MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Governança fiscal sustentável: Fundamentos para uma política tributária orientada por critérios ESG

Governança fiscal sustentável: Fundamentos para uma política tributária orientada por critérios ESG

Brasil avança na construção de um novo marco fiscal baseado em justiça intergeracional, impacto socioambiental e articulação entre instrumentos jurídicos e econômicos.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Atualizado às 14:19

A política tributária brasileira ingressa, em 2025, em um novo ciclo de reconstrução institucional. Ao lado da reforma constitucional, avança uma agenda normativa infraconstitucional que reposiciona o sistema fiscal como vetor da transição ecológica, da justiça distributiva e da segurança jurídica. O tributo, antes encarado sob alguns prismas como mero instrumento arrecadatório, passa a ser concebido como essencial indutor de padrões sustentáveis de desenvolvimento. E esse movimento já não é apenas retórico - ele está normatizado, tecnicamente estruturado e politicamente em curso.

Esse foi o pano de fundo do debate sobre instrumentos fiscais e tributários sustentáveis, com a realização do Simpósio Nacional que integra o Global Meeting - Circuito COP30, promovido pela AGU e pelo Instituto Global ESG. O evento marcou não apenas uma agenda técnica, mas um ponto de inflexão transversal no modo como o Estado brasileiro concebe e operacionaliza seus mecanismos de intervenção fiscal.

Da política fiscal como ferramenta de impacto

A ideia-força que sustenta esse novo ciclo é clara: a política fiscal deve deixar de ser neutra ou reativa frente à emergência climática e à desigualdade social. Deve assumir, com intencionalidade e responsabilidade, o papel de catalisadora da sustentabilidade. Isso implica reorganizar incentivos, corrigir distorções regressivas, penalizar atividades poluentes e fomentar práticas econômicas de impacto positivo - sempre com transparência e previsibilidade normativa.

A recém-promulgada lei 15.103/25, que instituiu o PATEN - Programa de Aceleração da Transição Energética, é o exemplo mais expressivo desse novo modelo. O PATEN prevê a utilização de direitos creditórios públicos - como precatórios e créditos inscritos em dívida ativa - para capitalizar projetos sustentáveis e gerar retorno ambiental, social e econômico. Por meio do novo Fundo Verde, a legislação autoriza que tais ativos sejam performados como cotas vinculadas a investimentos estratégicos em energia limpa, reindustrialização verde e infraestrutura resiliente.

Trata-se de uma verdadeira mutação da lógica fiscal: ativos antes considerados passivos contábeis passam a ser requalificados como instrumentos de política pública com lastro climático. Essa modelagem, inspirada em fundos de transição europeus e alinhada à taxonomia verde internacional, tem potencial de transformar o passivo judicial do Estado em ativo de desenvolvimento sustentável.

Transação tributária sustentável: inovação jurídica e impacto sistêmico

Outro eixo disruptivo que emerge com força no cenário brasileiro é a transação tributária com cláusulas ESG. A chamada transação tributária sustentável rompe com a visão tradicional de negociação limitada ao aspecto fiscal e introduz contrapartidas ambientais e sociais como condição para a regularização. Contribuintes com dívidas perante o Estado podem, mediante acordo, assumir compromissos de descarbonização, inclusão produtiva, reaproveitamento de resíduos ou adaptação de sua cadeia de valor, vinculando os benefícios fiscais à geração de externalidades positivas.

Essa modelagem ganha respaldo técnico e político com a atuação da PGFN, da Pronaclima e da Sejan/AGU, e articula-se ao próprio Marco Regulatório do ESG para o Desenvolvimento Sustentável, em construção. Na prática, inaugura-se um campo de transações complexas, fundadas em avaliação de impacto, análise de riscos jurídicos e projeção de retorno climático - tanto para o setor público quanto para o contribuinte.

Esses acordos representam mais que uma alternativa à litigiosidade: são uma oportunidade para reorganizar o sistema de incentivos da administração tributária, substituindo a lógica punitiva por mecanismos estruturantes de conformidade fiscal e responsabilidade ambiental. A expectativa é que os acordos de transação passem a incorporar cláusulas de impacto e indicadores mensuráveis, elevando o padrão técnico e o alcance transformador desses instrumentos.

Orçamento climático, precificação e fundos compensatórios

A partir da reforma tributária, ganha fôlego a discussão sobre a criação de um orçamento climático transversal, que consolide as despesas e receitas públicas com impacto socioambiental. A ideia é incluir, no planejamento fiscal, metas explícitas de redução de emissões, compensação territorial e inovação tecnológica. Isso demanda metodologias de precificação, taxonomia verde nacional e integração entre os sistemas contábil, orçamentário e ambiental.

Nesse campo, destaca-se também a proposta de consolidação de fundos de compensação ambiental e regional, que podem ser alimentados com receitas seletivas (decorrentes da tributação de externalidades negativas) ou com recursos oriundos da conversão de passivos estatais. Essa arquitetura orçamentária está prevista no PATEN e poderá ser replicada nos entes subnacionais a partir de experiências piloto.

Governança fiscal e o papel da advocacia pública

Nenhuma inovação tributária prospera sem legitimidade institucional. Por isso, a construção de uma governança fiscal sustentável exige o fortalecimento da advocacia pública como formuladora de soluções normativas. A AGU, por meio de seus órgãos especializados, tem ampliado sua atuação para além da defesa judicial e passa a ocupar papel estratégico na formulação de políticas fiscais inovadoras, como demonstra o protagonismo na implementação da transação sustentável e o apoio a regulamentação do Fundo Verde.

A criação de um Conselho Permanente de Instrumentos Fiscais Sustentáveis, vinculado ao Programa ESG20+, institucionaliza essa atuação coordenada, com participação de ministérios, órgãos de controle, academia e sociedade civil organizada. Trata-se de um espaço técnico de construção coletiva e contínua, apto a propor normativas, disseminar boas práticas e capacitar agentes públicos.

O desafio da litigiosidade: da defesa à prevenção

Outro ponto crítico abordado na agenda atual é a gestão estratégica da litigiosidade com impacto socioambiental. O volume de disputas envolvendo créditos públicos, precatórios, contratos regulatórios e obrigações ambientais exige uma reformulação da postura estatal. Mais que atuar de forma reativa, o Estado deve adotar uma governança ativa sobre seus passivos, integrando critérios de sustentabilidade às decisões jurídicas e arbitrais.

Experiências da PGF, da CCAF, da Secretaria do Tesouro Nacional e de câmaras especializadas apontam caminhos para essa reestruturação, que inclui a valorização de soluções consensuais, a previsibilidade das decisões e a qualificação técnica de pareceres com base em evidências e métricas ESG.

Convergência institucional e responsabilidade intergeracional

Esse conjunto de inovações sinaliza um movimento claro: o Brasil está construindo, de forma multissetorial e interinstitucional, um novo marco técnico-jurídico para a política fiscal sustentável. As normas já existentes, como a lei do PATEN, o Fundo Verde, as lei e portaria de transação com impacto e os critérios da taxonomia climática, são apenas a primeira camada. O que está em curso é a estruturação de um ecossistema de políticas fiscais convergentes, guiadas por princípios de justiça, integridade e impacto.

Para sintetizar esse compromisso, um manifesto: consolidar uma agenda fiscal verde e justa, promover inovação normativa com segurança jurídica e fomentar a produção de conhecimento aplicada à transformação do Estado.

Conclusão: tributar para transformar

A consolidação de uma política fiscal orientada por critérios ESG não é apenas uma alternativa técnica. É uma exigência histórica. Em tempos de escassez orçamentária, colapso climático e polarização institucional, tributar e conciliar com consciência socioambiental é a forma mais estratégica de exercer a função redistributiva do Estado, alocando recursos, influenciando condutas e garantindo que a justiça - social, tributária e climática - não fique apenas no papel.

O momento vivido pelo Brasil é o início de um novo pacto entre a economia, o meio ambiente e a democracia.

Alexandre Arnone

Alexandre Arnone

Advogado especialista em Direito Empresarial e Tributário, atuou como Presidente da Câmara de Comércio Mercosul, Chairman de um Grupo de Institutos nas áreas de mobilidade aérea, social e ambiental.

Sóstenes Marchezine

Sóstenes Marchezine

Sócio-Diretor, Grupo Arnone e Arnone Advogados em Brasília. VP, Instituto Global ESG. Representante da OAB, CNODS/PR. Diretor, Comissão Carbono, CFOAB. Secretário, Frente ESG na Prática, Congresso.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca