A inédita e iminente transação tributária no Distrito Federal: Fundamentos e diretrizes do Programa Negocia-DF à luz da lei 7.684/25 e do decreto 47.337/25
Marco normativo consolida a transação como ferramenta estratégica de conformidade fiscal e desjudicialização no DF.
terça-feira, 15 de julho de 2025
Atualizado em 16 de julho de 2025 08:55
Há momentos em que a forma de se fazer política pública precisa ser revista não apenas para corrigir distorções, mas para transformar estruturas. A transação tributária no Brasil - por muito tempo vista com reservas, desconfianças ou reduzida a experiências isoladas - ganha, no Distrito Federal, um novo contorno institucional, maduro e ambicioso. Com a publicação da lei 7.684/25 e do decreto 47.337/25, surge o Programa Negocia-DF, que propõe uma inflexão na lógica tradicional de cobrança da dívida ativa: menos litígio, mais diálogo. Menos judicialização, mais estratégia. Menos incertezas, mais segurança jurídica.
É preciso compreender que o modelo anterior, centrado quase exclusivamente na execução fiscal e na rigidez procedimental, esgotou-se. A taxa de recuperação de crédito judicializado é historicamente baixa no país, os custos processuais são elevados, e o volume de processos consome tempo e energia de um Judiciário já sobrecarregado. A cobrança da dívida ativa, muitas vezes, resulta ineficiente para o Estado e angustiante para o contribuinte, que enfrenta uma engrenagem muitas vezes pouco acessível, lenta e impessoal.
Nesse cenário, o Distrito Federal adota uma abordagem inteligente e técnica: estruturar a transação tributária e não tributária como política pública central - não como exceção, mas como regra possível e desejável dentro dos parâmetros legais e administrativos. O que se apresenta com o Programa Negocia-DF é mais do que uma norma: é uma plataforma institucional, que combina critérios objetivos, transparência procedimental, princípios constitucionais e flexibilidade adaptada à realidade dos contribuintes e da Fazenda Pública.
A proposta deste artigo é analisar em profundidade o conteúdo, os mecanismos e os desdobramentos desse novo regime normativo, oferecendo uma leitura estruturada e acessível que permita a qualquer interessado - da advocacia privada ao servidor fazendário, do contador ao empresário, do estudante ao docente - compreender a lógica, os fundamentos e os caminhos da transação distrital. Para isso, percorremos os principais pilares da legislação com base em sete blocos temáticos que abordam desde os princípios legais até as modalidades e implicações práticas do novo modelo.
1. O que é transação tributária e por que ela se torna estratégica no contexto atual
Embora a transação tributária esteja prevista no CTN desde 1966 (art. 171), por muitos anos ela permaneceu adormecida como instrumento de política fiscal. Apenas recentemente, com a lei 13.988/20 no plano federal, esse dispositivo passou a ser efetivamente regulamentado e utilizado com mais frequência. O Distrito Federal agora dá um passo ainda mais ousado ao instituir a transação como política permanente - ampla, estruturada e tecnicamente fundamentada.
A transação, em essência, é um acordo legal entre o contribuinte e o Estado para resolver litígios, promover a regularização de débitos e viabilizar o cumprimento das obrigações fiscais com maior flexibilidade. Não se trata de uma anistia ou de um perdão, mas de uma composição formal de interesses legítimos, fundada em critérios legais, e que exige concessões recíprocas. O Estado abre mão de parte dos encargos legais ou flexibiliza prazos; o devedor, por sua vez, confessa o débito, desiste de ações e se compromete com regras claras de adimplemento.
Essa lógica é particularmente relevante em tempos de pressão fiscal, restrições orçamentárias e necessidade de estimular a recuperação econômica. Permitir que empresas, cooperativas, organizações sociais e até pessoas físicas renegociem suas dívidas com o Estado - com base em critérios objetivos e segurança jurídica - é uma forma eficiente de combinar arrecadação, justiça fiscal e sustentabilidade financeira.
2. Estrutura normativa: uma plataforma institucional robusta
A lei 7.684/25 e o decreto 47.337/25 são normas longas, minuciosas e integradas. Elas não apenas autorizam a transação, mas constroem um verdadeiro regime jurídico autônomo e funcional. Estabelecem princípios norteadores, disciplinam procedimentos, definem competências, preveem penalidades, organizam a publicidade dos atos e detalham regras para diferentes tipos de créditos e situações jurídicas.
O Programa Negocia-DF, que nasce desse marco legal, é a expressão operativa dessa nova política. Ele estabelece que toda transação deve seguir parâmetros de conveniência e oportunidade, com decisões técnicas e justificadas pela Procuradoria-Geral do Distrito Federal e pela Secretaria de Economia. Nada é automático. Cada transação é construída com base em avaliação do perfil do devedor, da natureza do crédito, do histórico de pagamento, do contencioso envolvido e da capacidade de cumprimento das obrigações pactuadas.
A norma também prevê o uso de editais para adesão ampla, propostas individuais em casos complexos e, de forma inovadora, a possibilidade de transação em teses tributárias ainda controversas - o que será tratado mais adiante neste artigo.
3. Modalidades de transação: três caminhos para a composição
O programa distrital prevê três modalidades distintas de transação:
a) Transação por adesão: aplicável a editais públicos que estabelecem condições gerais de parcelamento, desconto e regularização. O contribuinte adere integralmente aos termos ali fixados. É o modelo mais simples e rápido, voltado a grande volume de casos semelhantes.
b) Transação por proposta individual: voltada a situações específicas - como contribuintes em recuperação judicial, débitos acima de R$ 3 milhões ou casos que exigem soluções personalizadas. Aqui, há espaço para negociação direta entre o contribuinte e o Estado, respeitando critérios técnicos fixados por ato normativo.
c) Transação por controvérsia jurídica relevante: aplicável a teses tributárias que geram alta litigiosidade e ainda não foram pacificadas por precedentes vinculantes. Permite ao Estado propor uma solução geral a todos os contribuintes envolvidos na controvérsia, com base em edital, reduzindo o passivo judicial e assegurando previsibilidade.
4. Critérios objetivos, limites e incentivos
Para garantir segurança jurídica e transparência, a legislação estabelece critérios objetivos para concessão de descontos e prazos. Esses critérios consideram a classificação da dívida conforme sua recuperabilidade - baseada no rating previsto na LC 1.026/23.
Débitos classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação podem ter descontos mais amplos, conforme tabelas oficiais. Empresas em recuperação judicial podem obter prazos de até 145 meses e reduções de até 70%. Débitos considerados plenamente recuperáveis, por outro lado, têm condições menos favorecidas, mas ainda assim negociáveis.
Além disso, o programa permite a utilização de precatórios, créditos de ICMS homologados, garantias fiduciárias e outras formas de extinção da obrigação, ampliando as possibilidades de regularização fiscal de maneira criativa e juridicamente segura.
5. Obrigações, deveres e compromissos do contribuinte
A transação exige do contribuinte contrapartidas claras e rigorosas. Ao aderir ou negociar uma proposta, ele deve:
- Confessar a dívida de forma irrevogável;
- Desistir de recursos administrativos e ações judiciais;
- Renunciar a alegações como prescrição e decadência;
- Manter garantias e oferecer informações patrimoniais;
- Cumprir todas as parcelas e condições pactuadas.
O descumprimento de qualquer cláusula pode gerar a rescisão automática do acordo, com a perda dos benefícios concedidos e o retorno da cobrança integral.
6. Um mecanismo especial: a transação por controvérsia jurídica
Um dos pontos mais sofisticados do novo marco legal é a possibilidade de transação coletiva de teses tributárias controvertidas. Isso vale, por exemplo, para disputas envolvendo base de cálculo de ICMS, creditamento de impostos ou interpretações complexas sobre benefícios fiscais.
Ao identificar uma tese amplamente litigada e ainda não pacificada, a Procuradoria-Geral pode propor um edital com regras específicas de adesão, valores envolvidos, descontos aplicáveis e, se necessário, exigência de conformação à interpretação administrativa do fato gerador futuro.
Essa modalidade permite reduzir significativamente o passivo tributário do Estado, ao mesmo tempo em que oferece segurança jurídica ao contribuinte. É um instrumento de pacificação tributária com enorme potencial transformador.
7. Transparência, publicidade e controle
Todos os termos de transação devem ser publicados eletronicamente, com indicação dos valores totais, descontos concedidos e partes envolvidas - respeitado o sigilo fiscal. A Secretaria de Economia deve prestar contas quadrimestralmente à Câmara Legislativa, assegurando controle institucional e monitoramento público.
Além disso, o processo administrativo permite contraditório e impugnação em caso de rescisão, com análise técnica e recurso hierárquico, reforçando as garantias jurídicas e a integridade do sistema.
Conclusão
O advento do Programa Negocia-DF representa um ponto de maturidade institucional e de virada estratégica na administração da dívida ativa do Distrito Federal. Não se trata apenas de uma inovação normativa, mas da consolidação de um novo modelo de governança fiscal, orientado pela racionalidade econômica, pela segurança jurídica e pela abertura ao diálogo com os contribuintes.
A lei 7.684/25 e o decreto 47.337/25 conferem musculatura técnica e legitimidade jurídica a um instrumento que, até então, era marginal na rotina do fisco. Ao elevar a transação ao patamar de política pública perene, o Distrito Federal dá exemplo ao país: é possível alinhar arrecadação e justiça tributária; é viável construir soluções que combinem tecnicidade, controle, publicidade e eficiência.
Este novo regime - se bem implementado, monitorado e aprimorado ao longo do tempo - poderá contribuir decisivamente para reduzir o contencioso, ampliar a conformidade, fortalecer a relação Estado-contribuinte e impulsionar a cidadania fiscal e a sustentabilidade das contas públicas. Um avanço normativo que merece ser celebrado, estudado e replicado.
Alexandre Arnone
Advogado especialista em Direito Empresarial e Tributário, atuou como Presidente da Câmara de Comércio Mercosul, Chairman de um Grupo de Institutos nas áreas de mobilidade aérea, social e ambiental.
Darlan Barbosa
Contador e consultor com sólida atuação em políticas públicas de controle, previdência complementar e governança fiscal. É o atual presidente do Conselho Regional de Contabilidade do Distrito Federal (CRCDF), presidente do Conselho Deliberativo da Fundação de Previdência Complementar dos Servidores do Distrito Federal (DF-PREVICOM) e consultor técnico da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF).
Sóstenes Marchezine
Sócio-Diretor, Grupo Arnone e Arnone Advogados em Brasília. VP, Instituto Global ESG. Representante da OAB, CNODS/PR. Diretor, Comissão Carbono, CFOAB. Secretário, Frente ESG na Prática, Congresso.




