir a utilização da expressão ambiental em substituição ao termo básico.
Por outro lado, é forçoso considerar que as normas possuem, ordinariamente, uma base tutelar, ou seja, as leis têm uma meta finalística que, comumente, busca a defesa de certo bem jurídico, considerado socialmente relevante. Assim, observando-se a estrutura legal criada, nota-se a montagem de cadeia de proteção ao meio ambiente - tal como preconizado no art. 225 da Carta Suprema em seus aspectos de equilíbrio ecológico essencial à qualidade de vida humana.
Também, sob o ponto de vista operacional - até pelas necessidades sociais -, o legislador e os gestores públicos não trabalham, há muito tempo, com o aspecto restrito do saneamento.
Aliás, fica evidente que a denominada Política Nacional de Saneamento Básico se refere, de fato, a uma verdadeira Política Nacional de Saneamento Ambiental, na medida em que traz, em seu bojo, regulamentação que extrapola o trinômio água, esgoto e lixo. São abordados aspectos que não só envolvem a tutela do meio ambiente, mas o uso adequado do solo e o controle de doenças. Um exemplo, por sinal evidente, se refere ao art. 40, IV da lei 11.445/07, que condiciona a interrupção dos serviços de esgotamento sanitários, por inadimplência do usuário, à manutenção de condições mínimas de saúde.
Além desse dispositivo, são encontrados, no diploma estruturante (lei 11.445/07), referências inúmeras e diversas às questões ambientais (art. 2º, III, IV; art. 3º, I, 'b'; art. 30, III; art. 40, X; art. 50, § 3º; dentre outros), de saúde (art. 2º, III, IV, VI; art. 3º, VI, 'b'; art. 9º, III; art. 29, § 1º, I; art. 30, III; art. 40, § 3º; art. 48, V; dentre outros), de organização das cidades (art. 2º, VI; art. 3º, X, XI e XII, art. 3-B, par. único; art. 11-B, § 4º; dentre outros) etc.
Pelos motivos elencados, é recomendável que se faça o referido ajuste, ficando aqui a recomendação para que futura reforma legislativa traga a correção da expressão.
Não há - insistimos - uma Política Nacional de Saneamento Básico e sim uma Política Nacional de Saneamento Ambiental em vigor.
Por sinal, pelas exigências da comunidade, trata-se de um "caminho sem volta", sendo absolutamente inexequível se tratar o saneamento em seu aspecto restrito.
A boa cautela jurídica recomenda a indiscutível necessidade de, nas próximas reformas legislativas, que se considere a unificação das normas esparsas em texto único - assegurando-se a integridade, compatibilidade e higidez de todo o sistema.
1.2 O Brasil e o saneamento
O tema saneamento, no Brasil, sempre gerou polêmicas.
De fato e de forma geral, o saneamento, em relação à infraestrutura, não teve o devido destaque ao longo das décadas - e, ainda, apresenta várias lacunas e inconsistências.
As intensas discussões que se travam desnudam um dos déficits mais agudos do país em termos de infraestrutura. É surpreendente que tantas gerações tenham convivido com problema tão grave. Água e esgoto tratados, coleta de lixo e sua correta disposição é o mínimo que uma sociedade pode oferecer às pessoas, sem se falar nos demais aspectos correlacionados.
Por sinal, o censo demográfico de 2022 apresenta um Brasil que possui 31 milhões de pessoas sem acesso adequado à água tratada; 49 milhões sem coleta e tratamento de esgoto; e metade dos 5.570 municípios depositando os resíduos sólidos urbanos em lixões desprovidos de adequada estrutura.
É inaceitável, em pleno século XXI, a falta de saneamento para um número tão grande de pessoas. É inadmissível que muitos brasileiros, ainda, morram, ano após ano, por diarreia, febre tifoide e outras doenças facilmente evitáveis.
Para parte significativa da população, uma torneira com água, um chuveiro e um vaso sanitário são artigos de luxo. O cidadão, muitas vezes, deseja apenas possuir um banheiro com um sistema de água e esgoto. É-lhe irrelevante se o serviço é deficitário ou lucrativo; se é público ou privado; ou se a legislação possui boa ou má redação. As pessoas não se interessam com a burocracia reinante e possíveis conflitos e idiossincrasias, mas com qualidade de vida. Ter uma conta de água e esgoto é existir formalmente, com o reconhecimento do próprio endereço e, consequentemente, da própria cidadania.
Além da precariedade nos índices de atendimento, observam-se sérios problemas estruturais ligados à operação e à manutenção desses serviços, como o referente ao desperdício de água tratada, cuja média nacional, em 2021, foi de 40,1%, segundo levantamento do Instituto Trata Brasil. Esse volume que se perde seria suficiente para abastecer regularmente mais 66 milhões de brasileiros. Como as estatísticas mostram que 35 milhões de pessoas não contam com água encanada nem para lavar as mãos, vê-se que o país já produz mais do que o suficiente para atender 100% da população. Mas não consegue alcançar essa meta por deficiências no sistema de distribuição. Se o país conseguisse reduzir as perdas para 25%, o volume poupado seria suficiente para abastecer cerca de 40 milhões de brasileiros. E, do ponto de vista do impacto ambiental, o volume economizado da água retirada da natureza ajudaria a manter cheios os rios e reservatórios. Aliviada, também, restaria a conta que é repassada ao conjunto dos consumidores por meio das tarifas.
Este cenário alarmante está a exigir uma atuação imediata, concertada e eficiente de toda a sociedade organizada rumo à universalização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, pois a manutenção do status quo perpetua a violação à dignidade e à saúde de milhões de brasileiros.
Não sabemos como chegamos dessa forma até aqui, mas é fora de dúvida que não se pode seguir assim. Felizmente, estamos hoje em pleno processo de evolução no tratamento dessa velha problemática, ligada, visceralmente, às perspectivas de desenvolvimento com sustentabilidade. A expectativa é que a lei do saneamento ambiental, ora revigorada, se converta na pedra infraestrutural tão esperada para a construção - no limite temporal idealizado - de um quadro mais adequado de desenvolvimento humano e de equilíbrio ambiental.
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Édis Milaré
Advogado fundador de Milaré Advogados. Professor e consultor em Direito Ambiental; Doutor e Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Criador e 1° Coordenador das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente do Estado de São Paulo; Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (1992/1994).